Michelangelo Buonarroti (1475-1564) | estudo para «O Juízo Final» (Capela Sistina)
figura de S. Lourenço | desenho a giz negro | c. 1545-6
The British Museum | Londres | Reino Unido
figura de S. Lourenço | desenho a giz negro | c. 1545-6
The British Museum | Londres | Reino Unido
Olhei ainda há pouco para o teu retrato. Ficaste bem, naquele retrato. A mão direita, lânguida, cobre-te parcialmente o rosto cuja inclinação obriga os anéis dos cabelos a libertarem-se uns dos outros e irem arrimar-se às unhas. As tuas unhas são as pestanas dos dedos: tens os olhos nas polpas desses dedos que tantas e tantas vezes passearam pelas páginas do livro que deixaste ainda aberto sobre a secretária...
Deixaste um livro aberto sobre a secretária. A leitura fica-te a meio, esquartejada na lombada grossa que agora repousa inerte sobre a madeira tíbia da mesa. Um destes dias, entra a claridade pela janela e deixa-se pousar naquelas letras até as secar e já ninguém as conseguir ler. A luz do sol tem o condão de haurir a tinta dos livros, dos papéis e dos retratos, em pequenos haustos... Vem sobre ela, depois, o Tempo e devora-a, espalhando o crepúsculo. Com a luz somos também nós que decaímos, empobrecemos.
O Tempo é uma gigantesca antologia de letras e luz que nos verga todos os dias e se dissolve em estilhaços de um mosaico que só daqui a muitos anos seremos capazes de decifrar. Então, possuiremos a sabedoria indispensável para conhecer se somos nós que consumimos o Tempo, se somos antes consumidos por ele.
O gesto largo e perene do Tempo é o esculpir dos nossos dias, que vão tomando feições que nos são estranhas porque dissemelhantes das que se fixam nos retratos. Na inevitável hora, o seu cinzel quebrar-nos-á o espelho da alma e deixaremos de ver com os olhos. E fecharemos, por fim, todos os livros que ficaram esquecidos em cima de todas as secretárias.
© [m.m. botelho], ao som de Actus Tragicus, cantata Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, BWV 106, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).
Coro
Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit: in ihm leben, weben, und sind wir, solange er will; in ihm sterben wir zur rechten Zeit, wenn er will.
O Tempo de Deus é o melhor de todos. Nele vivemos, nos movemos e existimos, tal como a Ele lhe apraz. Nele morremos na hora fixada, quando ele quer. (Actos dos Apóstolos, 17, 28)
Arioso (tenor)
Ach, Herr, lehre uns bedenken, daß wir sterben müssen, auf daß wir klug werden.
Ó Senhor, ensina-nos a contar os nossos dias para que sejamos prudentes. (Salmos, 90,12)
Ária (baixo)
Bestelle dein Haus; denn du wirst sterben und nicht lebendig bleiben.
Dá ordens em tua casa, porque morrerás e não viverás mais. (Isaías I, 38,1)
Coro
Es ist der alte Bund: Mensch, du mußt sterben!
És a antiga aliança: Homem, deves morrer! (Eclesiastes, 14,18)
Arioso (soprano)
Ja, komm, Herr Jesu, komm!
Vem, Senhor Jesus! (Apocalipse, 22,20)
Deixaste um livro aberto sobre a secretária. A leitura fica-te a meio, esquartejada na lombada grossa que agora repousa inerte sobre a madeira tíbia da mesa. Um destes dias, entra a claridade pela janela e deixa-se pousar naquelas letras até as secar e já ninguém as conseguir ler. A luz do sol tem o condão de haurir a tinta dos livros, dos papéis e dos retratos, em pequenos haustos... Vem sobre ela, depois, o Tempo e devora-a, espalhando o crepúsculo. Com a luz somos também nós que decaímos, empobrecemos.
O Tempo é uma gigantesca antologia de letras e luz que nos verga todos os dias e se dissolve em estilhaços de um mosaico que só daqui a muitos anos seremos capazes de decifrar. Então, possuiremos a sabedoria indispensável para conhecer se somos nós que consumimos o Tempo, se somos antes consumidos por ele.
O gesto largo e perene do Tempo é o esculpir dos nossos dias, que vão tomando feições que nos são estranhas porque dissemelhantes das que se fixam nos retratos. Na inevitável hora, o seu cinzel quebrar-nos-á o espelho da alma e deixaremos de ver com os olhos. E fecharemos, por fim, todos os livros que ficaram esquecidos em cima de todas as secretárias.
© [m.m. botelho], ao som de Actus Tragicus, cantata Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, BWV 106, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).
Coro
Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit: in ihm leben, weben, und sind wir, solange er will; in ihm sterben wir zur rechten Zeit, wenn er will.
O Tempo de Deus é o melhor de todos. Nele vivemos, nos movemos e existimos, tal como a Ele lhe apraz. Nele morremos na hora fixada, quando ele quer. (Actos dos Apóstolos, 17, 28)
Arioso (tenor)
Ach, Herr, lehre uns bedenken, daß wir sterben müssen, auf daß wir klug werden.
Ó Senhor, ensina-nos a contar os nossos dias para que sejamos prudentes. (Salmos, 90,12)
Ária (baixo)
Bestelle dein Haus; denn du wirst sterben und nicht lebendig bleiben.
Dá ordens em tua casa, porque morrerás e não viverás mais. (Isaías I, 38,1)
Coro
Es ist der alte Bund: Mensch, du mußt sterben!
És a antiga aliança: Homem, deves morrer! (Eclesiastes, 14,18)
Arioso (soprano)
Ja, komm, Herr Jesu, komm!
Vem, Senhor Jesus! (Apocalipse, 22,20)