28.3.07

De tudo e em tudo

© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | março de 2007
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]

Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo.


Ruy Belo [1933-1978] | Todos os Poemas | Assírio & Alvim | 2004



O melhor reside no que julgamos, imersos na nossa-tão-nossa ignorância, serem as coisas infinitamente banais. Nada é banal aos olhos de quem sabe e quer ver.
Eu não espero nem busco menos do que a revelação de tudo em tudo, da primeira à última palavra.

© [m.m. botelho], ao som de Asas, de Adriana Calcanhotto, do álbum Marítimo [1998].

Suas asas amor quem deu fui eu / Para ver você conquistar o céu / Observe tudo em baixo ser menor do que você / Como tudo é / E enquanto arde a coragem dos desejos seus, / Sem véus / Abra seus poro e papilas e pupila / À luz da manhã / E muito acima de Ipanema, tão pequena, / Tão vã / Viva o prazer, o som, o estrondo de uma onda / Na arrebentação / Enquanto eu piro à sua espera na esfera / do chão.

Suas asas amor quem deu fui eu / Para ver você conquistar o céu / Observe tudo em baixo ser menor do que você / Como tudo é / E enquanto arde a coragem dos desejos, seus, / Proteus. / Abra seus poro e papilas e pupilas / À luz da manhã / E muito acima de Ipanema, tão pequena, / Tão vã / Viva o prazer, o som, o estrondo de uma onda / Na arrebentação / Enquanto eu piro à sua espera na esfera / do chão.

22.3.07

Dizem que a Primavera chegou

Descansarei no dia em que puder dizer-me com os teus lábios. Ser poesia declamada entre os teus dentinhos alvos, pequeninos, mordicantes. Um verso sumido escorrendo pelos teus lábios, flores de Março a desabrochar.

Dizem que a Primavera chegou. Cantam-me de ti ao ouvido as crianças que brincam no parque. À noitinha, também querem descansar no teu regaço de relva, adormecer no embalo da tua voz. E os meus e os seus cabelos serão dédalos percorridos pelos teus dedos enquanto o sono tomar conta de nós.

© [m.m. botelho]

16.3.07

16 de Março, outra vez

© m.m. botelho | fotografia | auto-retrato | 2006


Todas as coisas têm um começo e, provavelmente, um fim. Todas as viagens têm um ponto de partida e, à partida, um ponto de chegada. Não sei, ainda não sei, qual seja esse ponto. Vou aportando por aí, pelos sítios onde vou passando. Pernoito onde calha, se calhar. A todo o instante é sempre tempo de ir. E eu vou.

Um ano de Viagens Interditas.
Todos os lugares continuam longe daqui.

© [m.m. botelho]

11.3.07

Os dias do chá

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | março de 2007

Eu bebi, sem cerimónia, o chá...
um destes dias, deixaste-me a sonhar por ti.

© [m.m. botelho], ao som dos GNR, outra vez. E muitas vezes, muitas vezes, o carro a rodar estrada fora, e eu às pancadinhas no volante a gritar a plenos pulmões que «quero ve-e-er Portugal na CEE». Recordo-me desses dias inconsequentes ao som dos GNR. Aqui e agora a relembrar Ana Lee, do álbum Rock In Rio Douro [1992]. Alguém me disse ainda ontem: «those were the days». Então sonhava com agora; agora o então parece um sonho. Era eu uma «princesinha», num trono de jasmim.

Eu bebi, sem cerimónia, o chá
à sombra uma banheira decorada,
num lago de shampoo.

E dormi, como uma pedra que mata,
senti as nossas vidas separadas,
aquário de ostras cru.

Ana Lee, Ana Lee
meu lótus azul,
ópio do povo,
jaguar perfumado,
tigre de papel.
Ana Lee, Ana Lee
no lótus azul,
nada de novo
poente queimado,
triângulo dourado.

Se ela se põe de «vestidinha»
parece logo uma princesinha
num trono de jasmim.

E ao ver-me, embora em verde tónico,
no país onde fumam as cigarras,
deixei-a a sonhar por mim.

São unhas que gravam
as unhas que cravam
na pele em mim
Ana Lee
são mãos que plantam
são arroz chao chao.