31.3.06

Às vezes

Johannes Vermeer (1632-1675) - Mulher de azul lendo uma carta
Johannes Vermeer [1632-1675] | Mulher de azul lendo uma carta [1662-64]
Rijksmuseum | Amesterdão | Holanda

Às vezes, as letras escorrem dos livros no preciso instante em que as leria.
Abandonam apressadamente as linhas, como crianças pequenas a descerem muros altos, sujando os calções de musgo e terra. Quando pateiam o chão, sacodem as mãos e as roupas com pancadas secas. Arrimam-se então umas às outras e murmuram entre si zumbidos que não percebo, com os dentes quase colados às orelhas e os beiços ainda imundos de restos de rebuçados de anis.
Olho-as de viés, melindrada com o atrevimento da interrupção da minha leitura, mas elas parecem não se importar. Estendem-se em confidências voltando-me as costas, satisfeitas por se acharem libertas dos enfadonhos sinais de pontuação, sapatos apertados que lhes refreiam os volteios. Tenho para comigo que se não fossem os sinais de pontuação e os cadernos pautados, todas as letras se prestariam insolentemente a serem iluminuras.
Volvido largos minutos, já depois de os meus olhos haverem desesperadamente trocado a palidez das páginas do livro pelo negrume das pálpebras cerradas, começam a espreitar por entre os ombros umas das outras e chamam-me para escarnecerem polutamente da minha curiosa ignorância acerca do que estiveram a engendrar. Mas eu resisto, estóica e orgulhosamente, dando-me ares de despercebida até que se enfastiem de tanta troça com sabor a rebuçados de anis e caiam de sono, tombadas pela indolência.
Só então, quando tudo está submerso em quietude, é que torno a mirá-las e descubro finalmente o porquê de tanto bulício...
Às vezes, as letras escorrem dos livros para se juntarem e formarem o teu nome.

© [m.m. botelho], ao som de Comptine D'un Autre Été: L'après Midi, composta por Yann Tiersen para a banda sonora original do filme Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain [2001], de Jean-Pierre Jeunet.

26.3.06

Lacrimae rerum

Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt.
Há lágrimas nas próprias coisas
e as coisas da morte tocam-nos a alma.

Eneida, I. 462 | Publius Vergilius Maro (70 a.C.–19 a.C.)

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | esquisso | 2006
lápis de carvão staedtler lumograph hb
traçado ao som de «Flow my Tears» | John Dowland (1563-1626)
Alfred Deller, contratenor | Robert Spence, alaúde | The Consort of Six | Harmonia Mundi

Flow, my tears, fall from your springs!
Exiled for ever, let me mourn;
Where night's black bird her sad infamy sings,
There let me live forlorn.

Down vain lights, shine you no more!
No nights are dark enough for those
That in despair their lost fortunes deplore.
Light doth but shame disclose.

Never may my woes be relieved,
Since pity is fled;
And tears and sighs and groans my weary days
Of all joys have deprived.

From the highest spire of contentment
My fortune is thrown;
And fear and grief and pain for my deserts
Are my hopes, since hope is gone.

Hark! you shadows that in darkness dwell,
Learn to contemn light
Happy, happy they that in hell
Feel not the world's despite.

