30.4.08

Chinelos

Hoje arrumei os meus chinelos emparelhados com os teus na despensa. Fiquei a olhar para eles durante muito tempo, a ver como ficam bem os nossos chinelos lado a lado, sobre o branco frio do pavimento da despensa.
Antes, costumava pasmar, literalmente, durante horas perante as nossas escovas de dentes no mesmo copo. Olhava tanto para elas que quase as via enroscarem-se uma na outra, dizerem coisinhas bonitas e enamoradas ao ouvido uma da outra, rirem muito às gargalhadas do tubo de dentífrico, sempre tão inchado, tão sozinho e tão altivo no seu canto. Eu sei que por ti o nosso tubo de pasta de dentes teria como companheiro permanente outro tubo de pasta de dentes, mas parece-me um desperdício de dinheiro ter dois tubos de pasta de dentes abertos ao mesmo tempo. Além disso, as escovas, coitadas, haveriam de sentir-se apertadas, esmagadas uma de encontro à outra, e já não poderiam andar por ali a vaguear, dentro do copo, de mão dada.
A despensa é grande. Ainda podemos comprar muitos pares de chinelos, sapatos, botas, galochas e ténis e guardá-los lá, lado a lado, que nenhum deles se sentirá apertado. Tenho a certeza de que, por muito tempo, os nossos chinelos darão longos passeios a par. Passeios como os que nós damos quando os nossos corpos se encaixam debaixo dos lençóis e o odor dos teus cabelos é brisa que nos empurra, mar afora.

© [m.m. botelho]

23.4.08

Tudo é possível.

Eu quis muito amar-te.

[Quis muito aprisionar a noite dentro do meu carro, segurar entre os dedos os minutos que escorriam do meu relógio de pulso, emoldurar o teu rosto iluminado pelos faróis dos carros que passavam. Quis muito desenhar as curvas do teu corpo na lua cheia, contar cada um dos teus cabelos debaixo das árvores, resgatar-te àquele asfalto que os teus ténis calcavam. Quis muito suster a tua respiração no frio, prender o teu grito de gozo nos vidros embaciados, entrar em ti, ser o teu sangue. Quis muito permanecer entre os teus dentes com a forma do meu nome enlaçado no teu.]

É como te digo, eu quis muito amar-te, de todas as formas, as que cabem nas palavras e as que as extravasam, as que ficam presas na barragem do meu coração e as que passam as comportas do meu peito.

[Muito, de todas as formas, mesmo antes de te querer amar.]

Eu quis muito tudo isso e consegui.

[Desde então,]

acredito no que me disseste, que tudo é possível, mesmo o inesperado, mesmo o improvável, mesmo o imprevisto. Eu quis muito e assim foi.

[Quando Setembro chegar, vamos andar de bicicleta a par, mandar vir contra o vento, beber o sol, esvaziar o mar.]

© [m.m. botelho], ao som de Os dias são à noite, dos Madredeus, do álbum O Paraíso [1997]. Aqui na versão do álbum Euforia [2002], ao vivo, com a participação da Flemish Radio Orchestra.



os dias são à noite / e as noites são de dia. / se acordo contigo / a mim abraçado / o sono perdido / não deixa cuidado.
os dias são à noite / e as noites são de dia. / se acordo contigo, / se estou a teu lado, / é doce o caminho / deste meu fado.
os dias são à noite / e as noites são de dia.

9.4.08

Era uma vez

Quando olho para o castanho amendoado dos teus olhos, tenho vontade de me aninhar no teu peito, de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te, muito baixinho, a voz quase sumida, muito nasalada - as narinas invadidas pelo cheiro da tua roupa acabada de lavar -, que me contes uma história.
Depois fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...», enquanto os teus dedos esguios me afagam os cabelos.

