27.10.06

Um beijo sem boca

Leonardo da Vinci [1452-1519] | estudo anatómico do coração, veias e artérias | caderno de windsor | s.d.
L. da Vinci [1452-1519] | estudo anatómico do coração, veias e artérias | s.d.
do Caderno de Windsor | Biblioteca Ambrosiana | Milão | Itália

E para terminar, é precisamente a boca que nos vai servir para falar do paraíso.
A boca é um pólo de tensão nervosa - cerrar os dentes, morder a língua, cigarros - mas também de escape gratificante, indulgência com os prazeres sensuais. A boca que acolhe os alimentos da sobrevivência e resguarda os dentes, derradeiros despojos.
A boca. Lugar de três paraísos:
- o paraíso religioso da comunhão com o corpo de Deus, através da hóstia consagrada;
- o paraíso infantil da comunhão com o corpo da Mãe, através da amamentação; ou das delícias da descoberta dos primeiros sabores;
- o paraíso sexual da comunhão com o corpo de alguém, através do beijo, para dar só um exemplo.
O paraíso perdido é, então, bem feitas as contas, o da coincidência física e espiritual com o corpo, um corpo, mas que corpo de quem?
A resposta seria infância, religião, prazer, amor, família, memória, e todas as outras palavras que só a muito custo, ou talvez nem mesmo a muito custo,aqui se poderiam acrescentar.
Isso falta. Falta a resposta. O que há, então, é a falta. Chama-se-lhe vida e disso se vive. Mais ou menos.


Alexandre Melo [n. 1959] | Aventuras no Mundo da Arte | Lisboa Assírio & Alvim | 2003

Lembrar a quentura da tua boca, a aridez da tua língua, a brancura dos teus dentes, a humidade dos teus lábios. Deixar-me devorar por ti. O teu beijo a esquartejar-me a carne, a estraçalhar-me os ossos. Ficar-me a morrer na tua boca e dela fazer meu túmulo. Sepultar-me perpetuamente em ti. Escrever-me com a tua saliva em forma de epitáfio para que se saiba em toda a parte que o meu coração jaz ao pé da tua boca.

© [m.m. botelho], ao som de Epitaph For My Heart, dos The Magnetic Fields, do álbum 69 Love Songs [1999].



"Caution to prevent electic shock. Do not remove cover. No user servicable parts inside. Refer servicing to qualified service personelle."
Let this be the epitaph for my heart / Cupid put too much poison in the dart / this is the epitaph for my heart / because it's gone, gone, gone
And life goes on and on and on / and death goes on, world without end / and you're not my friend
Who will mourn the passing of my heart / Will it's little droppings climb the pop chart / Who'll take its ashes and, singing, fling / them from the top of the Brill Building
And life goes on, and dawn, and dawn / and death goes on, world without end / and you're not my friend

13.10.06

Do outro lado da linha

© [m.d. botelho]
© [m.d. botelho] | fotografia | coimbra | maio de 2001

O que a Faculdade de Direito faz por ti é isto: diz-te que seres jurista significa esquecer os teus sentimentos, esquecer a tua comunidade, e principalmente, se fores mulher, esquecer a tua experiência.
Catharine A. MacKinnon | Feminism Unmodified. Discourses on Life and Law | Harvard University Press | 1987 | p. 205


