26.12.06

Como as gaivotas em terra

© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | setembro de 2006

- Que fazes, tonta, aí sentada à beira-mar?

Sou
como as gaivotas em terra.
Não sabem que esperam,
não sei que espero.
Quem passa augura:
«Vai tempestade
no mar.» Em mim,
tumulto de ventos,
destroços
submersos
em lágrimas.
Cada onda traz em si
estranho voltar.

Que faço eu, tonta, aqui
sentada à beira-mar?
Não sei que espero,
se desespero
pelo tornar.

Eis-me, tonta, aqui
sentada
por ti,
em ti
à beira-mar.

© [m.m. botelho]

24.12.06

A tesoura

Cortou cuidadosamente os pedacinhos de fita-cola. Mediu com régua e esquadro o papel de embrulho. Recortou-o com a velhinha tesoura que lhe deixara a tia Teresa, numa caixa de papel, forrada a veludo amarelo. Depois foi lavar as mãos. Esfregou-as com vigor. Cheirou vezes sem conta os dedos. Não gostava do aroma a ferrugem que lhe ficava nos dedos depois de cortar com a tesoura que lhe deixara a tia Teresa.
Sentou-se num dos bancos compridos, de reitoria, que ladeavam a mesa da cozinha e cobriu com o papel colorido todas as caixinhas de cartão. Depois, escreveu cuidadosamente o seu nome em cada uma das etiquetas.
«De: Teresa. Para: ti.»
Da tia Teresa herdara também o nome. Quando era criança, não gostava do nome Teresa, mas o passar dos anos vergou-lhe a vontade que tinha de se chamar Maria. Sempre que fazia uma travessura de criança, a mãe repreendia-a dizendo-lhe que jamais poderia ter-lhe posto o nome de Maria: «Estás bem longe da pureza de Nossa Senhora. És Teresa como a tua tia, que é tão mázinha quanto tu.»
A zanga da família com a tia Teresa teve um único motivo: uma fuga com um homem casado para Paris. Antes de partir, ela mesma agarrou na caixa de papel forrada a veludo amarelo e foi levá-la à sobrinha. «Toma. É para ti. Não tenho mais o que te deixar. Ao menos ficas com uma recordação minha, algo em que possas pegar e que te seja útil. Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora. Pode ser que um dia vás ver-me a Paris». Não foi.
Pousou as caixinhas de cartão revestidas a papel de embrulho debaixo do pinheiro. Desligou as luzinhas trémulas que piscavam a compasso e foi-se deitar. Dormiu toda a noite de um sono só.
Acordou estremunhada. Procurou o relógio em cima da mesa-de-cabeceira, esfregou os olhos e olhou para o vidrinho riscado. O marcador dos dias revelava o número por que há muito esperava: «25».
A custo, arrastou-se da cama para a sala e voltou a ligar as luzinhas do pinheiro. Pegou na primeira caixinha. Leu o cartão.
«De: Teresa. Para: ti.».
«Para mim?», pensou, e os olhos arregalaram-se como se ler aquele cartãozinho que ela própria havia escrito lhe houvesse trazido muita surpresa. Desembrulhou a caixa. Estava vazia. Depois leu os cartões de todas as outras caixas que desembrulhou zelosamente. Estavam todas igualmente vazias.
Para o fim, deixou uma caixa comprida, rectangular. O cartão que ostentava era idêntico a todos os outros.
«De: Teresa. Para: ti.».
Rasgou o papel. Olhou para as unhas e achou-as grandes. Abriu a caixa. Lá dentro, a tesoura da tia Teresa repousava em veludo amarelo. Pegou nela e começou a cortar as unhas das mãos, depois as dos pés.
«Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora.» Naquela manhã de Natal lembrou-se da tia Teresa, algures em Paris, se ainda fosse viva. E disse baixinho «obrigada», para lhe agradecer o singular presente que alguma vez recebera.

© [m.m. botelho], ao som de Merry Christmas, Mr. Lawrence, de Ryuichi Sakamoto, do álbum Merry Christmas, Mr. Lawrence: OST [1994].


19.12.06

Da cabeça aos pés

Felicien Rops [1833-1898] | Haisne et Amour de prestre sont de mesme Viol
c. 1878 | carvão, água a tinta-da-china e pastel
Galeria Derom | Bruxelas | Bélgica

Passei por ti ontem, na rua.
Seriam umas
seis da tarde.
Vestias preto
da cabeça aos pés.
Não reparei nos sapatos.
Seriam vermelhos?