22.3.06

Breve meditação sobre a realização literária

Paris, 17 de Fevereiro de 1903

Caro senhor,

A sua carta só me chegou há alguns dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança dela. Pouco mais posso fazer. Não posso pronunciar-me sobre os seus versos porque estou muito longe de toda e qualquer intenção crítica. Nada pode tocar menos uma obra de arte do que as expressões críticas: isso só dá lugar a equívocos mais ou menos felizes. As coisas não são todas tão apreensíveis e dizíveis como muitas vezes se gostaria de nos fazer crer; a maior parte dos eventos são indizíveis, perfazem-se num espaço que nunca foi tocado por uma palavra, e mais indizíveis do que tudo são as obras de arte, existências secretas cuja vida perdura enquanto a nossa passa.
Feita esta observação, só posso dizer-lhe que nos seus versos não há uma voz pessoal, embora haja indícios, tímidos e encobertos, de uma personalidade própria. Sinto isso com a maior clareza no último poema, "A minha alma". Aí há qualquer coisa de próprio que quer chegar à palavra e à forma. E, na bela poesia "A Leopardi", desenha-se talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário. Apesar disso, os poemas ainda não são nada em si, nada de autónomo, nem mesmo o último, nem o que respeita a Leopardi. A sua amável carta que os acompanhou não deixa de me explicar muitas falhas que eu senti na leitura dos seus versos, sem todavia ser capaz de lhes dar nome.
Pergunta-me se os seus versos são bons. É a mim que pergunta. Já antes perguntou a outros. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica inquieto se algumas redacções recusam as suas tentativas. Ora bem (já que me autorizou a aconselhá-lo), peço-lhe que se deixe de tudo isso. O senhor olha para fora e é exactamente o que não deveria fazer agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Há um único meio. Entre dentro de si. Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever lhe ser vedado. Isto antes de mais nada: pergunte-se na hora mais calada da sua noite:
tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples "Sim, tenho", então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da Natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; comece por evitar aquelas formas que são mais correntes e comuns: são as mais difíceis, pois requer uma grande força amadurecida exprimir o que nos é próprio quando já existem acumuladas tantas produções boas e até esplendorosas. Por isso salve-se dos temas gerais para os que lhe oferece a vida de todos os dias; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros, a fé em qualquer forma de beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, humilde, e utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente; lamente-se a si, diga para consigo que não é suficientemente poeta para convocar as suas riquezas; pois para o criador não existe escassez nem lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar nenhum dos ruídos do mundo aos seus sentidos - então não teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e principesca, essa câmara dos tesouros da lembrança? Concentre nela a sua atenção. Tente despertar as sensações afundadas desse passado longínquo; a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tomar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. E se desse voltar-se para dentro, desse mergulho no seu mundo próprio, surgirem versos, então não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não fará a tentativa de interessar as revistas nesses trabalhos, pois verá neles a sua dilecta e natural propriedade, um pedaço e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade. Nesta sua maneira de irromper está o seu veredicto: não há mais nenhum. Por isso, caro Senhor, não podia dar-lhe nenhum outro conselho além deste: entrar em si mesmo e examinar as profundezas de que brota a sua vida; nas nascentes dela encontrará a resposta à pergunta sobre se deve criar. Aceite-a como ela lhe soar, sem se pôr com elaborações. Talvez tenha a prova de que foi chamado a ser artista. Então aceite o destino e assuma-o, no seu peso e na sua grandeza, sem querer saber da recompensa que poderia vir de fora. Na verdade o criador deve ser um mundo para si mesmo e tudo encontrar em si e na Natureza a que se ligou. Mas talvez tenha ainda, depois dessa descida em si e no que em si é solidão, de desistir de ser um poeta (basta sentir, como disse, que se pode viver sem escrever, para que isso não nos seja lícito). Mas mesmo então esse recolhimento que lhe peço não terá sido em vão. A sua vida encontrará de toda a maneira caminhos próprios a partir daí e que eles sejam bons, fecundos e amplos, é o que lhe desejo mais do que posso dizer.
Que mais posso dizer-lhe? Parece-me que tudo foi acentuado como devia; e enfim só desejaria ainda aconselhá-lo a que cresça no silêncio e na seriedade ao longo da sua evolução; não poderia prejudicá-la mais fortemente do que olhando para fora e esperando de fora a resposta a perguntas a que só o seu sentir mais íntimo, nas suas horas mais silenciosas, pode talvez responder.
Foi uma alegria para mim encontrar na sua carta o nome do senhor professor Horaceck; tenho por esse amável sábio uma grande veneração e uma gratidão que perdura pelos anos. Peço-lhe o favor de lhe transmitir estes meus sentimentos; desvanece-me que ele se lembre ainda de mim e registo-o com apreço.
Devolvo-lhe com esta os versos que tão amigamente me confiou. E mais uma vez lhe agradeço a generosa cordialidade da sua confiança de que eu tentei tomar-me um pouco mais digno do que, como estranho, realmente sou, respondendo sinceramente e o melhor que sei.
Com toda a dedicação e simpatia.
Rainer Maria Rilke


É unicamente através da solidão, da introspecção, renunciando ao conhecimento exterior que cada um poderá encontrar o criador que habita em si. Neste exercício, a dualidade tensa entre o "ego" e o "mundu". É na auto-interpelação da hora mais taciturna das trevas, distante das nefastas influências externas, como que num regresso a um estado puro, que o ente se encontra consigo mesmo, que o "ego" se interroga sobre o porvir.
Existe vida humana sem a escrita? Não é a poesia uma inextinguível dialéctica entre entre o "ego" e um mundo interior fantasmagórico, quimérico? Não é a produção poética um retorno ao primordial instante da existência, ao útero materno no qual a percepção exterior não passa de fragmentos esparsos do desconhecido? Não é poetizar, no fundo, ensimesmar-se, voltar-se sobre si mesmo?
A poesia é destino sem recompensa exterior, di-lo Rilke, é mergulho no universo de si próprio, universo que se basta na sua solitude. A arte identifica-se, assim, com o existir. A poesia e a vida não podem distanciar-se. E a literatura brota da região mais silenciosa e simultaneamente mais ruidosa de cada um de nós: a alma.

© [m.m. botelho], a partir do texto transcrito de Rainer Maria Rilke (1875-1926), in Cartas a um Jovem Poeta, tradução de Vasco Graça Moura, Edições Asa, Lisboa, 2002.

