Tu não vais a lugar nenhum. Foi assim, com esta frase, que tu tentaste impedir-me de sair. O tom era de sentença de morte, mas nunca vi um juiz bradar decisões em pijama, o cabelo desgrenhado, o jornal diário a escorrer-lhe da mão direita e a chávena de café a fumegar na esquerda. Eu nunca vi, mas de tribunais e juízes e sentenças conheço pouco e a acreditar na lentidão que atribuem aos processos se calhar até há quem durma nos tribunais e não tenha tempo de tomar banho e o pequeno-almoço antes de se pôr a cagar leis.
Eu ainda me detive durante uns minutos com a porta aberta, a mão húmida a segurar a mala, o sobretudo no braço, a olhar para ti na surpresa daquela tua afirmação. Parecias tão certo de que eu não iria a lado nenhum que, por momentos, até achei que era mesmo verdade, que eu não ia sair, que ia ficar ali, naquela sala fria e despida até que tu me desses ordem de liberdade.
Só passados uns bons minutos me dei conta de que tu não és juiz e, portanto, não cagas leis na minha vida e, assim sendo, era a mim e só a mim que cabia a decisão de transpor aquela linha que separava a entrada de casa do corredor sujo do prédio.
Esperei não sei quanto tempo – a mim pareceu-me muito tempo, mas eu nunca tive grande queda para a contabilidade – por mais uma palavra, por um gesto, por qualquer coisa de surpreendente que me prendesse, que me fizesse querer ficar, que mudasse a minha vontade de sair da tua vida ou da minha, já não sei, mas nem uma palavra, nem um gesto, nada de surpreendente.
Tive pena de ti, dos teus olhos afogados em duas profundas olheiras, do teu pijama enrugado e velho e dos teus dentes amarelos do café. Não sei o que é que os dias fizeram de ti, ou o que é que tu fizeste dos teus dias. O resultado visível só me desperta compaixão. Ainda agora, tenho pena de ti e temo que durante o resto da vida isto não mude e a única imagem que eu consiga guardar dentro da cabeça seja esta, a do teu desalinho e da tua autoridade vencida.
A verdade é que não mandas em mim, nunca mandaste. Apesar disso, tudo o que eu sempre quis foi que tu quisesses alguma coisa, nem que fosse mandar em mim, mas não, tu nunca quiseste nada para além daquela triste figura em que te apresentavas. Para ti, a casa era o mundo inteiro por dentro e por fora e ali não era preciso querer mais nada senão que eu dali não saísse.
Não chegava, não chegou. A manhã estava gélida, era Novembro, quase Dezembro e havia corrente de ar no prédio. Eu quis muito dizer-te que te cuidasses, mas a voz não me saía da garganta. Tudo o que consegui dizer-te foi o som mudo da porta a fechar-se atrás de mim. Enquanto percorria o corredor imaginei-te a perseguir-me repetindo tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum até me convenceres a ficar, mas não. No corredor, apenas os meus passos e uma fria corrente de ar a perpassar a fazenda do meu casaco.
© [m.m. botelho], ao som de Far from me, de Nick Cave & The Bad Seeds, do álbum The Boatman's Call [1997].
for you dear, I was born / for you I was raised up / for you I've lived and for you I will die / for you I am dying now / you were my mad little lover / in a world where everybody fucks everybody else over / you who are so far from me / far from me way across some cold neurotic sea / far from me
I would talk to you of all matter of things / with a smile you would reply / then the sun would leave your pretty face / and you'd retreat from the front of your eyes / I keep hearing that you're doing your best / I hope your heart beats happy in your infant breast / you are so far from me / far from me / far from me
there is no knowledge but I know it / there's nothing to learn from that vacant voice / that sails to me across the line / from the ridiculous to the sublime / it's good to hear you're doing so well / but really can't you find somebody else that you can ring and tell / did you ever care for me? / were you ever there for me? / so far from me
you told me you'd stick by me / through the thick and through the thin / those were your very words / my fair-weather friend / you were my brave-hearted lover / at the first taste of trouble went running back to mother / so far from me / far from me / suspended in your bleak and fishless sea / far from me / far from me
Eu ainda me detive durante uns minutos com a porta aberta, a mão húmida a segurar a mala, o sobretudo no braço, a olhar para ti na surpresa daquela tua afirmação. Parecias tão certo de que eu não iria a lado nenhum que, por momentos, até achei que era mesmo verdade, que eu não ia sair, que ia ficar ali, naquela sala fria e despida até que tu me desses ordem de liberdade.
Só passados uns bons minutos me dei conta de que tu não és juiz e, portanto, não cagas leis na minha vida e, assim sendo, era a mim e só a mim que cabia a decisão de transpor aquela linha que separava a entrada de casa do corredor sujo do prédio.
Esperei não sei quanto tempo – a mim pareceu-me muito tempo, mas eu nunca tive grande queda para a contabilidade – por mais uma palavra, por um gesto, por qualquer coisa de surpreendente que me prendesse, que me fizesse querer ficar, que mudasse a minha vontade de sair da tua vida ou da minha, já não sei, mas nem uma palavra, nem um gesto, nada de surpreendente.
Tive pena de ti, dos teus olhos afogados em duas profundas olheiras, do teu pijama enrugado e velho e dos teus dentes amarelos do café. Não sei o que é que os dias fizeram de ti, ou o que é que tu fizeste dos teus dias. O resultado visível só me desperta compaixão. Ainda agora, tenho pena de ti e temo que durante o resto da vida isto não mude e a única imagem que eu consiga guardar dentro da cabeça seja esta, a do teu desalinho e da tua autoridade vencida.
A verdade é que não mandas em mim, nunca mandaste. Apesar disso, tudo o que eu sempre quis foi que tu quisesses alguma coisa, nem que fosse mandar em mim, mas não, tu nunca quiseste nada para além daquela triste figura em que te apresentavas. Para ti, a casa era o mundo inteiro por dentro e por fora e ali não era preciso querer mais nada senão que eu dali não saísse.
Não chegava, não chegou. A manhã estava gélida, era Novembro, quase Dezembro e havia corrente de ar no prédio. Eu quis muito dizer-te que te cuidasses, mas a voz não me saía da garganta. Tudo o que consegui dizer-te foi o som mudo da porta a fechar-se atrás de mim. Enquanto percorria o corredor imaginei-te a perseguir-me repetindo tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum até me convenceres a ficar, mas não. No corredor, apenas os meus passos e uma fria corrente de ar a perpassar a fazenda do meu casaco.
© [m.m. botelho], ao som de Far from me, de Nick Cave & The Bad Seeds, do álbum The Boatman's Call [1997].
for you dear, I was born / for you I was raised up / for you I've lived and for you I will die / for you I am dying now / you were my mad little lover / in a world where everybody fucks everybody else over / you who are so far from me / far from me way across some cold neurotic sea / far from me
I would talk to you of all matter of things / with a smile you would reply / then the sun would leave your pretty face / and you'd retreat from the front of your eyes / I keep hearing that you're doing your best / I hope your heart beats happy in your infant breast / you are so far from me / far from me / far from me
there is no knowledge but I know it / there's nothing to learn from that vacant voice / that sails to me across the line / from the ridiculous to the sublime / it's good to hear you're doing so well / but really can't you find somebody else that you can ring and tell / did you ever care for me? / were you ever there for me? / so far from me
you told me you'd stick by me / through the thick and through the thin / those were your very words / my fair-weather friend / you were my brave-hearted lover / at the first taste of trouble went running back to mother / so far from me / far from me / suspended in your bleak and fishless sea / far from me / far from me