8.11.06

Os sentidos da vida não se mudam com a facilidade das luas.

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | setembro de 2006


A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende. São migalhas, o problema depois é juntá-las. É esse montinho de areia. E este grão, que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física. Retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado?... Até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja. Deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

António Tabucchi | Tristano Morre | Lisboa | Publicações D. Quixote | 2006

E dás por ti sem saberes o que fazer com as migalhas da tua vida - os retratos, os poemas, os papéis, as músicas, as palavras sussurradas ao ouvido que ainda ecoam dentro de ti. A tua vida em estilhaços, como num vitral, cuja imagem está desfigurada. Alguém bateu a porta rapidamente demais, num ápice - zás! - e o espelho em que te olhavas caiu no chão e partiu-se. Deixas de saber onde te ver. Os teus olhos percorrem a parede branca, fixam-se no prego ferrugento e deslizam até aos pedaços de vidro quebrado no chão. Corres a apanhá-los. Segura-los com força contra o peito e quando abres as mãos o que vês é uma mistura de carne e sangue, a tua pele recortada pelas lâminas. Procuras, procuras-te por entre a massa sangrenta mas já não te vês.
Entram pela sala dentro e pedem-te que te ergas rapidamente, que escrevas, que escrevas muito, que fales, que rias, que estejas desperta, que sejas atenta, que comas e bebas e caminhes e ajas como se nada houvesse acontecido. Dizem-te que esqueças as feridas das mãos, que não doem. Dizem-te que tens de suportar essa dor porque foste tu quem voluntariamente agarrou os estilhaços que já sabias cortantes. Tudo isto como se uma dor, só porque foi causada por ti, deixasse de doer.
Do lado de fora ouves a voz que bateu a porta - zás! - dizer-te que se está melhor ali, que ali fora está sol. Ergues a tua mão direita e empunhas nela uma vela, toda a tua luz, toda a luz com que iluminaste os olhos da voz que te fala lá de fora. Responde-te que a luz do sol é a luz que verdadeiramente ilumina. Olhas a vela, esguia, alva, fria, na tua mão direita. Alivia-te a dor segurá-la com força e por isso não a soltas. Ficas com os dedos brancos, as unhas cravadas na palma. Ainda que o sangue verta, seguras a todo o custo a tua luz, o pequenino ponto de luz que tens, o único que tens, que sempre te iluminou e àquela voz, enquanto essa sala onde estás era o bastante, era o tudo.
A voz, lá fora, diz-te que não te atenhas a nada do que está dentro dessas quatro paredes, que esqueças tudo o que lá está guardado, que o Tempo e o Lugar onde vives é Passado, que os caminhos desse espaço já não levam a lado nenhum, que não passam de garatujas ilógicas. Diz-te que prossigas, que saias lá para fora, que deixes de ser o que ainda és, o que sempre serás, porque nunca foste nem sabes ser fora dessa sala. Diz-te que trilhes novos rumos, assim, entre um almoço e um jantar, entre um dia e outro, algures no tempo. Dizem-te que a luz da vela que prendes na mão se apagou, em meia-dúzia de dias, algures no tempo. Não sabes o que fazer com ela, se ela já não ilumina porque lá fora há o sol.
E parece-te que as vozes do mundo, lá fora, fingem não saber que os sentidos da vida não se mudam com a facilidade das luas...

© [m.m. botelho], a partir de algumas frases que me disseste, ao som de Ó Luz da Alegria, dos Madredeus, do álbum Um Amor Infinito, que tu, segurando-me nos braços, me deste a ouvir.

Eu ouvi um sereno canto / Nas alturas do céu cantar / E as montanhas da minha terra em silêncio a escutar...
Eu ouvi um canto sereno / Nas douradas ondas do mar / E nas praias da minha terra, muita gente a escutar...
Ó Luz da Alegria! Ó Alma da Vida! / Ó Luz da Alegria, só te vê quem dá...
Das montanhas da minha terra / Às sagradas praias do mar / Toda a gente escutando espera o Divino Cantar...
Ó Luz da Alegria! Ó Alma da Vida! / Ó Luz da Alegria, só te vê quem dá...