30.5.06

Cartografia de ti

Leonardo da Vinci [1452-1519] | desenho para construção de barco | c.1485-87
Leonardo da Vinci [1452-1519] | desenho para construção de barco | c.1485-87
Royal Collection | Royal Library | Palácio de Windsor | Londres | Reino Unido

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Onde estou que não estou aí, eu, mareante, que ainda ontem viajava sofregamente pelo teu corpo e aportava, por fim, na tua boca?
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© [m.m. botelho], ao som de Vocês, dos G.N.R., do álbum Câmara Lenta.

Todos me tratam por você / Menos tu nem sei porquê / Fico parado e o mundo vê
Só eu sei quando paguei / E subi e nem pensei / Nem pensar onde cheguei
Eu que vendi o verbo amar / Que menti sem hesitar / Esqueci o calor do lar / Eu vendi o verbo amar / Eu menti sem hesitar / Não parti nem vou chegar
Já não sei quando paguei / Já desci e nem pensei / Nem pensar onde cheguei
Eu vendi o verbo amar / Eu menti sem hesitar / Esqueci o calor do lar / Eu que vendi o amor / Eu menti sem hesitar / Não parti nem vou chegar
Eu vendi o verbo amar / Eu menti sem hesitar / Esqueci o calor do lar / Eu que vendi o amor / Eu menti sem hesitar / Esqueci o calor do lar
Eu vendi o verbo amar / Eu menti sem hesitar / Não parti nem vou chegar

21.5.06

Umbra

© 2006 [m.m. botelho]
[m.m. botelho] | umbra | manuscrito | maio de 2006

Disseste-me adeus com os olhos
A boca, as mãos
                                                  teu nome, murmúrio
                                                  lavra-me a carne
Umbrática
Descendente
                                                  teu perfume, escorrência
                                                  sulca-me o peito
Presença disforme
Telúria
                                                  teu ventre, o teu ventre
                                                  precipício de profusão.
Vento que me corre nas entranhas
Rochedo onde, onda, me quebro.

E já não sou
                                                   já não somos aí.
© [m.m. botelho], ao som de A Espera, de Rodrigo Leão & Vox Ensemble, do álbum Ave Mundi Luminar.

16.5.06

O dissidente

Gianlorenzo Bernini [1598-1680] | Anima Dannata
Gianlorenzo Bernini [1598-1680] | Anima Dannata | 1619
Palazzo di Spagna | Roma | Itália

Nunca apertava os atacadores dos sapatos. Sentia-se mais leve, mais liberto, mais ousado se ao olhar os pés visse que não terminavam num laço, mas em duas pontas rebeldes, uma voltada para cada lado.
Assim se sabia também: tinha-se por irrequieto, contestatário, protestante. Travava discussões sobre tudo e sobre nada, fazia o que havia para fazer sempre de modo diverso dos outros e definia-se num vocábulo cuspido com desfaçatez por entre os dentes amarelecidos pelo tabaco: dissidente.
Gostava de ler o último capítulo dos livros antes de ler o primeiro e punha-se a imaginar o enredo só a partir daquele fragmento. Quando terminava a leitura, sentia-se invariavelmente insatisfeito. O mesmo final ter-lhe-ia proporcionado uma história desigual e, certamente, muito melhor do que aquela.
Contudo, não sabia escrever. Havia já tentado, umas quatro ou cinco vezes, sentar-se muito hirto na cadeira e teclar na velha Underwood n.º 5 uma patranha qualquer. Depois de aconchegar o papel no carreto, estalava os dedos um a um, deixava cair os braços ao longo do corpo agitando ambas as mãos e pousava então os dedos esgalgados sobre as letras, à espera de que as ideias lhe saltassem da cabeça e fossem empurrar as teclas.
Inutilmente, quedava-se assim longos minutos. E nada. Não lhe ocorria nada. Nem uma única frase. Irritava-se então consigo próprio, maldizia-se para todo o sempre esbarrando nervosamente os pés no soalho, dava por si a puxar com força os parcos cabelos grisalhos e quando atirava os óculos engordurados para cima da mesa, acordava daquele desespero com as pancadas da vassoura da vizinha de baixo, os insultos do marido daquela e o choro estridente dos gémeos ranhosos de ambos. E zurzia da sua vida inane e do último andar do n.º 34 da rua lúgubre que via quando se assomava à janela, albergue de um pai, uma mãe, três filhos e uma gata que todos os dias lhe recordavam que não passava de um paupérrimo cenobita de meia-idade.
Nessas horas, só lhe dava para agarrar impacientemente o chapéu e sair de casa correndo para sorver os ruídos do exterior: as passadas de um homem de mãos grandes e sebosas, no seu apressado regresso a casa; os risinhos cúmplices de um par de irmãs de seis e dez anos, deliciadas pelos pastéis comprados pelo pai na padaria da esquina; o enérgico desenrolar dos cordéis dos piões, aferidores credenciados da virilidade antecipada dos miúdos que brincam no largo; o rufar das pregas do vestido comprido de uma dama amordaçadas num carro; o estalar das outonais castanhas num assador de barro enegrecido pelo carvão; o chapinhar da língua de um cão sequioso na água imunda de um qualquer charco.
Depois, sentava-se num dos bancos do jardim e deixava-se ficar ali, até que o silêncio se lhe instalasse entre os ossos e ele se esquecesse das vassouradas que a cabra do rés-do-chão ousara dar no tecto, perturbando o seu momento de amargura criativa. E assim, com o corpo bem embebido na acalmia do frio nocturno, enrolava um cigarro muito franzino que acendia com lume de um passante e inalava-o em grandes fumaças. E começava a pensar que, afinal de contas, todos aqueles sons da realidade exterior eram tão desprezíveis como o sossego da máquina de escrever que roubara uns anos antes e agora morria sobre a mesa da sua sala despida. O importante era o grito, a rebelião, a revolução! Isso sim, era o essencial, a força motriz dos homens, a razão que importava exclamar! E desatava aos brados, na praça deserta, agitado as árvores e arremessando os bancos, chutando as pedras, erguendo os braços ao alto e negando a Deus, aos homens e ao mundo.
Quando acordava, depois da peleja, reconhecia as paredes brancas do hospício, tão nuas como as de sua casa, a mesa tão untuosa como a sua, a cadeira igualmente rígida, o ar ainda mais denso. Remexia nos bolsos, vazios, os bolsos de umas calças que não eram suas. Debaixo da cama, em repouso, os sapatos. Calçava-os e baixava-se para apertar os atacadores, com força exagerada, num laço muito grande e perfeito, que depois ostentava nas passadas largas. Saía do quarto, colarinhos compostos, os parcos fios do cabelo penteados com a mão trémula para trás, os óculos besuntados pousados no nariz. E entrava no extenso corredor lácteo, imerso no silêncio inerte da sua própria maldição.