Trazias pela mão o teu filho,
o filho que eu te fiz.
Dizem que tem os meus olhos,
o teu nariz.
Recordo com lucidez
a noite em que engravidámos.
E tu, ainda te lembras?

Disse-me, há tempos, o teu patrão
que lhe puseste o meu nome.
Porque é que o tratas só por «filho»?

O teu filho, o teu filho
esse filho que eu te fiz.

Engravidei-te, engravidámos
numa noite morna de Maio.
Cobri-te o rosto com ambas as mãos
e tatuei-te as entranhas
com sémen,
o meu sémen que era teu.

Engravidei-te, engravidámos
numa noite morna de Maio.
Passava das seis da tarde.
Vestias o mundo
inteiro
da cabeça aos pés.

© [m.m. botelho]

18.12.06

Canela

© [m.m. botelho] | manuscrito | dezembro de 2006

Queria polvilhar a tua voz com canela e mordê-la como se morde um pastel de nata. Apetece-me a tua voz doce, polvilhada com canela.
© [m.m. botelho], ao som de Métropolitain, de Emanuel Santarromana, do álbum Hôtel Costes, Vol. 6, compilado e misturado por Stéphane Pompougnac.

12.12.06

Fecha a porta quando saíres.

Já lavei a loiça,
limpei os copos,
os pratos e as panelas ficam a escorrer,
amanhã arrumo-os no armário.
Dobrei as tuas meias,
os pijamas,
as camisas.
Está tudo como tu gostas.
Ia aquecer-te leite no micro-ondas
- aqueci um pouco para mim -
mas depois lembrei-me de que talvez
prefiras chá.
O açúcar está no armário,
no mesmo sítio de sempre.
Hoje voltei a cruzar-me com o engenheiro
no elevador.
Perguntou por ti,
lembrou a conta do condomínio.
Está cada dia mais careca,
o estupor do engenheiro.
Estive a limpar a carpete.
Encheste a carpete de terra
com essas botifarras medonhas.
Gostava tanto que usasses sapatos,
pretos,
de sola e berloques.
Depois de arrumares o que é teu
- leva tudo de uma vez,
não deixes nada para trás -
mete as tralhas no elevador de uma assentada.
Oxalá não te cruzes com o engenheiro,
não vá pedir-te também a ti
que pagues a conta do condomínio.
Fecha a porta quando saíres,
mas deixa a luz acesa,
que quero guardar na memória
a tua imagem
ao ires embora
.

© [m.m. botelho]

11.12.06

Uma puta vulgar

© [m.m. botelho] | fotografia | lusitano | porto | setembro de 2006


Margarida caminhava nas pontas dos pés. Mal pousava o calcanhar no chão. Tinha receio de perder a pose. Todas as manhãs, quando acordava, corria para o guarda-fatos. Ansiava pelo dia em que se olharia no espelho, corpo inteiro, e gostaria do que visse. Margarida achava-se feia. E era.
Pousar inteiramente o pé no chão requer carisma, coisa que Margarida não tinha. Não sabia, simplesmente, se deveria pousar o pé todo de uma vez no chão, se primeiro a ponta e depois o calcanhar ou primeiro o calcanhar e depois a ponta. Evitava olhar para os pés enquanto caminhava, não fosse perder o norte. Margarida não sabia caminhar por instinto; tinha de prever exactamente onde pisava. No fundo, temia apenas calcar os dejectos de um cão vadio e ficar ainda mais suja do que o que já era.
Passava os dias deambulando de um lado para o outro, na esperança de ser abordada por um cliente que vestisse fato. Os clientes de Margarida usavam fatos-de-treino e pullovers, calças de ganga muito coçadas com camisas de flanela e botas sujas de terra que exalavam cheiros pestilentos quando descalçadas. Não raras vezes, sobrevinha-lhe o vómito em pleno acto. Enojavam-na os aromas baratos dos desodorizantes comprados no supermercado.
Gostaria de uma vez, ao menos uma vez na vida, ir para a cama com um homem que cheirasse a perfume e não a um reles after shave. Mas esse tipo de homens não olhava para Margarida. Não que não recorressem aos préstimos de prostitutas, mas de outra índole que não a dela. Margarida mantinha o secreto desejo de um dia vir a ser uma puta com classe. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa de uma puta vulgar.

