4.2.11

Anatomia da alma

«Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado. Os meus amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza.»

Edvard Munch [1863-1944],
descrição do cenário que deu origem ao quadro «O grito» [1883]


Percorri muitos trilhos com amigos. Um dia, dei por mim esgotada. Sentei-me na berma da estrada, olhando o caminho que fizera. Passou muito tempo.

Encontro-me ainda neste sítio. Aqui escolhi parar e enfrentar tudo: vendavais, chuvas torrenciais, terramotos, a guerra. Vi brotar algumas rosas, rosas vermelhas, a quem a manhã deu a cor com a sua morte. Todos os dias vi chegar muitas gentes, muitos mundos, o desconhecido. Também esses partiram e eu fiquei só no céu aberto. Quando chega a noite, todas as noites, abraço-me à escuridão que sei de cor.

Eis-me na berma da estrada, cansada como ela, batida dos passos e dos pneus dos carros que a fustigam. Eis-me aqui, onde enfrentei o bem e o mal e experimentei os seus sabores. Aqui, neste chão de pó que me serve de amparo, escrevi a minha vida.

Os meus amigos, esses, ainda hoje continuam a andar em frente. Correm a esconderem-se na multidão, temendo, sem dúvida, suportarem-se a si próprios.

© [m.m. botelho]