24.4.07

À tua espera [parte 1]

Disseste que quando acabasses de limpar o 3.º esquerdo voltarias para casa. Fui adiantando o jantar, como me pediste. O arroz já está em papas.
Passa da uma da manhã. Estou sentado à mesa à tua espera. Bebi sozinho a garrafa de vinho que te deu a tua patroa do casarão do Largo das Rosas. Eu não teria a lata de oferecer um vinho destes a ninguém.
É curioso. As pessoas ricas acham sempre que os pobres não sabem apreciar o que é bom só porque nunca tiveram coisas boas. Enganam-se. Não sabemos o que é bom, de facto, porque nunca o tivemos, é verdade. Mas conhecemos o que é mau tão bem que sabemos que se algo é igual ao que sempre tivemos é porque não é bom.
Enfim, este vinho era mau; não terás grande pena de não o teres provado. Mas se a tua patroa do Largo das Rosas voltar a oferecer-te uma garrafa de vinho, ainda que seja igual a esta, aceita. Sempre me vai servindo de companhia para estas horas infinitas em que te espero.
Está uma pilha de louça na pia para lavar. Não a lavei, não mo pediste. Às vezes tenho vontade de te ajudar nas lides da casa, mas como nunca mo pediste, nunca o fiz. Não gosto de te contrariar. Assim podes continuar a dizer às tuas patroas e às tuas amigas que eu não faço nada a não ser que me peças.
Já somos casados há tanto tempo - há quanto tempo? - que continuamos a dizer o mesmo ainda que esse mesmo já não seja verdade. É sempre assim. Quando nos habituamos a ver os defeitos das outras pessoas nunca deixamos de os ver, ainda que eles deixem de existir. É por isso que há tanto tempo - há quanto tempo? - nos vemos do mesmo modo de cada vez que olhamos um para o outro.

[continua]

© [m.m. botelho]