8.10.08

Branco

Lia o jornal todas as manhãs. Gostava, de modo especial agora no Outono, de se ir sentar no cadeirão de vime da marquise e ler as notícias impressas naquele papel cinzento que lhe sujava as mãos, lhe encardia as unhas. Perdia-se nas letras e nas horas. Deixava-se envolver com aquela gente cujos nomes apareciam abreviados nas colunas do jornal e dali a pouco era essa gente. Tão depressa estava na China como numa aldeia, tão depressa era corrector numa bolsa como um camionista em greve na fronteira.
Um dia ficou especado perante uma fotografia na página da necrologia. Um homem como ele, exactamente como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o primeiro botão da camisa muito apertado, junto ao pescoço. Um homem como ele, da idade dele, ali, numa fotografia ao lado de uma cruz preta, de um nome e de uma família que agradecia a presença de todos quantos acompanharam o saudoso extinto ao local do seu repouso eterno. Poderia ser ele. Pensou que poderia ser ele e ficou a pensar nisso durante muito tempo.
Naquela tarde mal se levantou do cadeirão de vime, mal saiu debaixo da manta que lhe agasalhava os joelhos. Aquela fotografia, naquela folha, naquele jornal, naquele dia atormentavam-no.
À noite foi-se deitar. Abriu cuidadosamente os lençóis que a empregada havia esticado com afinco e sentiu o cheiro do sabão. Gostava do cheiro dos lençóis lavados como de nenhum outro e por isso a empregada pacientemente lhos esfregava e prendia debaixo do colchão. Não se deitou. Sentiu-se sujo, com o cabelo desgrenhado, a pele oleosa, os pés por lavar e os dedos das mãos, os dedos das mãos sempre amarelecidos do tabaco. Puxou os lençóis com força. Depois foi buscar a manta que deixara sobre o cadeirão de vime e cobriu com ela o colchão nu. Deitou-se ali, assim, vestido, sujo, encolhido sobre si mesmo.
Na manhã seguinte, voltou ao jornal, ao cadeirão, à sua manta sobre os joelhos, aos dedos sujos da tinta preta e do papel cinzento. E na página da necrologia, novamente, um homem como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o mesmo botão da camisa muito apertado contra o pescoço.
Mas naquela noite já não se deitou sozinho. Vieram os médicos e as enfermeiras amarrá-lo e deitá-lo na cama, temendo que voltasse a arrancar os lençóis. Ele continuou a sentir os pés sujos, a pele oleosa e os dedos, os dedos sempre tão amarelecidos pelo vício que tinha desde os 15 anos.
Antes de adormecer imaginou como seria aquele homem da página da necrologia aos quinze anos, ele tão jovem, ele tão velho, o peito nu a correr na rua e a jogar futebol, o primeiro botão da camisa tão apertado. Era ele, era ele, não fora os óculos, os óculos sem os quais não podia agora ler o jornal e era ele, não um gémeo, ele mesmo, sempre ele na página da necrologia, os lençóis tão lavados e os pés tão sujos, os lençóis tão brancos e aquela cruz tão preta cuja tinta lhe encardia as unhas.

© [m.m. botelho]