15.1.09

Tu não existes

Deixa-me pensar que tu não existes. Tudo parece - não sei se chega a ser, mas parece - muito mais fácil quando tu não estás dentro da minha cabeça, debaixo da minha pele, na minha expiração. Deixa-me pensar que tu não existes para mim, ainda que existas para lá de mim. Um pouco como o azul dos céus que não existe quando não o olho, um pouco como o frio que não sinto quando outros braços me abraçam.

Tu não existes, eu não existo e nós nunca fomos se a minha memória te apagar e não mais for possível misturar o meu corpo com o teu, o meu cheiro com o teu, as nossas salivas, as nossas línguas quentes e húmidas. Tu não existes, eu não existo e nós nunca fomos se nós não quisermos.

© [m.m. botelho]

4.1.09

Outra vez Janeiro

Entraste, pé ante pé, na grande sala. Eu dormia no sofá, coberta com uma manta - já não me lembro de que cor. Tinha o rosto meio iluminado pelo colorido intermitente das luzes da árvore de Natal, o braço direito pendente, roçando o tapete, os cabelos sobre a testa e os olhos, despenteados. Eu pressenti a tua entrada, mas deixei-me ficar mergulhada na sensação daquele despertar incompleto. Ouvia os teus passos, o ranger das portadas a abrirem-se, o som cada vez mais nítido do arrulhar dos pombos lá fora.
Abeiraste-te de mim e compuseste a manta, seguraste o meu braço, afastaste os cabelos do meu rosto. Depois disseste, muito baixinho - mal te ouvi - que o Natal já tinha passado, que o ano já tinha acabado, que já era Janeiro. Eu dormira todos aqueles dias seguidos, as horas engatadas umas nas outras como uma corrente que me prendia ao sono.

- Já é Janeiro.

disseste, muito baixinho - mal te ouvi.

Não sei porque continua a tua voz a despertar-me agora que a sala continua grande, mas já sem árvore de Natal, sem luzes coloridas intermitentes, as portadas sempre fechadas, o som do arrulhar dos pombos demasiado distante para que o pressinta. Talvez seja porque é outra vez Janeiro. Talvez seja porque as horas continuam engatadas umas nas outras como uma corrente que me prende a ti.

© [m.m. botelho]