- Eu sei que pode até parecer ridículo, mas palavra de honra que eu tinha aqui à mão, para quando tu entrasses por aquela porta, um disco do Sérgio Godinho para pôr a tocar. Eu sei que tu gostas de Sérgio Godinho e queria fazer-te a surpresa, embora não fosse surpresa nenhuma porque se tu gostas assim tanto de Sérgio Godinho é óbvio que já deves ter ouvido todos os discos dele e provavelmente até sabes as letras todas de cor e salteado e as músicas e até deves ter um álbum ou, ao menos, uma canção, sim, ao menos, deves ter uma canção que seja a tua favorita e que gostes de ouvir mais do que todas as outras, embora, claro, se dizes que gostas assim tanto de Sérgio Godinho, devas ouvir todas as canções indiscriminadamente com o mesmo gosto e, se calhar, até nem tens uma canção ou um álbum favorito. Mas é como te digo, andava aqui à procura desse tal disco e agora não o encontro. Já deves estar a pensar que eu sou um grande palerma por não saber onde enfiei o disco, mas não. Não é que eu seja palerma, eu sou é distraído, porque às tantas peguei no disco e levei-o para algum lado, às tantas está no quarto, ou na cozinha, ou na casa-de-banho, pousado sobre uma cadeira qualquer ou às tantas até caiu para debaixo de algum móvel, que os discos são tão finos, às vezes escorregam de dentro das capas e nós nem nos damos conta, só se derem estrondo ao caírem no chão, senão até rolam para debaixo dos móveis e nós não nos damos conta. O que é certo é que o disco não deve estar aqui, caso contrário já o teria encontrado, aqui, debaixo destes copos e destes jornais que não tive tempo de arrumar mas que queria ter arrumado antes de tu entrares por aquela porta. Isto porque eu queria que tudo fosse perfeito quando tu entrasses por aquela porta, tu com os teus passos largos e decididos, as calças à boca de sino a dançarem de um lado para o outro, as solas dos teus sapatos a pisarem o chão com tanta força que os móveis quase abanam. Eu queria que fosse tudo tal e qual eu imaginei quando tu entrasses por aquela porta, que te sentasses neste sofá, que me pedisses um copo de qualquer coisa e eu te oferecesse gin e tu me pedisses gelo e limão e eu fosse a correr à cozinha buscar as pedrinhas que já estão separadas dentro do congelador à espera de serem chamadas a esfriar a tua bebida. Eu queria que fosse tudo previsível quando tu entrasses por aquela porta, que tirasses os óculos e os pousasses sobre este livro que eu deixei em cima desta mesinha que pus aqui ao pé do sofá, que penteasses os cabelos com os dedos e me pedisses que te fizesse uma massagem no pescoço, reclinando o corpo sobre o meu peito, o meu peito que haveria de ter dentro um coração a bater tão rápido e tão alto que se ouviria no corredor do prédio. Eu queria fosse tudo do teu agrado quando tu entrasses por aquela porta, que elogiasses este par de almofadas que comprei há dias numa loja em saldos a pensar em ti e no quanto tu gostas desta cor, que inspirasses longamente o aroma do incenso que eu pus a queimar quando me disseste que vinhas, que achasses este cinzeiro em forma de pato uma peça bonita e de bom gosto, que o gin não estivesse demasiado quente dentro do copo nem demasiado frio dentro da tua boca. Eu queria que fosse tudo tal e qual como eu queria quando tu entrasses por aquela porta, que os teus lábios dissessem três ou quatro palavras e que depois viessem beijar os meus para neles deixarem o sabor do gin, quem sabe, até que me dissesses que me amas e eu ficasse meio zonzo dentro desta camisa e destas calças que escolhi minuciosamente para usar esta noite. Mas isto tudo, é claro, só poderia acontecer se eu encontrasse o disco do Sérgio Godinho e o pusesse a tocar, o disco que eu ia jurar que tinha deixado aqui em cima mas que afinal, por mais voltas que dê, não encontro. Mas deixa-me ir ao quarto, só pode estar em cima da cama, sim, agora me lembro-me que o levei comigo para o quarto quando fui certificar-me em frente ao espelho que a camisa não me está demasiado justa nem demasiado larga, a mim, que não tenho uma constituição por aí além e que tenho este aspecto franzino de quem vai estilhaçar-se a qualquer momento.