Era uma vez...
... e contas-me a nossa história, sem príncipes nem princesas, sem castelos ou dragões, apenas a história de quem andava ali, num trilho muito próximo e paralelo sem nunca, no entanto, se haver cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos, a história dos nossos corpos vizinhos um do outro, a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente.
Era uma vez...
... e contas-me a história de uma tarde banal como qualquer outra, se exceptuarmos o facto de que foi uma tarde demasiado quente para aquela altura do ano. Contas-me como os meus dedos marcaram o teu número, como a tua voz delicada atendeu do lado de lá, falas-me da minha surpresa ao escutar-te e do sobressalto em que ficou o meu peito quando desliguei e me fiz à estrada, ao teu encontro.
Era uma vez...
... e contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como o meu corpo se fundiu no teu, como fiquei prisioneira de nós naquele nosso primeiro encontro, naquele nosso inesperado encontro. Dizes-me que fiquei refém de todas as tardes de Estio que se seguiram àquela, todas elas também demasiado quentes para a época. E relembras-me cada recado que te escrevi e tu nunca leste, cada palavra que te disse e tu nunca escutaste, cada beijo que te dei e tu nunca sentiste, cada pedido que te fiz e tu nunca atendeste.
Era uma vez...
... e contas-me como resististe às tuas certezas, como me fizeste sentir incrédula das minhas, como quase me levaste a desistir da ideia de nunca mais acordar para um dia em que tu não estivesses a meu lado. Trazes-me à memória que te despediste de mim como quem foge de si mesmo, que atravessaste aquela passadeira em passo rápido enquanto o meu carro ficou parado no sinal vermelho - um grande sinal vermelho, redondo, imenso, ofuscante, quente como as nossas tardes que nunca foram nossas. Recordas-me que nem sequer olhavas para mim, eu atrás daquele imenso pára-brisas e tu nem sequer voltavas a cabeça para ver se era mesmo eu ou apenas um carro igual ao meu. A cada pausa tua para respirar, é como se sentisse de novo como os teus ténis calcando o alcatrão me tatuaram a pele.
Era uma vez...
... e contas-me a história do nosso (re)encontro, novamente através de uma linha telefónica, novamente a tua voz delicada do lado de lá e o meu peito em sobressalto. E falas-me do nosso inesperado (re)encontro, aquele que eu sempre acreditei que aconteceria, mesmo quando deixei de acreditar que viria a acontecer.
Era uma vez...
... e daí em diante roubo-te a palavra e sou eu quem te fala de tudo quanto de nós fizemos desde então, de como as tardes se mostraram sempre quentes, independentemente do mês do calendário, de como não mais acordei para um dia em que tu não estivesses a meu lado.
Era uma vez...
... e, beijando-me a testa, rematas com um «viveram felizes para sempre». Sorrimos, as nossas bocas fecham-se num beijo e acreditamos que sim, embora tanto eu como tu saibamos que, «para sempre é sempre por um triz» e que a vida se encarregará de nos mostrar «se é perigoso a gente ser feliz»*.

© [m.m. botelho]

* Versos de «Beatriz», canção de Edu Lobo e Chico Buarque.

7.4.08

O amor que eu te tenho

Antes de tudo eras tu, eu e o resto do mundo que não víamos e que achávamos não existir.

No princípio era o amor que eu te tinha. No princípio, partindo do ponto de partida de tudo, recuando até ao início de nós, que foi quando eu abri aquela porta e te vi naquela cadeira, naquela mesa, naquela sala, olhando fixamente para a porta que eu abria, a porta que rangia ligeiramente, para o meu corpo a entrar na sala ao som dos meus passos apressados a rasgar o silêncio. No princípio era o amor que eu te comecei a ter dentro daquela sala e que foi saindo pelas frestas das janelas, por debaixo da porta e que se espalhou por todos os lugares. No princípio era o amor que te tenho e que ficou colado ao teu sorriso, à minha boca, aos estofos do meu carro e ao escuro das longas noites que passámos mesmo ali, junto ao começo do mar.
No fim – o fim de cada instante que percorre o tempo e a distância entre o passado e o futuro, continuamente –, ainda é o amor que tenho. Agora. Agora. Agora. Do princípio ao fim – a cada fim que passa, que é e já não é, para nunca mais voltar a ser, – apenas e só o amor que eu te tenho, fora daquela sala, dentro de mim, dentro de ti, em toda a parte.

© [m.m. botelho], ao som de Kiss Me, Oh Kiss Me, de David Fonseca, do álbum Dreams In Colour [2007].



so when the fight is over / and the storm is through / now will you pick another? / what will you get into?
so you stand in the corner / with those boxing gloves on you / you’re old, scared and lonely / yeah we've all been there too... / we've been all there too...
kiss me, oh kiss me / if that can make it right / try me, find me, / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might, take them home with me.
and the cracks in the pavement / yeah we've all fell there before / and bones built into skeleton / we've all been through that door.
kiss me, oh kiss me / if that can make it right / try me, find me, / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might...
kiss me, oh kiss me / will that make things right? / try me, find me / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might... / I just might, take you home.
kiss me, kiss me, / we've all been there too / kiss me, kiss me / we have all been there too. / kiss me, kiss me / we've all been there too / kiss me, kiss me / so kiss me...

2.4.08

Devoção

Orar com fervor no templo que é a tua boca.

© [m.m. botelho]