9.4.08

Era uma vez

Quando olho para o castanho amendoado dos teus olhos, tenho vontade de me aninhar no teu peito, de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te, muito baixinho, a voz quase sumida, muito nasalada - as narinas invadidas pelo cheiro da tua roupa acabada de lavar -, que me contes uma história.
Depois fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...», enquanto os teus dedos esguios me afagam os cabelos.

Era uma vez...
... e contas-me a nossa história, sem príncipes nem princesas, sem castelos ou dragões, apenas a história de quem andava ali, num trilho muito próximo e paralelo sem nunca, no entanto, se haver cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos, a história dos nossos corpos vizinhos um do outro, a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente.
Era uma vez...
... e contas-me a história de uma tarde banal como qualquer outra, se exceptuarmos o facto de que foi uma tarde demasiado quente para aquela altura do ano. Contas-me como os meus dedos marcaram o teu número, como a tua voz delicada atendeu do lado de lá, falas-me da minha surpresa ao escutar-te e do sobressalto em que ficou o meu peito quando desliguei e me fiz à estrada, ao teu encontro.
Era uma vez...
... e contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como o meu corpo se fundiu no teu, como fiquei prisioneira de nós naquele nosso primeiro encontro, naquele nosso inesperado encontro. Dizes-me que fiquei refém de todas as tardes de Estio que se seguiram àquela, todas elas também demasiado quentes para a época. E relembras-me cada recado que te escrevi e tu nunca leste, cada palavra que te disse e tu nunca escutaste, cada beijo que te dei e tu nunca sentiste, cada pedido que te fiz e tu nunca atendeste.
Era uma vez...
... e contas-me como resististe às tuas certezas, como me fizeste sentir incrédula das minhas, como quase me levaste a desistir da ideia de nunca mais acordar para um dia em que tu não estivesses a meu lado. Trazes-me à memória que te despediste de mim como quem foge de si mesmo, que atravessaste aquela passadeira em passo rápido enquanto o meu carro ficou parado no sinal vermelho - um grande sinal vermelho, redondo, imenso, ofuscante, quente como as nossas tardes que nunca foram nossas. Recordas-me que nem sequer olhavas para mim, eu atrás daquele imenso pára-brisas e tu nem sequer voltavas a cabeça para ver se era mesmo eu ou apenas um carro igual ao meu. A cada pausa tua para respirar, é como se sentisse de novo como os teus ténis calcando o alcatrão me tatuaram a pele.
Era uma vez...
... e contas-me a história do nosso (re)encontro, novamente através de uma linha telefónica, novamente a tua voz delicada do lado de lá e o meu peito em sobressalto. E falas-me do nosso inesperado (re)encontro, aquele que eu sempre acreditei que aconteceria, mesmo quando deixei de acreditar que viria a acontecer.
Era uma vez...
... e daí em diante roubo-te a palavra e sou eu quem te fala de tudo quanto de nós fizemos desde então, de como as tardes se mostraram sempre quentes, independentemente do mês do calendário, de como não mais acordei para um dia em que tu não estivesses a meu lado.
Era uma vez...
... e, beijando-me a testa, rematas com um «viveram felizes para sempre». Sorrimos, as nossas bocas fecham-se num beijo e acreditamos que sim, embora tanto eu como tu saibamos que, «para sempre é sempre por um triz» e que a vida se encarregará de nos mostrar «se é perigoso a gente ser feliz»*.

© [m.m. botelho]

* Versos de «Beatriz», canção de Edu Lobo e Chico Buarque.