11.6.08

De um azul tão bonito de que eu gosto tanto

© [m.m. botelho] | fotografia | junho de 2008

1.
Deixei-me ir pela noite dentro agarrada ao computador, aos livros, às montanhas de folhas de papel que me enchem a secretária, ao meu lápis Staedtler «Mars Lumograph» HB azul, de um azul tão bonito de que eu gosto tanto. Deixei-me ir pela noite dentro a escrever, a riscar, a sublinhar, às vezes segundo a orientação da régua, outras a pulso livre. Tu sabes bem como eu gosto de trabalhar às horas tardias, quando a cidade já dorme, os carros escasseiam e eu posso ter a ilusão de que estou sozinha no mundo, debaixo do céu escuro, apenas eu e o som da música que toca no leitor de cd. Tu sabes melhor do que ninguém que eu me deixo entusiasmar pelo som enternecedor do meu teclado esmagado sob os meus dedos, este teclado sem fios supostamente tão moderno que me impingiram por um pequeno balúrdio.

2.
Se ainda não estou na cama contigo, a teu lado, o meu corpo ao lado do teu, sobre o teu, dentro do teu, é porque a noite me chama para que escreva, para que a escreva, para que me escreva e eu não posso dizer-lhe que não, nem fazê-la esperar. A noite está sempre cheia de pressa como eu, sôfrega de gente que possa tornar noctívaga e roubar a camas quentes como a nossa.

3.
Há ainda tanto por fazer. Quase parece que comecei agora e que hoje é sempre ontem na corrida contra o tempo. Às vezes imagino que não vou conseguir respeitar o prazo e tenho vontade de sair por aí a riscar as paredes da casa, todas as paredes de todas as divisões da casa inteira, carregando muito no lápis, partindo o bico no fim de cada linha só para ter de o afiar, afiar, afiar, afiá-lo até desaparecer todo o azul e restar só a extremidade preta, pequenina, a confundir-se com a noite e a perder-se nela. E todos estes livros e papéis evaporar-se-iam no ar, como o fumo dos cigarros, e deixariam, simplesmente, de existir.

4.
Não importa o que diga, a verdade é só uma: eu gosto de estar aqui, soterrada nas minhas preocupações, a queixar-me de que durmo mal há anos porque há anos que me deito com algo para fazer no dia seguinte. Tu sabes que eu costumo dizer que só queria acordar uma manhã e não ter nada que fazer, nenhum sítio onde ir, ninguém com quem falar. Acho que gostaria de saborear uma manhã em que os meus olhos se abrissem por vontade própria e eu ficasse ali, estática, debaixo dos lençóis a cheirarem a lavado a olhar para o tecto do quarto, sem dizer nada, sem pensar em nada a não ser na felicidade imensa que imagino que seja acordar a não ter uma única preocupação a atormentar-me o espírito e a carne.

5.
Prometi a mim mesma que isto haveria de sair de mim, de se despegar da minha roupa e de me encher os dias do calendário. Não quero passar o resto da vida a pensar que é amanhã, que é depois, que é depois de depois, que é no dia seguinte. De uma vez por todas, quero poder engavetar os lápis, encadernar papéis e arrumar os livros na estante.

6.
Antes de subir para me ir deitar, costumo pensar no quanto tudo ficou mais fácil desde que tu chegaste. Sei-te aqui ou seja onde for, mas sei-te sempre comigo. Deve ser por isso que ninguém me leva muito a sério quando me ponho a zurzir contra tudo e contra todos, a maldizer a minha vida, as minhas escolhas, a achar-me a mais miserável de todas as criaturas humanas. Desde a tua chegada, ninguém acredita que eu possa ser outra coisa que não seja feliz. Todos gabam a paciência com que tu, todas as noites, a par do sono, vens e me tiras os óculos, os dobras cuidadosamente e pousas sobre a secretária. Todos gabam o modo carinhoso como me afagas os cabelos e me lembras que são horas de dormir. Invariavelmente, eu deixo-me guiar pela tua mão, o corpo aos trambolhões escadaria acima. Tombo na cama e adormeço profundamente. Tu voltas a descer para caiares as paredes da casa que eu risquei e reconstruíres estes lápis que eu triturei no afiador, estes lápis azuis, de um azul tão bonito de que eu gosto tanto. Eu nem dei por nada, mas agora sinto-o por inteiro: tudo ficou bem melhor depois de tu chegares.

© [m.m. botelho], ao som de The Build-Up, dos Kings of Convenience (aqui com a participação de Feist), do álbum Riot On An Empty Street [2004].



the build up lasted for days / lasted for weeks, lasted too long
our hero withdrew, when there was two / he could not choose one, so there was none
worn into the vaguely announced / worn into the vaguely announced
the spinning top made a sound like a train across the valley / fading, oh so quiet but constant 'til it passed / over the ridge into the distances / written on your ticket to remind you where to stop / and when to get off