31.10.08

O meu império

[m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | porto | outubro de 2008


Nunca gostei de chuva. Não foram poucas as vezes em que, na minha adolescência, apanhei o que se chamam «grandes molhas» à conta de teimar em recusar-me a usar chapéu-de-chuva. Tinha a mania de que se desejasse muito que não chovesse, não choveria.
Naquela altura eu queria ser livre, o mais leve possível, o mais desprendida do chão, do ar e das varetas dos chapéus-de-chuva que não tinham qualquer utilidade a não ser quando chovia. Naquela altura, eu ainda achava que era capaz de controlar o mundo ou, pelo menos, uma parte do mundo ou, vá lá, uma reduzida parte de uma insignificante vida que se movimentava num minúsculo mundo que era o meu império. Naquela altura, eu gostava de arriscar, de sair de manhã de casa a fazer apostas com a cor do céu, apostas pelas quais não tinha recompensa alguma quando ganhava, mas pelas quais arriscava orgulhosamente uma gripe quando perdia.
Eu costumava andar com os livros debaixo do braço, também eles batidos pela chuva quando ela caía, as folhas coladas que haveriam de encarquilhar-se quando secassem, as canetas a romperem-me os bolsos e a lapiseira de minas, a minha velhinha lapiseira de minas preta a furar-me o bolso de trás dos jeans enquanto caminhava.
Nos últimos dias de Outono eu tinha as mãos sempre frias, tão frias que nem sentia as pontas dos dedos. Não usar luvas era sinónimo de mais espaço nos bolsos do casaco para cigarros, isqueiros, walkmans, cassetes e outras coisas sem importância sem as quais na altura achava que não podia viver. As mãos enregelavam, era certo, mas o coração ficava mais quente ao som das canções das bandas que ao fim-de-semana nasciam nas garagens dos prédios dos amigos.
Todos os dias, ao final da manhã, eu fumava um cigarro debaixo da mesma árvore, mesmo quando chovia, mesmo quando estava frio. Os cigarros que fumei debaixo daquela árvore, no pátio do Liceu, foram os cigarros mais despreocupados da minha vida. Naquele tempo, eu não pensava sequer em nicotina, alcatrão, ou no mal que poderia fazer-me um maço de cigarros por dia.
Na verdade, na altura nada me fazia mal, eu não sentia frio, o mundo era ali, debaixo daquela árvore nos intervalos do Liceu, nas garagens aos fins-de-semana, junto às paredes , sob os beirais, nos dias de chuva. O mundo era onde eu estivesse. No meu mundo não era preciso usar chapéu-de-chuva, nem luvas, nem mochila. Eu mandava nas nuvens e aquela árvore do pátio do Liceu era só minha.

© [m.m. botelho], ao som de Fake Empire dos The National, do álbum Boxer [2007].



stay out super late tonight / picking apples, making pies / put a little something in our lemonade and take it with us / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire
tiptoe through our shiny city / with our diamond slippers on / do our gay ballet on ice / bluebirds on our shoulders / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire
turn the light out say goodnight / no thinking for a little while / lets not try to figure out everything at once / it’s hard to keep track of you falling through the sky / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire

8.10.08

Branco

Lia o jornal todas as manhãs. Gostava, de modo especial agora no Outono, de se ir sentar no cadeirão de vime da marquise e ler as notícias impressas naquele papel cinzento que lhe sujava as mãos, lhe encardia as unhas. Perdia-se nas letras e nas horas. Deixava-se envolver com aquela gente cujos nomes apareciam abreviados nas colunas do jornal e dali a pouco era essa gente. Tão depressa estava na China como numa aldeia, tão depressa era corrector numa bolsa como um camionista em greve na fronteira.
Um dia ficou especado perante uma fotografia na página da necrologia. Um homem como ele, exactamente como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o primeiro botão da camisa muito apertado, junto ao pescoço. Um homem como ele, da idade dele, ali, numa fotografia ao lado de uma cruz preta, de um nome e de uma família que agradecia a presença de todos quantos acompanharam o saudoso extinto ao local do seu repouso eterno. Poderia ser ele. Pensou que poderia ser ele e ficou a pensar nisso durante muito tempo.
Naquela tarde mal se levantou do cadeirão de vime, mal saiu debaixo da manta que lhe agasalhava os joelhos. Aquela fotografia, naquela folha, naquele jornal, naquele dia atormentavam-no.
À noite foi-se deitar. Abriu cuidadosamente os lençóis que a empregada havia esticado com afinco e sentiu o cheiro do sabão. Gostava do cheiro dos lençóis lavados como de nenhum outro e por isso a empregada pacientemente lhos esfregava e prendia debaixo do colchão. Não se deitou. Sentiu-se sujo, com o cabelo desgrenhado, a pele oleosa, os pés por lavar e os dedos das mãos, os dedos das mãos sempre amarelecidos do tabaco. Puxou os lençóis com força. Depois foi buscar a manta que deixara sobre o cadeirão de vime e cobriu com ela o colchão nu. Deitou-se ali, assim, vestido, sujo, encolhido sobre si mesmo.
Na manhã seguinte, voltou ao jornal, ao cadeirão, à sua manta sobre os joelhos, aos dedos sujos da tinta preta e do papel cinzento. E na página da necrologia, novamente, um homem como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o mesmo botão da camisa muito apertado contra o pescoço.
Mas naquela noite já não se deitou sozinho. Vieram os médicos e as enfermeiras amarrá-lo e deitá-lo na cama, temendo que voltasse a arrancar os lençóis. Ele continuou a sentir os pés sujos, a pele oleosa e os dedos, os dedos sempre tão amarelecidos pelo vício que tinha desde os 15 anos.
Antes de adormecer imaginou como seria aquele homem da página da necrologia aos quinze anos, ele tão jovem, ele tão velho, o peito nu a correr na rua e a jogar futebol, o primeiro botão da camisa tão apertado. Era ele, era ele, não fora os óculos, os óculos sem os quais não podia agora ler o jornal e era ele, não um gémeo, ele mesmo, sempre ele na página da necrologia, os lençóis tão lavados e os pés tão sujos, os lençóis tão brancos e aquela cruz tão preta cuja tinta lhe encardia as unhas.

© [m.m. botelho]