14.7.07

Amor a tiracolo

Os dias da semana passam muito mais depressa do que as minhas cansadas pernas desejariam. Ando o dia inteiro a correr de lá para cá, de pasta ao ombro.
Continuo a preferir usar a pasta a tiracolo e não na mão.
Um amontoado de papéis lá dentro, alguns com as pontas dobradas.
Continuo a detestar as pontas das folhas dobradas.
Entre esses muitos papéis encontrei, há dias, uma carta tua. Não pode dizer-se que se trate, em rigor de uma carta. Um recado, talvez. Pedias desculpa por teres de sair sem te despedires; falavas do pacote de sumo que deixaste no frigorífico a gelar para mim.
Continuo a gostar do sumo gelado, pela manhã.
Qualquer dia hei-de debruçar-me a sério sobre o que vem a ser isso a que chamam «cartas de amor». Durante os anos em que fui tua, todos os papéis que me escrevias foram para mim cartas de amor.
Ainda guardo todas as tuas cartas de amor.
Há já muito tempo que ninguém me escreve. Na verdade, só tu me escreveste, recadinhos de amor em pedacinhos de papel rasgados à pressa...
Por tua causa é que dobrei o meu coração em muitas partes, como uma folha velha que já não interessa e se joga fora. Eu, que detesto as pontas das folhas dobradas.
Por tua causa é que tenho o coração cheio de vincos.
Por tua causa é que tirei o amor do peito e o meti na pasta. Escondi o coração no fundo da pasta, soterrado por um sem número de tralhas inúteis.
Por tua causa é que ando com o amor a tiracolo.
O meu amor por ti jaz no fundo da minha pasta, embrulhado nos teus recadinhos matinais.
O meu amor por ti morreu embalado ao som das nossas cartas de amor, papéis que já não te interessam.

© [m.m. botelho], ao som de Se Por Acaso (Me Vires Por Aí), de J.P. Simões, do álbum 1970 [2006], aqui ao vivo.



se por acaso me vires, por aí / disfarça, finge não ver, / diz que não pode ser, / diz que eu morri / num acidente qualquer, / conta o quanto quiseste fazer, / exalta a tua versão; / depois suspira e diz que esquecer / é a tua profissão.
e ouve-se ao fundo uma linda canção / de paz e amor.
se eu, por acaso me vires por aí / vamos tomar um café / diz qualquer coisa, telefona, enfim / eu ainda moro na Sé. / encaixotei uns papéis e não sei / se hei-de deitar tudo fora, / tenho uma série de cartas para ti / todas de uma tal de Dora.
e ouve-se ao fundo canções tão banais / de paz e amor.
se por acaso te vir por aí / passo sem sequer te ver. / naturalmente que já te esqueci / e tenho mais que fazer. / quero que saibas que cago no amor / acho que fui sempre assim / espero que encontres tudo o que quiseres / e vás para longe de mim.
e ouve-se ao fundo a velha canção / de paz e amor.
na sexta-feira acho que te vi / à frente da Brasileira / pareceu-me mesmo o teu fato azul / e a pasta em tons de madeira. / o Tó gostava de te conhecer / nunca falei mal de ti / a vida passa e era bom saber / que estás em forma e feliz.
e ouve-se uma triste canção / de paz e amor.