17.3.06

Mesquinhos humanos hiatos

Sempre me deixei seduzir pelas ondas que sulcam as rochas. Uma ligeira agitação nas profundezas oceânicas, criada pelo rotineiro movimento das guelras de um peixe, vem repercutir-se em algo tão remoto como um amontoado de pedras a milhas de distância. A guelra move-se, alterando o que seria o curso silencioso da água, que vai depois juntar-se a um outro movimento criado por uma agitação igualmente insignificante e a outro, e a outro, e a outro, formando todos um amontoado de líquido sombriamente azul que vem até à superfície desfazer-se em espuma de encontro ao fraguedo.

Há muito, muito tempo, tanto que não há artefacto humanamente criado que o conte, sem pedir licença ao alfabeto, juntaram-se os caracteres em fonemas. Usando um fio de voz, entrançado com a agulha de muitos pensamentos, foram criadas mantas de vocábulos sobre a qual os interlocutores repousam sempre que entabulam conversas uns com os outros. Os sons sucedem-se, empurrados pela língua e pelos dentes de encontro aos lábios. Aos encontrões, invadem os ouvidos, com a mesma determinação das vagas quando esbarram nos penedos.

Sempre me deixei seduzir pelas palavras que perturbam os espíritos. Com elas vem o sobressalto que os arreda do abrigo da ignorância e os sujeita à companhia não desejada de outras inquietudes. Como que vergados pelo peso dos corpos dos viandantes, no meio do turbilhão das suas passadas, os ânimos não se dão conta de que entre eles se vão rasgando mesquinhos humanos hiatos... e como grãos de areia permanecem comprimidos uns contra os outros, sem nunca se conhecerem e descobrirem naquelas fendas o tanto que os aproxima.

© [m.m. botelho]