© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | agosto de 2006
parede exterior do antigo palácio dos condes de alvor
museu nacional de arte antiga | rua das janelas verdes
parede exterior do antigo palácio dos condes de alvor
museu nacional de arte antiga | rua das janelas verdes
A pancada no soalho foi seca. Ao ruído opaco do encontro do sapato com o pavimento de madeira seguiu-se um crepitar quase inaudível debaixo do pé de Artur.
Baixou-se. Sentiu as costelas rangerem entre a carne e a distensão lenta de todos os músculos rígidos. Esticou muito os dedos da mão direita e, num gesto preciso de tenaz, segurou a barata entre o polegar e o indicador. A destreza advinha-lhe da experiência.
Atravessou o amplo salão despojado de mobília e aproximou-se da janela. Correu a pesada cortina, outrora castanha e hoje desbotada pelo constante namoro do sol, e expôs a sua captura à luz. A claridade ainda tímida da aurora revelou um pequeno insecto inerme estrebuchando, que Artur se demorou a inspeccionar.
Com a minúcia e a diligência de um estudioso, examinou-a cuidadosamente: primeiro os três pares de patas, depois a cabeça, o tórax e, finalmente, o abdómen da sua mais recente prisioneira.
«Ainda está viva», disse para consigo mesmo. Segurando a presa, encaminhou-se para a cozinha, abriu o armário e retirou do interior um copo baço onde eram visíveis vestígios de vinho tinto. Pousou a barata na mesa e cobriu-a com o vidro. Depois, regressou à sala, correu a cortina protegendo os olhos com o braço e foi deixar-se cair no desengonçado cadeirão.
Palpou ambos os bolsos por fora das calças. Voltou-se de lado para retirar da algibeira o maço de cigarros e os fósforos e sentiu invadir-lhe as narinas o cheiro acre da sua própria urina. Lembrou-se de que não mudava de calças havia já nove dias. Assaltou-o uma sensação de vómito. Apressou-se a cobrir a boca com a camisa imunda, mas o escasso líquido amargo que regurgitou não chegou sequer a tocar-lhe os dentes. Cuspiu para o chão e tirou um cigarro. Riscou com firmeza um fósforo e uma chama clareou por segundos o negro da sala. Puxou o fumo longamente e sentiu o ar percorrer-lhe a língua, a laringe, a faringe e encher-lhe os pulmões. Susteve a respiração por breves instantes, para logo libertar uma extensa nuvem cinzenta pelas narinas.
Gostava daquela sensação. Era das poucas que o faziam sentir-se vivo. Para além desta, só se lembrava da dor que sentira quando, na noite anterior, com um singular e certeiro golpe, havia cortado um dos dedos do seu próprio pé esquerdo. Olhou para o lenço que apertara em torno da ferida. O sangue estancara e o pano estava agora manchado de um vermelho escuro, muito escuro, seco. Lembrou-se do outro pé, aprisionado no sapato. Na sola haveria de estar ainda um resquício do ventre da barata que esmagara há pouco.
Acordou horas depois, já com o arrulho dos pássaros que rondavam a janela. Recordou-se do insecto aprisionado no copo, na cozinha, na escuridão. Ergueu-se do cadeirão empoeirado e foi ver.
«Está morta», pensou, mirando detidamente o pequeno bicho inerte. Libertou-a. Com efeito, morrera. Sucumbira no decorrer da manhã.
Deixou-se ficar ali, em silêncio. Apenas a tosse lhe interrompia, de quando em vez, os pensamentos, sacudindo-lhe os compactos ossos. Hesitava em comer aquela barata, como antes havia comido tantas outras. Estava farto de alimentar-se de insectos. Farto de moscas, de baratas, de aranhas. Raramente era capaz de apanhar um rato, animal demasiado veloz para competir com o seu vergado físico.
Agarrou na barata e guardou-a, junto com as últimas que matara, numa caixa de latão onde se lia, a letras azuis, a palavra "arroz". Defronte, no armário, estava o seu próprio dedo, que mutilara ontem. Tomou-o nas mãos e meteu-o numa panela atestada de água que deixou ferver.
Comeu-o. Enquanto o fazia, tolhiam-no dores lancinantes. O lenço atado no pé revelou-se, então, insuficiente para absorver o sangue que tornara a jorrar. Por momentos, sentiu-se desfalecer, mas recuperou as forças. Correu para o quarto, tingindo por onde passava o soalho de vermelho vivo.
Tomando um papel, apressou-se a escrever, temeroso do fim:
«Aos que me encontrarem, peço apenas que escrevam sobre o meu túmulo:
Aqui jaz Artur Centelha da Reigosa, que nascendo rico, morreu miserável, chamado "o comedor de insectos", mas que para saciar a fome preferiu alimentar-se de si próprio a sobreviver da morte alheia.»
Pereceu à gangrena seis meses depois. A sua sepultura não foi assinalada.
© [m.m. botelho]
Escrito no Porto, na esplanada de um café da praia do Molhe, a 27 de Junho de 2006, dia do aniversário de meu avô, José Francisco Botelho, o último que tive o privilégio de passar na sua companhia. Este texto é dedicado à sua memória.