© [m.m. botelho], ao som de Gymnopédie n.º 2, de Erik Satie [1866-1925], interpretada pelo pianista Aldo Ciccolini, do álbum Erik Satie - Ouevres Pour Piano.

6.5.06

Ode a Coimbra

© [m.m.botelho] | fotografia | setembro 2003
a fachada principal da sé velha de coimbra e o meu
velhinho renault clio preto vistos da janela do meu quarto


Ode a Coimbra

Coimbra tem...
Tem a cor da mocidade,
Tem o negro da saudade
Nas ruas, na voz.
Coimbra tem...
Tem gritos de liberdade,
Tem nesta Universidade
Um pouco de todos nós!

E na minha capa,
Negra como a noite escura,
Tenho escondido um segredo.
E um dia, quando eu morrer,
No céu o hei-de escrever
Com as águas do Mondego.

E nas tuas ruas
Cheira a histórias velhinhas,
Um segredo bem guardado.
Se um dia o revelar
Fá-lo-ei sempre a cantar
A tua canção: o Fado.

E na voz do vento
Que beija esta cidade,
A cidade do Choupal,
Há um passado escondido,
Pelas memórias esquecido,
Só o sabe Portugal.

E nos estudantes
Deixas as marcas da dor,
Da dor de ter de partir.
Se um dia possível for
Voltarão cheios do Amor
Que só tu fazes sentir.

Coimbra és...
És errante, és peregrina,
Tu me deste esta sina
De cantar-te assim.
Coimbra és...
És tu a minha cidade,
És tu sempre a saudade
Que trago dentro de mim!

© [m.m. botelho]
poema escrito [e musicado] em Setembro de 2000, num final de tarde luzidio, no Largo da Sé Velha, cenário dilecto dos meus olhos, agora recordado a propósito da Queima das Fitas 2006 [de 7 a 11 de Maio], ao som do fado-canção anónimo Adeus Sé Velha, interpretado pelo Quinteto de Coimbra, do álbum Fados de Coimbra.

Adeus Sé velha saudosa / Com guitarras a rezar / Minh'alma parte chorosa / No dia em que te deixar
A hora da despedida / Só durará um minuto... / Mas fica na minha vida / Como cem anos de luto!...

2.5.06

Palavras interditas

© 2006 [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | sem título | maio de 2006
desenho a lápis de carvão staedtler mars lumograph hb
e caneta rotring isograph 1.00 mm vermelha sobre papel


Poema sobre a recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.


Maria Teresa Horta [n. 1937]



Falo-te com as palavras dos outros, que as minhas já se calaram, náufragas na tua saliva.

© [m.m. botelho], ao som de Today As Been Okay, de Emiliana Torrini, do álbum Fisherman's Woman.

Friends tell me it's spring / My window show the same / Without you here the seasons pass me by / I know you were not known / That loved like May and June / All the same I miss you / Today has been ok / Today has been ok
The preacher lost his son / He's known by all in town / He found him with another son of God / Feeding on the pray / Nevermind what God said / But love had lost it's cause and I thought / Today had been ok / Today has been ok / Today has been ok
Winter's burned your skin / The lovely air so thin / The salty water’s underneath your feet / No one's gone in May / Here is where ill stay / 'Cause life has been insane but / Today has been ok / Today has been ok / Today has been ok / Today has been ok.