28.5.08

Na primeira noite em que disseste que me querias

tinha inúmeros papéis em cima da secretária
papéis que deixei ao abandono
na primeira noite em que disseste que me querias

a corrente de ar empurrou a porta
e ela fechou-se atrás de mim

algumas letras caíram no chão
outras voaram janela fora
desprenderam-se da tinta e partiram livres
para amar

foi na primeira noite em que disseste que me querias
que nasceram novas palavras
de paixão e vento

© [m.m. botelho]

20.5.08

Tarte de limão


© [m.m. botelho] | fotografia | 20 de maio de 2008

Mousse de chocolate. E mais houvesse. Barriga. E mousse. Afinal, uma fatia de tarte de limão a meias contigo. Já dividida, disse ele. Dois pratos, dois garfos, duas bocas. Uma fatia de tarte de limão a meias. E a vida inteira contigo.

© [m.m. botelho]

19.5.08

Denúncia e acusação pública de plágio

A 9 de Abril de 2008 escrevi e publiquei neste blogue um texto sob o título «Era uma vez» [ligação]. A 17 de Maio de 2008 aparece publicado noutro blogue, com o qual nada tenho que ver, assinado por alguém que se dá por "Sigur Head" [perfil no blogger] um texto intitulado «Era uma vez» [ligação].
Este texto é uma cópia do meu texto, cópia essa que não foi autorizada e da qual não consta a identificação da fonte de onde foi retirada. Comparem-se ambos os textos [os negritos são meus]:

- texto escrito e publicado por mim neste blogue:

«Quando olho para o castanho amendoado dos teus olhos, tenho vontade de me aninhar no teu peito, de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te, muito baixinho, a voz quase sumida, muito nasalada - as narinas invadidas pelo cheiro da tua roupa acabada de lavar -, que me contes uma história.
Depois fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...», enquanto os teus dedos esguios me afagam os cabelos.
Era uma vez... e contas-me a nossa história, sem príncipes nem princesas, sem castelos ou dragões, apenas a história de quem andava ali, num trilho muito próximo e paralelo sem nunca, no entanto, se haver cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos, a história dos nossos corpos vizinhos um do outro, a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente. [...]
Era uma vez... e contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como o meu corpo se fundiu no teu, como fiquei prisioneira de nós naquele nosso primeiro encontro, naquele nosso inesperado encontro. [...]»

- texto publicado no outro blogue:

«Quando te vejo tenho vontade de me aninhar no teu peito de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te baixinho que me contes uma história. Fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...» e contas-me a nossa história, apenas a história de quem andava ali num trilho muito próximo e paralelo sem nunca no entanto se ter cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente.
Era uma vez...
Contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como meu corpo se fundiu no teu.
[...]»


A isto se chama plágio, daquele mesmo descarado, feito por alguém que, provavelmente, não foi capaz de pensar pela sua própria cabeça e preferiu recorrer a essa prática que infelizmente prolifera um pouco por toda a parte, mas de modo particular na blogosfera, e que nos bancos da escola se chama, sem mais, «copianço». Às vezes copiam-se ideias, nos casos mais graves, copiam-se mesmo as expressões, como sucedeu aqui. Expressões inteiras, frases inteiras. Custa acreditar, mas é mesmo verdade. Está à vista.
Esta atitude revela um profundo desrespeito pelo processo criativo da obra literária, para além de evidenciar uma enormíssima falta de carácter. Não creio que se trate somente de falta de imaginação ou capacidade. É, acima de tudo, uma pública e notória demonstração de falta de vergonha, uma grandessíssima, inenarrável, inqualificável lata.

A propósito, vale a pena recordar algumas notas sobre os direitos de autor, permanentemente visíveis ao fundo deste blogue [acrescentando alguns esclarecimentos a negrito]:
» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
» Uma obra encontra-se protegida, logo que é criada e fixada sob qualquer tipo de forma tangível de modo directo ou com a ajuda de uma máquina [mesmo na blogosfera].
» A protecção das obras não está sujeita a formalização alguma. O direito de autor constitui-se pelo simples facto da criação, independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou registo [incluindo a blogosfera].
» O titular da obra é, salvo estipulação em contrário, o seu criador.
» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo [como, por exemplo, através de um blogue].
» O direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.

Solicito, pois, publicamente, a quem, sem autorização, plagiou o que eu escrevi que apague daquele texto o excerto copiado.