Foi ao quarto. Demorou-se, talvez, meia dúzia de minutos. Apenas o tempo de abrir a porta do guarda-fatos, ver-se ao espelho de corpo inteiro, ajeitar a camisa que afinal lhe ficava mesmo demasiado larga, sacudir as calças, limpar o suor que lhe escorria da testa, pentear os cabelos, cofiar as patilhas e a barba, ajeitar os óculos, enfim, engolir em seco e respirar fundo três ou quatro vezes antes de a enfrentar novamente.
Quando voltou, a sala estava vazia. Sobre o sofá onde ela se sentara o disco do Sérgio Godinho que ele em vão tanto procurara e sobre o disco um bilhete com duas linhas escritas em letra apressada: «Esteve sempre aqui, mas tu nem o viste. Se ao menos tivesses olhado para mim... Se ao menos fosses antes um palerma e não tão distraído...».
© [m.m. botelho], ao som de Às Vezes o Amor, de Sérgio Godinho, do álbum Ligação Directa [2006].
que hei-de eu fazer / eu tão nova e desamparada / quando o amor / me entra de repente / p'la porta da frente / e fica a porta escancarada?
vou-te dizer / a luz começou em frestas / se fores a ver / enquanto assim durares / se fores amada e amares / dirás sempre palavras destas
p'ra te ter / p'ra que de mim não te zangues / eu vou-te dar / a pele, o meu cetim / coração carmesim / as carnes e com elas sangues
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e se um dia a razão / fria e negra do destino / deitar mão / à porta, à luz aberta / que te deixe liberta / e do pássaro se ouça o trino?
por te querer / vou abrir em mim dois espaços / p'ra te dar / enredo ao folhetim / a flor ao teu jardim / as pernas e com elas braços
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
mas se tudo tem fim / porquê dar a um amor guarida / mesmo assim / dá princípio ao começo / se morreres só te peço / da morte volta sempre em vida
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e o dia tão diário disso tudo / da morte volta sempre em vida
Foi ao quarto. Demorou-se, talvez, meia dúzia de minutos. Apenas o tempo de abrir a porta do guarda-fatos, ver-se ao espelho de corpo inteiro, ajeitar a camisa que afinal lhe ficava mesmo demasiado larga, sacudir as calças, limpar o suor que lhe escorria da testa, pentear os cabelos, cofiar as patilhas e a barba, ajeitar os óculos, enfim, engolir em seco e respirar fundo três ou quatro vezes antes de a enfrentar novamente.
Quando voltou, a sala estava vazia. Sobre o sofá onde ela se sentara o disco do Sérgio Godinho que ele em vão tanto procurara e sobre o disco um bilhete com duas linhas escritas em letra apressada: «Esteve sempre aqui, mas tu nem o viste. Se ao menos tivesses olhado para mim... Se ao menos fosses antes um palerma e não tão distraído...».
© [m.m. botelho], ao som de Às Vezes o Amor, de Sérgio Godinho, do álbum Ligação Directa [2006].
que hei-de eu fazer / eu tão nova e desamparada / quando o amor / me entra de repente / p'la porta da frente / e fica a porta escancarada?
vou-te dizer / a luz começou em frestas / se fores a ver / enquanto assim durares / se fores amada e amares / dirás sempre palavras destas
p'ra te ter / p'ra que de mim não te zangues / eu vou-te dar / a pele, o meu cetim / coração carmesim / as carnes e com elas sangues
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e se um dia a razão / fria e negra do destino / deitar mão / à porta, à luz aberta / que te deixe liberta / e do pássaro se ouça o trino?
por te querer / vou abrir em mim dois espaços / p'ra te dar / enredo ao folhetim / a flor ao teu jardim / as pernas e com elas braços
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
mas se tudo tem fim / porquê dar a um amor guarida / mesmo assim / dá princípio ao começo / se morreres só te peço / da morte volta sempre em vida
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e o dia tão diário disso tudo / da morte volta sempre em vida