28.7.08

«Os fumadores morrem prematuramente.»

A chama era alta e quente, ainda mais quente do que o sol que durante o dia tinha entrado pela vidraça e obrigara o gato a ir esconder-se debaixo da secretária, dentro do cesto dos papéis.

Papéis, papéis, papéis.

Não queimava nada mais do que isso e no entanto queimava-se a si mesma naquela labareda que lhe enchia os olhos de cor. Desde a primeira noite daquela ausência que tinha sempre os olhos negros, como que sem vida, desinteressados de tudo e de todos. Tinham já passado largos meses e ela continuava, acima de tudo, desinteressada de si própria.
Pensara enterrar-se no quintal, debaixo da terra húmida, e deixar-se ficar ali até que a fome ou a sede a viessem matar, mas faltava-lhe a paciência para se deixar morrer lentamente de forma consciente. Um amigo próximo dizia-lhe com frequência que a matar-se aos poucos andava ela, por se vergar perante a solidão. «A vida é feita de ausências, de chegadas e partidas, de braços a acenar e de bocas mudas que saem sem tugir nem mugir», concluía o amigo, mas ela parecia não ouvir, como parece sempre não ouvir quem o não quer fazer.

Tinha deixado de fumar, mas uma manhã acordou e achou que o seu corpo sentia falta de nicotina, de algo que a fizesse descolar daquela letargia nem que fosse por breves minutos. Da nicotina, sim. Era, de repente, uma imensa falta de nicotina a entranhar-se-lhe nos ossos. Vestiu-se sem se lavar e atravessou a rua sem olhar. Um carro que passava buzinou-lhe e o condutor gritou-lhe da janela que olhasse por onde andava, pois era demasiado jovem e bonita para morrer tão cedo.
Comprou um pacote de cigarros que tinha inscrito «Os fumadores morrem prematuramente» e sorriu porque se lembrou-me do comentário do condutor que quase a atropelara. «Nunca estamos a salvo», pensou, antes de olhar para a direita, depois para a esquerda e depois novamente para a direita, e atravessar a estrada.
Mal se achou em casa, acendeu um cigarro e inspirou sofregamente o fumo. Sentiu as narinas dilatarem-se, o peito encher-se de ar, a cabeça ligeiramente às voltas. Não fumava havia muito tempo, já quase não sabia como se segurava entre os dedos um cigarro sem o esmagar. Desde esse dia passou a comprar cigarros todas as segundas-feiras e a fumá-los durante a semana.

Foi num sábado à tarde, enquanto pasmava em frente à televisão, que, ao acender um cigarro, reparou na beleza azulada do centro da chama que o riscar do fósforo produzira. Nunca vira um azul tão bonito, tão translúcido, tão diluído com aquele que tremeluzia por detrás da ponta do cigarro. Fumou todos os cigarros que tinha em casa, todos os cigarros que era suposto durarem até segunda-feira de manhã. Achou que ia sentir-se enjoada, mas não. Tudo parecia insignificante se comparado com a sensação de euforia causada por aquela cor azul.
A noite foi entrando. O silêncio instalara-se entre o pacote de cigarros vazio, o seu corpo sozinho em casa, a televisão muda porque não passava nada de interessante, os livros a ganharem pó nas estantes, o gato quieto na almofada. A euforia desapareceu para dar lugar apenas a uma memória que parecia queimá-la por dentro. E nesse fogo ardiam as saudades trazidas por aquela ausência que ainda a consumia.

Levantou-se e foi à cozinha buscar a lata. Todos a achavam um tanto excêntrica por guardar cartas de amor entre o chá e não em delicadas caixas de veludo e papel, como era suposto. Bilhetes de viagens, de concertos, de sessões de cinema e teatro, umas quantas entradas de museu, guardanapos de papel, contas de cafés e pastéis de nata, post-it de várias cores e folhas de tamanho A4 muito dobradas, com os vincos já muito gastos e rotos, tudo numa mistura inseparável e impossível de organizar, tal como a sua vida. Enquanto remexia na papelada, lembrou-se das palavras do amigo - «A matares-te aos bocados andas tu.» - e chorou. Sentiu pena de si mesma, dos seus cabelos compridos em desalinho, muitos deles já brancos, expostos, como que desnudados aos olhares complacentes dos poucos que a visitavam esporadicamente. Olhou para as mãos e pareceu-lhe ver mais rugas do que ontem. Era o pico do Verão e ela era absolutamente invernal, tão fria, tão fria que era precisa a euforia da chama de um fósforo para que sentisse algum calor.

Espalhou pelo chão as suas cartas de amor que mais não eram do que recortes daqueles anos em que tinha deixado de fumar, em que a vida lhe parecera suficientemente preciosa para não a desperdiçar em expirações de fumo e dedos amarelos. Pegou num fósforo e acendeu com ele todos os papéis que conseguiu.

Papéis, papéis, papéis.

Não queimava mais do que isso e era ela mesma quem ardia no chão da sala, encarquilhando-se depois do lume a consumir, enegrecendo e desfazendo-se como cinza. Nos minutos que se seguiram, ela não foi mais nada senão as suas próprias cartas de amor, as suas memórias, o seu lixo acumulado numa lata de chá. E sentia-se desfalecer à passagem daquele azul tão bonito, tão translúcido, tão diluído que nascia do centro das chamas.
O gato fugira. Talvez estivesse outra vez enfiado no cesto dos papéis. Pensou na sorte do gato, que era tanta: bastava-lhe fugir para debaixo da secretária e tudo se resolvia. Foi enfiar-se também ela debaixo dos lençóis e não quis pensar em mais nada.

No domingo de manhã, com as cinzas, enterrou definitivamente no jardim as memórias e a ausência daquele amor epistolográfico. Tal como imaginara no primeiro dia de solidão, assim se sepultou a ela mesma, no quintal, debaixo da terra húmida e deixou-se ali morrer lentamente de forma consciente.

© [m.m. botelho]