Há uns anos atrás, foste a primeira pessoa a saber, a primeira pessoa a quem liguei, as mãos ainda trémulas entre o contentamento e a tristeza, os olhos ainda assustados, as primeiras lágrimas a quererem manchar-me o rosto e a camisa azul escura. Foi o teu nome o primeiro que disse quando atendeste, voz colocada do outro lado da linha e a minha frase, tão pequena, tão singelamente pequena, fez-te respirar longamente. Do outro lado da linha disseste que tinhas orgulho em mim, que sabias que eu conseguiria, que sempre soubeste que o conseguiria. E eu, tão pequena, tão singelamente pequena, senti-me flutuar no teu orgulho, no orgulho que então disseste ter em mim e me fez sentir mais próxima de ti, do que eras, do que sei que ainda és.
Há uns anos atrás, foste a primeira pessoa a saber, a quem correndo fui levar a novidade, com quem quis sorrir a alegria, mesmo ao telefone, mesmo à distância. A tua voz, àquela hora sempre tão formal, foi quente, nesse dia, aquecida pelo sabor da conquista, daquela conquista que era nossa, como nossas eram todas as conquistas desses dias.
Lembro-me de onde dormi na noite anterior, da roupa que vesti, do exacto sítio onde estacionei o carro. Ainda me vejo, pasta académica na mão esquerda, as fitas a escorregarem
[a tua fita ainda em branco, ainda hoje em branco],
o telefone na mão direita. Ainda ouço o sinal de chamada a entrecortar-me a pulsação
[o meu coração a bater aceleradamente,
a saliva a secar-me na língua]
e do outro lado da linha o teu "Sim?" quando atendeste. O meu pé direito no rebordo do passeio, o meu olhar fito no calcário da calçada, o teu nome nos meus lábios e a minha frase, uma palavra, uma única palavra, a soltar-se dos meus dentes e a chegar a ti
[tu do outro lado da linha, costas muito direitas
dentro do blaser, a camisa irrepreensivelmente engomada]
.
E depois o meu nome a sair de ti, a tua alegria a sair de ti, a unir-se à minha do lado de cá da linha e as duas a bailarem em rodopio, suspensas no ar, suspensas na vontade do abraço, no desejo do beijo, as nossas alegrias juntas, em pontas dos pés a dançarem sobre o calcário da calçada.

Naquela calçada ainda há uma réstia da nossa alegria, da alegria daquele dia que evoco hoje, que sempre evocarei a 13 de Outubro. A alegria de sentir o teu orgulho em nós, o teu orgulho em mim e naquilo que já não sabes mas que eu ainda sou.

Não foi à toa que hoje, exactamente hoje, sonhei contigo.

© [m.m. botelho], em dia de memórias, ao som de Second Brain, de Kaki King, do álbum ... until we felt red [2006].

9.10.06

Aqueles éramos nós

Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966
Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966

A ausência de nuvens prometia um dia de claridade e calor. Era o fim do Estio, mas o ar continuava abafado. A cada inspiração sentíamos o aroma da boca do outro, com a nítida sensação de que o ar que agora respirávamos havia já percorrido outros pulmões. Uma inspiração mais profunda encher-nos-ia o peito do cheiro dos dejectos caninos que se acumulavam nas bermas. A cada mirada, o alcatrão da estrada desfigurava-se mais sob o vapor que emanava. A recta imensa à nossa frente parecia cada vez mais uma tortuosa sequência de curvas delimitadas por duas linhas brancas paralelas. Esforçávamo-nos ambos por manter os olhos abertos antes de bebermos café.
Contámos as curvas do caminho: exactamente 112, desde que partíramos pela última vez. O conta-quilómetros somava, até então, 79.326 unidades. O ponteiro do depósito descia alucinadamente em direcção à reserva e os pneus, desejosos de descanso já antes da partida, chiavam a cada travagem e perpetuavam no asfalto a nossa passagem por aquele exacto ponto.
Os vidros descidos convidavam os insectos a entrar. O intenso aroma que exalávamos a suor e saliva misturados com poeira atraía-os e eram visíveis nos braços, no rosto e no peito as marcas das picadas. Baixávamos as palas para protegermos os olhos da luz mas continuávamos a evitar ver a nossa imagem reflectida nos pequenos espelhos rectangulares. Não queríamos acreditar que aqueles éramos nós.
No rádio, a mesma cassete sempre a rolar dava-nos a ouvir Bigger, Stronger, dos Coldplay.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car
To take me anywhere in seconds,
To take me anywhere I wanna go...