Ouve-se, no Viagens Interditas, Inner Flight, dos Primal Scream, do álbum Screamadelica [1991].
Baixou-se. Sentiu as costelas rangerem entre a carne e a distensão lenta de todos os músculos rígidos. Esticou muito os dedos da mão direita e, num gesto preciso de tenaz, segurou a barata entre o polegar e o indicador. A destreza advinha-lhe da experiência.
Atravessou o amplo salão despojado de mobília e aproximou-se da janela. Correu a pesada cortina, outrora castanha e hoje desbotada pelo constante namoro do sol, e expôs a sua captura à luz. A claridade ainda tímida da aurora revelou um pequeno insecto inerme estrebuchando, que Artur se demorou a inspeccionar.
Com a minúcia e a diligência de um estudioso, examinou-a cuidadosamente: primeiro os três pares de patas, depois a cabeça, o tórax e, finalmente, o abdómen da sua mais recente prisioneira.
«Ainda está viva», disse para consigo mesmo. Segurando a presa, encaminhou-se para a cozinha, abriu o armário e retirou do interior um copo baço onde eram visíveis vestígios de vinho tinto. Pousou a barata na mesa e cobriu-a com o vidro. Depois, regressou à sala, correu a cortina protegendo os olhos com o braço e foi deixar-se cair no desengonçado cadeirão.
Palpou ambos os bolsos por fora das calças. Voltou-se de lado para retirar da algibeira o maço de cigarros e os fósforos e sentiu invadir-lhe as narinas o cheiro acre da sua própria urina. Lembrou-se de que não mudava de calças havia já nove dias. Assaltou-o uma sensação de vómito. Apressou-se a cobrir a boca com a camisa imunda, mas o escasso líquido amargo que regurgitou não chegou sequer a tocar-lhe os dentes. Cuspiu para o chão e tirou um cigarro. Riscou com firmeza um fósforo e uma chama clareou por segundos o negro da sala. Puxou o fumo longamente e sentiu o ar percorrer-lhe a língua, a laringe, a faringe e encher-lhe os pulmões. Susteve a respiração por breves instantes, para logo libertar uma extensa nuvem cinzenta pelas narinas.
Gostava daquela sensação. Era das poucas que o faziam sentir-se vivo. Para além desta, só se lembrava da dor que sentira quando, na noite anterior, com um singular e certeiro golpe, havia cortado um dos dedos do seu próprio pé esquerdo. Olhou para o lenço que apertara em torno da ferida. O sangue estancara e o pano estava agora manchado de um vermelho escuro, muito escuro, seco. Lembrou-se do outro pé, aprisionado no sapato. Na sola haveria de estar ainda um resquício do ventre da barata que esmagara há pouco.
Acordou horas depois, já com o arrulho dos pássaros que rondavam a janela. Recordou-se do insecto aprisionado no copo, na cozinha, na escuridão. Ergueu-se do cadeirão empoeirado e foi ver.
«Está morta», pensou, mirando detidamente o pequeno bicho inerte. Libertou-a. Com efeito, morrera. Sucumbira no decorrer da manhã.
Deixou-se ficar ali, em silêncio. Apenas a tosse lhe interrompia, de quando em vez, os pensamentos, sacudindo-lhe os compactos ossos. Hesitava em comer aquela barata, como antes havia comido tantas outras. Estava farto de alimentar-se de insectos. Farto de moscas, de baratas, de aranhas. Raramente era capaz de apanhar um rato, animal demasiado veloz para competir com o seu vergado físico.
Agarrou na barata e guardou-a, junto com as últimas que matara, numa caixa de latão onde se lia, a letras azuis, a palavra "arroz". Defronte, no armário, estava o seu próprio dedo, que mutilara ontem. Tomou-o nas mãos e meteu-o numa panela atestada de água que deixou ferver.
Comeu-o. Enquanto o fazia, tolhiam-no dores lancinantes. O lenço atado no pé revelou-se, então, insuficiente para absorver o sangue que tornara a jorrar. Por momentos, sentiu-se desfalecer, mas recuperou as forças. Correu para o quarto, tingindo por onde passava o soalho de vermelho vivo.
Tomando um papel, apressou-se a escrever, temeroso do fim:
«Aos que me encontrarem, peço apenas que escrevam sobre o meu túmulo:
Aqui jaz Artur Centelha da Reigosa, que nascendo rico, morreu miserável, chamado "o comedor de insectos", mas que para saciar a fome preferiu alimentar-se de si próprio a sobreviver da morte alheia.»
Pereceu à gangrena seis meses depois. A sua sepultura não foi assinalada.
© [m.m. botelho]
Escrito no Porto, na esplanada de um café da praia do Molhe, a 27 de Junho de 2006, dia do aniversário de meu avô, José Francisco Botelho, o último que tive o privilégio de passar na sua companhia. Este texto é dedicado à sua memória.
Ouve-se, no Viagens Interditas, Inner Flight, dos Primal Scream, do álbum Screamadelica [1991].