22.3.06

Breve meditação sobre a realização literária

Paris, 17 de Fevereiro de 1903

Caro senhor,

A sua carta só me chegou há alguns dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança dela. Pouco mais posso fazer. Não posso pronunciar-me sobre os seus versos porque estou muito longe de toda e qualquer intenção crítica. Nada pode tocar menos uma obra de arte do que as expressões críticas: isso só dá lugar a equívocos mais ou menos felizes. As coisas não são todas tão apreensíveis e dizíveis como muitas vezes se gostaria de nos fazer crer; a maior parte dos eventos são indizíveis, perfazem-se num espaço que nunca foi tocado por uma palavra, e mais indizíveis do que tudo são as obras de arte, existências secretas cuja vida perdura enquanto a nossa passa.
Feita esta observação, só posso dizer-lhe que nos seus versos não há uma voz pessoal, embora haja indícios, tímidos e encobertos, de uma personalidade própria. Sinto isso com a maior clareza no último poema, "A minha alma". Aí há qualquer coisa de próprio que quer chegar à palavra e à forma. E, na bela poesia "A Leopardi", desenha-se talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário. Apesar disso, os poemas ainda não são nada em si, nada de autónomo, nem mesmo o último, nem o que respeita a Leopardi. A sua amável carta que os acompanhou não deixa de me explicar muitas falhas que eu senti na leitura dos seus versos, sem todavia ser capaz de lhes dar nome.
Pergunta-me se os seus versos são bons. É a mim que pergunta. Já antes perguntou a outros. Envia-os às revistas. Compara-os com outros poemas e fica inquieto se algumas redacções recusam as suas tentativas. Ora bem (já que me autorizou a aconselhá-lo), peço-lhe que se deixe de tudo isso. O senhor olha para fora e é exactamente o que não deveria fazer agora. Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Há um único meio. Entre dentro de si. Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever lhe ser vedado. Isto antes de mais nada: pergunte-se na hora mais calada da sua noite:
tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples "Sim, tenho", então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da Natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; comece por evitar aquelas formas que são mais correntes e comuns: são as mais difíceis, pois requer uma grande força amadurecida exprimir o que nos é próprio quando já existem acumuladas tantas produções boas e até esplendorosas. Por isso salve-se dos temas gerais para os que lhe oferece a vida de todos os dias; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros, a fé em qualquer forma de beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, humilde, e utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente; lamente-se a si, diga para consigo que não é suficientemente poeta para convocar as suas riquezas; pois para o criador não existe escassez nem lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar nenhum dos ruídos do mundo aos seus sentidos - então não teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e principesca, essa câmara dos tesouros da lembrança? Concentre nela a sua atenção. Tente despertar as sensações afundadas desse passado longínquo; a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tomar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. E se desse voltar-se para dentro, desse mergulho no seu mundo próprio, surgirem versos, então não lhe ocorrerá perguntar a alguém se eles são bons. Também não fará a tentativa de interessar as revistas nesses trabalhos, pois verá neles a sua dilecta e natural propriedade, um pedaço e uma voz da sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasce da necessidade. Nesta sua maneira de irromper está o seu veredicto: não há mais nenhum. Por isso, caro Senhor, não podia dar-lhe nenhum outro conselho além deste: entrar em si mesmo e examinar as profundezas de que brota a sua vida; nas nascentes dela encontrará a resposta à pergunta sobre se deve criar. Aceite-a como ela lhe soar, sem se pôr com elaborações. Talvez tenha a prova de que foi chamado a ser artista. Então aceite o destino e assuma-o, no seu peso e na sua grandeza, sem querer saber da recompensa que poderia vir de fora. Na verdade o criador deve ser um mundo para si mesmo e tudo encontrar em si e na Natureza a que se ligou. Mas talvez tenha ainda, depois dessa descida em si e no que em si é solidão, de desistir de ser um poeta (basta sentir, como disse, que se pode viver sem escrever, para que isso não nos seja lícito). Mas mesmo então esse recolhimento que lhe peço não terá sido em vão. A sua vida encontrará de toda a maneira caminhos próprios a partir daí e que eles sejam bons, fecundos e amplos, é o que lhe desejo mais do que posso dizer.
Que mais posso dizer-lhe? Parece-me que tudo foi acentuado como devia; e enfim só desejaria ainda aconselhá-lo a que cresça no silêncio e na seriedade ao longo da sua evolução; não poderia prejudicá-la mais fortemente do que olhando para fora e esperando de fora a resposta a perguntas a que só o seu sentir mais íntimo, nas suas horas mais silenciosas, pode talvez responder.
Foi uma alegria para mim encontrar na sua carta o nome do senhor professor Horaceck; tenho por esse amável sábio uma grande veneração e uma gratidão que perdura pelos anos. Peço-lhe o favor de lhe transmitir estes meus sentimentos; desvanece-me que ele se lembre ainda de mim e registo-o com apreço.
Devolvo-lhe com esta os versos que tão amigamente me confiou. E mais uma vez lhe agradeço a generosa cordialidade da sua confiança de que eu tentei tomar-me um pouco mais digno do que, como estranho, realmente sou, respondendo sinceramente e o melhor que sei.
Com toda a dedicação e simpatia.
Rainer Maria Rilke


É unicamente através da solidão, da introspecção, renunciando ao conhecimento exterior que cada um poderá encontrar o criador que habita em si. Neste exercício, a dualidade tensa entre o "ego" e o "mundu". É na auto-interpelação da hora mais taciturna das trevas, distante das nefastas influências externas, como que num regresso a um estado puro, que o ente se encontra consigo mesmo, que o "ego" se interroga sobre o porvir.
Existe vida humana sem a escrita? Não é a poesia uma inextinguível dialéctica entre entre o "ego" e um mundo interior fantasmagórico, quimérico? Não é a produção poética um retorno ao primordial instante da existência, ao útero materno no qual a percepção exterior não passa de fragmentos esparsos do desconhecido? Não é poetizar, no fundo, ensimesmar-se, voltar-se sobre si mesmo?
A poesia é destino sem recompensa exterior, di-lo Rilke, é mergulho no universo de si próprio, universo que se basta na sua solitude. A arte identifica-se, assim, com o existir. A poesia e a vida não podem distanciar-se. E a literatura brota da região mais silenciosa e simultaneamente mais ruidosa de cada um de nós: a alma.

© [m.m. botelho], a partir do texto transcrito de Rainer Maria Rilke (1875-1926), in Cartas a um Jovem Poeta, tradução de Vasco Graça Moura, Edições Asa, Lisboa, 2002.