Gianlorenzo Bernini [1598-1680] | Anima Dannata | 1619
Palazzo di Spagna | Roma | Itália
Palazzo di Spagna | Roma | Itália
Nunca apertava os atacadores dos sapatos. Sentia-se mais leve, mais liberto, mais ousado se ao olhar os pés visse que não terminavam num laço, mas em duas pontas rebeldes, uma voltada para cada lado.
Assim se sabia também: tinha-se por irrequieto, contestatário, protestante. Travava discussões sobre tudo e sobre nada, fazia o que havia para fazer sempre de modo diverso dos outros e definia-se num vocábulo cuspido com desfaçatez por entre os dentes amarelecidos pelo tabaco: dissidente.
Gostava de ler o último capítulo dos livros antes de ler o primeiro e punha-se a imaginar o enredo só a partir daquele fragmento. Quando terminava a leitura, sentia-se invariavelmente insatisfeito. O mesmo final ter-lhe-ia proporcionado uma história desigual e, certamente, muito melhor do que aquela.
Contudo, não sabia escrever. Havia já tentado, umas quatro ou cinco vezes, sentar-se muito hirto na cadeira e teclar na velha Underwood n.º 5 uma patranha qualquer. Depois de aconchegar o papel no carreto, estalava os dedos um a um, deixava cair os braços ao longo do corpo agitando ambas as mãos e pousava então os dedos esgalgados sobre as letras, à espera de que as ideias lhe saltassem da cabeça e fossem empurrar as teclas.
Inutilmente, quedava-se assim longos minutos. E nada. Não lhe ocorria nada. Nem uma única frase. Irritava-se então consigo próprio, maldizia-se para todo o sempre esbarrando nervosamente os pés no soalho, dava por si a puxar com força os parcos cabelos grisalhos e quando atirava os óculos engordurados para cima da mesa, acordava daquele desespero com as pancadas da vassoura da vizinha de baixo, os insultos do marido daquela e o choro estridente dos gémeos ranhosos de ambos. E zurzia da sua vida inane e do último andar do n.º 34 da rua lúgubre que via quando se assomava à janela, albergue de um pai, uma mãe, três filhos e uma gata que todos os dias lhe recordavam que não passava de um paupérrimo cenobita de meia-idade.
Nessas horas, só lhe dava para agarrar impacientemente o chapéu e sair de casa correndo para sorver os ruídos do exterior: as passadas de um homem de mãos grandes e sebosas, no seu apressado regresso a casa; os risinhos cúmplices de um par de irmãs de seis e dez anos, deliciadas pelos pastéis comprados pelo pai na padaria da esquina; o enérgico desenrolar dos cordéis dos piões, aferidores credenciados da virilidade antecipada dos miúdos que brincam no largo; o rufar das pregas do vestido comprido de uma dama amordaçadas num carro; o estalar das outonais castanhas num assador de barro enegrecido pelo carvão; o chapinhar da língua de um cão sequioso na água imunda de um qualquer charco.
Depois, sentava-se num dos bancos do jardim e deixava-se ficar ali, até que o silêncio se lhe instalasse entre os ossos e ele se esquecesse das vassouradas que a cabra do rés-do-chão ousara dar no tecto, perturbando o seu momento de amargura criativa. E assim, com o corpo bem embebido na acalmia do frio nocturno, enrolava um cigarro muito franzino que acendia com lume de um passante e inalava-o em grandes fumaças. E começava a pensar que, afinal de contas, todos aqueles sons da realidade exterior eram tão desprezíveis como o sossego da máquina de escrever que roubara uns anos antes e agora morria sobre a mesa da sua sala despida. O importante era o grito, a rebelião, a revolução! Isso sim, era o essencial, a força motriz dos homens, a razão que importava exclamar! E desatava aos brados, na praça deserta, agitado as árvores e arremessando os bancos, chutando as pedras, erguendo os braços ao alto e negando a Deus, aos homens e ao mundo.
Quando acordava, depois da peleja, reconhecia as paredes brancas do hospício, tão nuas como as de sua casa, a mesa tão untuosa como a sua, a cadeira igualmente rígida, o ar ainda mais denso. Remexia nos bolsos, vazios, os bolsos de umas calças que não eram suas. Debaixo da cama, em repouso, os sapatos. Calçava-os e baixava-se para apertar os atacadores, com força exagerada, num laço muito grande e perfeito, que depois ostentava nas passadas largas. Saía do quarto, colarinhos compostos, os parcos fios do cabelo penteados com a mão trémula para trás, os óculos besuntados pousados no nariz. E entrava no extenso corredor lácteo, imerso no silêncio inerte da sua própria maldição.