19.3.06

Sem título

Belinda balbuciava
Breves palavras ao vento.
Belinda dizia, eu escutava
Aqueles sons como um lamento.
E ao longe um barco,
Em que remava
Outra Belinda,
Um outro vento.
O seu lamento era outro,
Porém a mim dirigido,
Confundindo os sentimentos,
Inundando-me o ouvido,
Belinda gritava, chorava,
E o olhar agudo que me lançava
Arrebatava-me,
Pregava-me ao chão.
E o que mais me fascina em Belinda
É ela não ter coração.
E à noite, no silêncio,
Se sopra um pouco de vento,
Não são uivos que ouço,
Não é frio que sinto,
Mas Belinda que vejo,
A Belinda que minto.
Nos sonhos largos da canção
Que ela canta sem cessar
É meu olhar que se quebra,
É meu peito a soluçar.
Acorda-me agora Belinda
E no sobressaltado acordar
Não é Belinda que acho,
É apenas sombra e mar.
E se fecho de novo os olhos,
Ela lá está a cantar
Os mesmos lamentos de sempre,
Que sempre neguei escutar.
Belinda volta-se, enfim,
Seus olhos são grandes, negros,
Crava-os, então em mim
E os meus, que sinto a arder,
Porque pouco já posso fazer,
De nada servem,
Estão cegos.

© [m.m. botelho]

18.3.06

Sem título

© 2006 [m.m. botelho]
© m.m. botelho | desenho a tinta da china preta Winsor & Newton e aparo sobre papel | 1995

17.3.06

Mesquinhos humanos hiatos

Sempre me deixei seduzir pelas ondas que sulcam as rochas. Uma ligeira agitação nas profundezas oceânicas, criada pelo rotineiro movimento das guelras de um peixe, vem repercutir-se em algo tão remoto como um amontoado de pedras a milhas de distância. A guelra move-se, alterando o que seria o curso silencioso da água, que vai depois juntar-se a um outro movimento criado por uma agitação igualmente insignificante e a outro, e a outro, e a outro, formando todos um amontoado de líquido sombriamente azul que vem até à superfície desfazer-se em espuma de encontro ao fraguedo.

Há muito, muito tempo, tanto que não há artefacto humanamente criado que o conte, sem pedir licença ao alfabeto, juntaram-se os caracteres em fonemas. Usando um fio de voz, entrançado com a agulha de muitos pensamentos, foram criadas mantas de vocábulos sobre a qual os interlocutores repousam sempre que entabulam conversas uns com os outros. Os sons sucedem-se, empurrados pela língua e pelos dentes de encontro aos lábios. Aos encontrões, invadem os ouvidos, com a mesma determinação das vagas quando esbarram nos penedos.

Sempre me deixei seduzir pelas palavras que perturbam os espíritos. Com elas vem o sobressalto que os arreda do abrigo da ignorância e os sujeita à companhia não desejada de outras inquietudes. Como que vergados pelo peso dos corpos dos viandantes, no meio do turbilhão das suas passadas, os ânimos não se dão conta de que entre eles se vão rasgando mesquinhos humanos hiatos... e como grãos de areia permanecem comprimidos uns contra os outros, sem nunca se conhecerem e descobrirem naquelas fendas o tanto que os aproxima.

© [m.m. botelho]

16.3.06

Todos os lugares são longe daqui.

Passaram já muitos anos desde que nos encontrámos pela primeira vez. Nesse dia, o sol andava escondido por entre as nuvens, a sussurrar-lhes ao ouvido as intrigas cá de baixo e de vez em quando elas juntavam-se para rir dos males alheios, deixando o dia mais lúgubre.
Lembro-me do cheiro desse dia. Não cheirava a nada e, contudo, cheirava como só aquele dia cheirou, como só os dias podem cheirar quando o sol não aquece a terra.
Saí de casa cedo, ainda o dia mal despertara, quase como que adivinhando que iria ver-te sem saber sequer que existias. Saí de casa como tantas outras vezes saíra, porque todos os dias eu adivinhava que andavas por aí, por todos os Lugares, sem saber sequer que existias.
O longo Tempo foi escorrendo dos ponteiros de todos os relógios, mas não dos nossos. Não sabia sequer que tinha relógio, não sabia sequer que havia Tempo. Não havia horas e as ampulhetas serviam ingenuamente para aprisionar grãos de areia roubados aos desertos... e o meu Tempo era Deserto.
Passaram já muitos anos desde aquela manhã de sombras diluídas em inquietude e eu continuo hoje sem saber dizer se são as nuvens que tingem o céu de azul ou o céu que as mancha de branco. Talvez nunca venha a sabê-lo, nesta minha certeza de que há um Tudo para além do Absoluto que me é vedado. As nuvens existiam já no céu antes do dia em que nos encontrámos pela primeira vez. Desde então, continuam as suas incansáveis jornadas ignorando fronteiras, raias, limites.
Na sombra dessas nuvens, todos os lugares são longe daqui, e em todos eles começa e acaba cada uma das nossas infinitas Viagens Interditas.

© [m.m. botelho]