Adenda [em 19 de Maio de 2008, pelas 11h30]:
O texto em questão foi integralmente apagado. Por isso, aqui ficam duas imagens para documentar o sucedido e para que esta denúncia e acusação não fique desprovida de sentido. A primeira é a da pesquisa no Google que localiza o mesmo texto em ambos os blogues e a segunda é um print screan do post contendo o plágio a partir da cache daquele motor de busca [ligação provisória].



© [m.m. botelho]

16.5.08

A sétima curva


Wassily Kandinsky | Moscovo I | 1916
Tretyakov Gallery | Moscovo | Rússia


À sétima curva, ouviu os pneus do carro derraparem no asfalto. Sentiu os músculos das mãos rígidos, como que absolutamente imersos em goma-laca. Viu-se incapaz de controlar o volante girando entre os dedos. O som da borracha a derrapar no alcatrão ensurdeceu-a. Bateu com a cabeça no tejadilho, o cinto de segurança começou a asfixiá-la. O corpo sacudia-se ao ritmo das voltas que o carro dava. À sétima curva despistou-se.
Não soube contar o tempo até que parou, mas contou cada um dos rodopios. Um, dois, três, quatro. Ouviu o pára-brisas quebrar-se. Susteve a respiração o mais que pôde. O sangue começou a escorrer-lhe do nariz, quente, pastoso. Pensou que partira um braço, talvez uma perna, talvez as duas. Os pedais enredaram-se-lhe nos pés. Achou-se presa numa gaiola de lata e fumo.
Nos minutos que se seguiram ao embate lembrou-se de todas as pessoas a quem já não via há muitos anos. Pensou como o tempo e a distância, por muito curtos que sejam - podem divorciar-nos uns dos outros. Tanta gente do outro lado da cidade, apenas a meia dúzia de passos, e há tanto tempo se não viam. O turbilhão das manhãs de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre o casacão pesado. Tantos e tão genuínos motivos para regressar rapidamente a casa e adiar uma, outra, todas as vezes o cruzar de olhos com tanta gente de quem, desfalecendo naquele carro, sentiu repentinamente saudades.
Moscovo parecia-lhe sempre povoada de fantasmas, gente muito magra ou muito gorda, muito bela ou muito feia, muito jovem ou muito velha, mas toda ela desconhecida, gente que deslizava sobre as calçadas escorregadias, gente que mais não era do que manchas na paisagem, que mais não era do que a fumaça que lhe saía das bocas e rasgava o ar frio.
O corpo, dentro do carro, enregelava lentamente. À sétima curva, nem vivalma. Por aquela estrada não passava ninguém. Deixou-se ceder e afogar no sangue que lhe encharcava as roupas. A vista da cidade emoldurava-lhe o rosto maltratado pelo embate. Ao fundo,o turbilhão daquela manhã de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre muitos casacões pesados. À sétima curva, enfim, adormeceu e com ela levou Moscovo inteira na memória.

© [m.m. botelho]

Texto [também publicado aqui] escrito a convite do blogue «A Dobra do Grito», inserido no ciclo «Kandinsky provoca bloggers».

13.5.08

Sinto o sol por dentro

O dia está a terminar. O céu já não mostra o sol, as nuvens já não parecem tão brancas como o algodão ou as peúgas do barbeiro onde o meu pai corta o cabelo. Quando me lembro do barbeiro do meu pai, ouço o barulho do afã da pequenina tesoura que tem sempre entre os dedos. E vejo as madeixas de cabelo do meu pai caírem desamparadas no chão frio de linóleo da barbearia. A vassoura da menina Arminda há-de juntá-las a um canto. Mas isto já sou eu a perder-me nas palavras.

Todas as noites seguro entre as mãos as madeixas dos teus cabelos, separo-as com os dedos, sinto-lhes o cheiro do teu champô com extractos de argila. O sol mostra-se nos teus olhos. O cão adormece pachorrento aos nossos pés, a claridade do nosso amor não o perturba. É essa luz que me faz enfrentar todos os meus medos, que se dissipam, nuvens brancas como o algodão empurradas pelo vento. Contigo sinto o sol por dentro, mesmo se o dia já terminou.

© [m.m. botelho], ao som de Come Feel The Sun, dos Tindersticks, do álbum The Hungry Saw [2008].



why don't you come out / the guards have gone / they forgot their purpose and shuffled / their lungs have come feel the sun
why don't you come out / the dogs lie sleeping / their lips they twitch with the chills in their dreams / they come feel the sun
why don't you come out / and exact your revenge / and the liers and wasters / that call themselves friends / for to forgive is overrated / as they need but your affiance / so come feel the sun
why don't you come out / we are missing / your wife and babies / that just want to hold you / so come feel the sun / touch your fears / make everything the same as it was