© [m.m. botelho], ao som de Gymnopédie n.º 2, de Erik Satie [1866-1925], interpretada pelo pianista Aldo Ciccolini, do álbum Erik Satie - Ouevres Pour Piano.
Assim se sabia também: tinha-se por irrequieto, contestatário, protestante. Travava discussões sobre tudo e sobre nada, fazia o que havia para fazer sempre de modo diverso dos outros e definia-se num vocábulo cuspido com desfaçatez por entre os dentes amarelecidos pelo tabaco: dissidente.
Gostava de ler o último capítulo dos livros antes de ler o primeiro e punha-se a imaginar o enredo só a partir daquele fragmento. Quando terminava a leitura, sentia-se invariavelmente insatisfeito. O mesmo final ter-lhe-ia proporcionado uma história desigual e, certamente, muito melhor do que aquela.
Contudo, não sabia escrever. Havia já tentado, umas quatro ou cinco vezes, sentar-se muito hirto na cadeira e teclar na velha Underwood n.º 5 uma patranha qualquer. Depois de aconchegar o papel no carreto, estalava os dedos um a um, deixava cair os braços ao longo do corpo agitando ambas as mãos e pousava então os dedos esgalgados sobre as letras, à espera de que as ideias lhe saltassem da cabeça e fossem empurrar as teclas.
Inutilmente, quedava-se assim longos minutos. E nada. Não lhe ocorria nada. Nem uma única frase. Irritava-se então consigo próprio, maldizia-se para todo o sempre esbarrando nervosamente os pés no soalho, dava por si a puxar com força os parcos cabelos grisalhos e quando atirava os óculos engordurados para cima da mesa, acordava daquele desespero com as pancadas da vassoura da vizinha de baixo, os insultos do marido daquela e o choro estridente dos gémeos ranhosos de ambos. E zurzia da sua vida inane e do último andar do n.º 34 da rua lúgubre que via quando se assomava à janela, albergue de um pai, uma mãe, três filhos e uma gata que todos os dias lhe recordavam que não passava de um paupérrimo cenobita de meia-idade.
Nessas horas, só lhe dava para agarrar impacientemente o chapéu e sair de casa correndo para sorver os ruídos do exterior: as passadas de um homem de mãos grandes e sebosas, no seu apressado regresso a casa; os risinhos cúmplices de um par de irmãs de seis e dez anos, deliciadas pelos pastéis comprados pelo pai na padaria da esquina; o enérgico desenrolar dos cordéis dos piões, aferidores credenciados da virilidade antecipada dos miúdos que brincam no largo; o rufar das pregas do vestido comprido de uma dama amordaçadas num carro; o estalar das outonais castanhas num assador de barro enegrecido pelo carvão; o chapinhar da língua de um cão sequioso na água imunda de um qualquer charco.
Depois, sentava-se num dos bancos do jardim e deixava-se ficar ali, até que o silêncio se lhe instalasse entre os ossos e ele se esquecesse das vassouradas que a cabra do rés-do-chão ousara dar no tecto, perturbando o seu momento de amargura criativa. E assim, com o corpo bem embebido na acalmia do frio nocturno, enrolava um cigarro muito franzino que acendia com lume de um passante e inalava-o em grandes fumaças. E começava a pensar que, afinal de contas, todos aqueles sons da realidade exterior eram tão desprezíveis como o sossego da máquina de escrever que roubara uns anos antes e agora morria sobre a mesa da sua sala despida. O importante era o grito, a rebelião, a revolução! Isso sim, era o essencial, a força motriz dos homens, a razão que importava exclamar! E desatava aos brados, na praça deserta, agitado as árvores e arremessando os bancos, chutando as pedras, erguendo os braços ao alto e negando a Deus, aos homens e ao mundo.
Quando acordava, depois da peleja, reconhecia as paredes brancas do hospício, tão nuas como as de sua casa, a mesa tão untuosa como a sua, a cadeira igualmente rígida, o ar ainda mais denso. Remexia nos bolsos, vazios, os bolsos de umas calças que não eram suas. Debaixo da cama, em repouso, os sapatos. Calçava-os e baixava-se para apertar os atacadores, com força exagerada, num laço muito grande e perfeito, que depois ostentava nas passadas largas. Saía do quarto, colarinhos compostos, os parcos fios do cabelo penteados com a mão trémula para trás, os óculos besuntados pousados no nariz. E entrava no extenso corredor lácteo, imerso no silêncio inerte da sua própria maldição.
© [m.m. botelho], ao som de Gymnopédie n.º 2, de Erik Satie [1866-1925], interpretada pelo pianista Aldo Ciccolini, do álbum Erik Satie - Ouevres Pour Piano.