De vez em quando parávamos debaixo de algum alpendre de uma estação de serviço. Saíamos do carro e contorcíamo-nos com dores ao escutar o som das nossas costas despidas a descolarem-se dos estofos do carro. Maldizíamos a todo o instante a opção pelo cabedal preto que, além de se nos agarrar à pele, concentrava o quente. E logo em seguida dizíamos mal de nós mesmos por irreflectidamente termos encravado a capota quando, num acesso de estupidez, preferimos a força à habilidade naquela manhã em que o mecanismo se recusara a fechar.
Tirávamos os chapéus e ríamos das figuras um do outro: cabelos ensopados, colados à testa, a lembrar os tempos em que corríamos até à exaustão atrás dos gatos.
Quando crianças, tínhamos por passatempo apanhar os gatos sem dono que abundavam na aldeia e atar-lhes ao rabo latas e caricas vazias para soltá-los em seguida. Depois dávamos estridentes gargalhadas enquanto os víamos correr desalmadamente em círculo, assustados com o barulho e convictos de que estavam a ser perseguidos por algo ameaçador e desconhecido. Quando os pobrezinhos tombavam, línguas de fora, olhos cerrados pelo desmaio, erguíamo-nos cheios de dores de barriga, caminhávamos até eles e cortávamos a guita que segurava as latas e as caricas e que tencionávamos usar para atormentar o próximo felino que se atravessasse à nossa frente.
Lavávamos as mãos e os pés nas casas de banho das estações de serviço e, se estivessem desertas, aproveitávamos para matar a fome do corpo e fazíamos amor em pé, dentro de uma cabine, silenciosamente. O frio dos azulejos aliviava-me o calor e, por isso, eu não me importava de ser empurrada contra as paredes sujas das cabines das casas de banho das estações de serviço enquanto fazíamos amor.
Depois comíamos e bebíamos do que houvesse enquanto ouvíamos as conversas dos outros. Não trocávamos palavra, nem entre nós, nem com estranhos. Limitávamo-nos a acenar com a cabeça à entrada e à saída e a levar as mãos aos chapéus em gesto de cortesia, sem que, contudo, fôssemos corteses.

I think I need to change my attitude,
I think I wanna change my oxygen,
I think I wanna change my air...

A cada paragem trocávamos de lugar. Quando nos aproximávamos do carro sabíamos já para que lado haveríamos de nos dirigir. Seguia-se o ritual de ajustamento dos bancos e dos retrovisores e logo a ignição soava e o motor começava a rugir. Fazíamo-nos à estrada e a única certeza que tínhamos era a de que a viagem se prolongaria enquanto víssemos rectas entrecortadas por curvas à nossa frente, enquanto nos guiassem duas linhas brancas paralelas.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car.
At the touch of a button
I can go anywhere I wanna go.

E era nesse exacto instante, em que um de nós esmagava o acelerador e os pneus do carro começavam a fustigar a areia, que sabíamos que a tormenta do calor, a tortura dos mosquitos, o incómodo dos cheiros pestilentos e da nossa própria sujidade e o desconforto de fazer amor em pé em casas de banho imundas seriam sempre suportáveis, desde que tivéssemos a companhia um do outro.

© [m.m. botelho], de partida, ao som de Bigger, Stronger, dos Coldplay, do EP Safety [1998].



I wanna be bigger, stronger, drive a faster car / To take me anywhere in seconds, / To take me anywhere I wanna go, / And drive around a faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I wanna be bigger, stronger, drive a faster car, / At the touch of a button / I can go anywhere I wanna go / And drive around my faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I think I wanna change my attitude / I think I wanna change my oxygen / I think I wanna change my air, / My amorous fear, I wanna choke.

1.10.06

«Os milagres acontecem a horas incertas»

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | outubro de 2006

Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Ana Paula Inácio [n. 1966] | Vago Pressentimento Azul por Cima | Editora Ilhas | Porto | 2000


Quando estás longe de mim, olho muitas vezes para o relógio. Temo que o Tempo possa acelerar de repente e me apanhe desprevenida. Nunca sei quando vais entrar por aquela porta para me dizeres que lá fora já chove, sacudindo a gabardina, essa tua gabardina preta, sombra esguia que te cobre o corpo nestes dias incertos de Outono.

© [m.m. botelho], ao som de Os Milagres Acontecem, poema de Ana Paula Inácio [n. 1966] musicado por A Naifa no álbum Canções Subterrâneas.