21.11.06

Deglutição

George Flegel [1563-1638] | Natureza Morta | s.d.
Metropolitan Museum of Art | Nova Iorque | USA

Quando te sentas à mesa para jantar a toalha e os pratos inquietam-se, nervosos da honra de te servirem. Os talheres iniciam, então, um namoro entre si e a faca enciuma-se do garfo porque é este que te toca a boca, que vê o vermelho quente da tua boca.
O guardanapo agita-se-te no colo, suplicante de que o leves aos lábios, ansioso por que perpetues no tecido imaculado a mancha do teu beijo. Da nódoa se enche de orgulho, para voltar plácido ao teu regaço.
E logo é o copo, onde o vinho borbulha, que faz a luz incidir sobre si, em conluio com o candeeiro e te namora a língua, onde o degustarás. Deixa-se tombar com supremo gozo enquanto o bebes e julga-se Zeus só porque te percorre as entranhas.
A faca, atarantada por não ter sequer o calor da tua mão, descansa outra vez quando a seguras para estraçalhar a carne branca da ave que te sacia a fome. Até ela, embora morta, se sabe especial por ter como destino o alimento do teu corpo. Nenhuma ave teme jazer no teu prato, perante o gáudio de ser tocada pela alvura dos teus molares, envolvida pela tua língua, humedecida pela tua saliva. À medida que a deglutes faringe, laringe, estômago, todos os teus órgãos se felicitam entre si por isso mesmo, só por serem teus.
Perante a saciedade, pousas os talheres, que se deixam ficar a contar as migalhas de tempo até à próxima refeição. Dão por terminado o festim.

Só eu, sentada à tua frente, guardo a mais inerte posição, o mais sepulcral silêncio, a mais cordial expressão, só para não me entregar inteira, corpo e alma, à vontade que tenho de ser tua.

© [m.m. botelho]