Era Abril. Passava pela rua de Margarida um desses homens bem parecidos, asseados, bem vestidos, uns quatro ou cinco anos mais jovem do que ela. Margarida não hesitou. Abeirou-se dele e, lastimando-se, pediu ajuda ao pobre coitado, invocando um salto partido. O cavalheiresco indivíduo, sôfrego que estava de carícias e de quem o fizesse sentir-se alguém - perdera o emprego há dias e desde então deambulava pela cidade em busca de trabalho - ofereceu-se imediatamente para a acompanhar ao sapateiro. Margarida vestiu a pele de cordeiro e foi.
Fez-se pura aos olhos de Pedro - imaginemos, por momentos, que o rapaz se chamava Pedro - e desde então empenhou-se em prosseguir o seu objectivo. Talvez se se olhasse ao espelho de braço dado com Pedro se achasse mais bonita.
Casaram passados quatro meses. Ainda não têm filhos, mas estão a pensar seriamente nisso. Margarida faz amor com Pedro de quando em vez, se ele não está cansado ou não tem sono. Para poder casar rapidamente com Margarida, Pedro mudou de profissão. Nunca mais voltou a ser executivo. Agora é mineiro e, como as toupeiras, sabe sobreviver no escuro das profundezas. A princípio, a falta de ar das minas incomodava-o, mas, lentamente, foi-se habituando a respirar em pequenas golfadas. Pedro é versátil: respira como pode, fala como pode, pensa como pode, vive como pode e casou com quem pôde. Não é homem de grandes ambições e, por isso, a mediocridade basta-lhe.

Aos fins-de-semana, Pedro vai ver a mãe, acamada num lar. Margarida fica sozinha em casa. Remexe-lhe as coisas, abre-lhe as gavetas, vasculha-lhe os bolsos do casaco. Gosta de se limpar à toalha dele e de fazer as palavras cruzadas no jornal com a caneta que ele mete no bolso do peito. Acha que usar as coisas de Pedro aumenta a intimidade entre ambos. Por falar em intimidade, não vá o diabo tecê-las, não fazem muito barulho, à noite, na cama. Pouco conversam entre si. Margarida não gostava que os clientes falassem muito, preferindo que se aviassem depressa. Achava sempre que se demorasse muito, as prostitutas da rua lhe roubariam o cliente seguinte, ou formariam um maquiavélico esquema para lhe prejudicar o "negócio".
Às vezes, enquanto lava a loiça, Margarida olha Pedro de soslaio e interroga-se se ele gostará mesmo dela. Depois pergunta-lho de viva voz. Ele diz que sim. Lá dentro, Pedro ouve alguém dizer-lhe que acha que sim, que gosta dela e todos os dias vai achando que sim. Até um dia.
Depois de despejar a bacia e limpar as mãos molengonas ao pano, Margarida pede a Pedro que lhe dê o braço e vão juntos pôr-se diante do guarda-fatos.
Pedro não diz nada. Fica quedo, mudo. Ela mira a sua própria imagem reflectida no vidro. Margarida continua a ansiar pelo dia em que se olhará no espelho, corpo inteiro, e gostará do que vê. Margarida continua a achar-se feia. E é. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa, nunca passará, de uma puta vulgar.

© [m.m. botelho], ao som de Popless, dos G.N.R., do álbum homónimo lançado em 2000.



Maldito espelho devolveu a imagem dela sem reflectir / É um vicio danado aspirar o ar ao ela passar, / Vem o hábito ficar sentado e, deixá-la fugir / Fingir que passou ao lado, e vê-la zarpar...
Ai, lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce, / Lá vem ela mostrando interesse / Essa palavra, nesse popless. / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito acima, outro desce / Lá vem ela mostrando interesse / No que, no que cresce.
É uma pena ter ficado sentado e deixá-la jantar / Foi um erro declarado e culpado por ela sorrir.
Ai, lá vem ela sabendo que é bela / Que me escuta à janela. / Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa tudo mexe. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa, / Que a nossa cabeça fica á toa. / Lá vem ela sabendo que o interesse / De tudo isto é palavra popless.
Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce / Lá vem ela mostrando interesse / De resolver este popless. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa / E que esta cabeça ficou à toa / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito assim até mais cresce / Lá vem ela mostrando interesse / E lá vem ela sabendo que é bela / E que à janela eu fico à espera / À espera de vê-la...

5.12.06

Um bom começo

Auguste Rodin [1840-1917] | Par Abraçado | c. 1889
desenho a grafite, pena e tinta sobre papel
Museu Rodin | Paris | França

- Sabes a que cheira a ausência?
- A amoras silvestres, acabadas de colher das feridas que me rasgam a carne as noites que passo sem ti.

Ainda hei-de escrever um qualquer texto a partir destas linhas, que me parecem um bom mote. Quase tudo na vida se inicia sem que nos demos conta. O que importa é saber reconhecer e não desperdiçar - sobretudo, não desperdiçar - um bom começo.

© [m.m. botelho]