Ainda não sei se é possível remendar um coração partido. Tenho-me afadigado em busca do melhor modo de intervenção sobre esse órgão magistral onde, dizem, têm início todos os sentimentos, mas a verdade é que ainda não cheguei a conclusão alguma.
Consta, aliás, que em matéria de consertos de coração não há grande coisa a fazer. Não se trata de um relógio que pode abrir-se para afinar. O coração nem sequer é alimentado por um motor à parte que possa ser desmontado, limpo e reparado; ele próprio é que é o motor de tudo o resto.
Começo a achar que o artífice de tão minucioso arranjo só posso ser eu. Uma tarefa solitária, parece-me, ainda que o artífice do desarranjo tenhamos sido nós. Mas descansa, não conto com a tua ajuda. Talvez já não fosse tão mau quanto isso se tivesses, ao menos, o desejo de que o meu coração voltasse a bater descompassadamente. O problema do meu coração é que bate compassadamente demais, discretamente demais, desapaixonadamente demais. E não me serve de muito um coração que não me inquieta, que não me angustia, que não palpita mais do que o estritamente necessário para bombear o sangue para o resto do meu corpo.
Embora não perceba absolutamente nada da arte do remendo dos corações feridos, quase me atrevo a ponderar a possibilidade de, um destes dias, deitar mãos à obra e tentar compôr o que está estraçoado.
Estive a pensar. Talvez o comprima e o distenda até que perca esta ridícula forma que apresenta, esta forma simétrica que constantemente me lembra que cada coração tem duas metades. Talvez retalhe o meu coração e depois o cosa e recosa, dando-lhe uma forma abstracta. É que é bem possível que o problema do meu coração se resolva no dia em que eu aceitar que metade dele está morta, inanimada, sem sentidos.
Pudessem os corações sobreviver apenas pela metade e este seria o método definitivo para solucionar a questão. Pudesse eu viver de funções meramente biológicas e congelá-lo-ia definitivamente. Mas não posso, ainda não posso. Resta-me, portanto, limpar-lhe as feridas e curá-lo, ainda que consciente de que os efeitos secundários de tão longa paragem nunca deixarão de ser sentidos. Vá lá, ao menos se me conserve esta lucidez.
Caso consiga encontrar o tão desejado método, prometo revelar-to. Poderás, então, também tu, resgatar esse teu coração que eu bem sei, que todos bem sabem, está igualmente despedaçado. Uma coisa te garanto: nunca desistirei de o procurar. Pelo menos, não enquanto continuar a acreditar que é melhor um coração remendado dentro do peito do que um coração moribundo a vaguear por aí.
© [m.m. botelho]
Consta, aliás, que em matéria de consertos de coração não há grande coisa a fazer. Não se trata de um relógio que pode abrir-se para afinar. O coração nem sequer é alimentado por um motor à parte que possa ser desmontado, limpo e reparado; ele próprio é que é o motor de tudo o resto.
Começo a achar que o artífice de tão minucioso arranjo só posso ser eu. Uma tarefa solitária, parece-me, ainda que o artífice do desarranjo tenhamos sido nós. Mas descansa, não conto com a tua ajuda. Talvez já não fosse tão mau quanto isso se tivesses, ao menos, o desejo de que o meu coração voltasse a bater descompassadamente. O problema do meu coração é que bate compassadamente demais, discretamente demais, desapaixonadamente demais. E não me serve de muito um coração que não me inquieta, que não me angustia, que não palpita mais do que o estritamente necessário para bombear o sangue para o resto do meu corpo.
Embora não perceba absolutamente nada da arte do remendo dos corações feridos, quase me atrevo a ponderar a possibilidade de, um destes dias, deitar mãos à obra e tentar compôr o que está estraçoado.
Estive a pensar. Talvez o comprima e o distenda até que perca esta ridícula forma que apresenta, esta forma simétrica que constantemente me lembra que cada coração tem duas metades. Talvez retalhe o meu coração e depois o cosa e recosa, dando-lhe uma forma abstracta. É que é bem possível que o problema do meu coração se resolva no dia em que eu aceitar que metade dele está morta, inanimada, sem sentidos.
Pudessem os corações sobreviver apenas pela metade e este seria o método definitivo para solucionar a questão. Pudesse eu viver de funções meramente biológicas e congelá-lo-ia definitivamente. Mas não posso, ainda não posso. Resta-me, portanto, limpar-lhe as feridas e curá-lo, ainda que consciente de que os efeitos secundários de tão longa paragem nunca deixarão de ser sentidos. Vá lá, ao menos se me conserve esta lucidez.
Caso consiga encontrar o tão desejado método, prometo revelar-to. Poderás, então, também tu, resgatar esse teu coração que eu bem sei, que todos bem sabem, está igualmente despedaçado. Uma coisa te garanto: nunca desistirei de o procurar. Pelo menos, não enquanto continuar a acreditar que é melhor um coração remendado dentro do peito do que um coração moribundo a vaguear por aí.
© [m.m. botelho]