Johannes Vermeer [1632-1675] | Mulher de azul lendo uma carta [1662-64]
Rijksmuseum | Amesterdão | Holanda
Rijksmuseum | Amesterdão | Holanda
Às vezes, as letras escorrem dos livros no preciso instante em que as leria.
Abandonam apressadamente as linhas, como crianças pequenas a descerem muros altos, sujando os calções de musgo e terra. Quando pateiam o chão, sacodem as mãos e as roupas com pancadas secas. Arrimam-se então umas às outras e murmuram entre si zumbidos que não percebo, com os dentes quase colados às orelhas e os beiços ainda imundos de restos de rebuçados de anis.
Olho-as de viés, melindrada com o atrevimento da interrupção da minha leitura, mas elas parecem não se importar. Estendem-se em confidências voltando-me as costas, satisfeitas por se acharem libertas dos enfadonhos sinais de pontuação, sapatos apertados que lhes refreiam os volteios. Tenho para comigo que se não fossem os sinais de pontuação e os cadernos pautados, todas as letras se prestariam insolentemente a serem iluminuras.
Volvido largos minutos, já depois de os meus olhos haverem desesperadamente trocado a palidez das páginas do livro pelo negrume das pálpebras cerradas, começam a espreitar por entre os ombros umas das outras e chamam-me para escarnecerem polutamente da minha curiosa ignorância acerca do que estiveram a engendrar. Mas eu resisto, estóica e orgulhosamente, dando-me ares de despercebida até que se enfastiem de tanta troça com sabor a rebuçados de anis e caiam de sono, tombadas pela indolência.
Só então, quando tudo está submerso em quietude, é que torno a mirá-las e descubro finalmente o porquê de tanto bulício...
Às vezes, as letras escorrem dos livros para se juntarem e formarem o teu nome.
© [m.m. botelho], ao som de Comptine D'un Autre Été: L'après Midi, composta por Yann Tiersen para a banda sonora original do filme Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain [2001], de Jean-Pierre Jeunet.
Abandonam apressadamente as linhas, como crianças pequenas a descerem muros altos, sujando os calções de musgo e terra. Quando pateiam o chão, sacodem as mãos e as roupas com pancadas secas. Arrimam-se então umas às outras e murmuram entre si zumbidos que não percebo, com os dentes quase colados às orelhas e os beiços ainda imundos de restos de rebuçados de anis.
Olho-as de viés, melindrada com o atrevimento da interrupção da minha leitura, mas elas parecem não se importar. Estendem-se em confidências voltando-me as costas, satisfeitas por se acharem libertas dos enfadonhos sinais de pontuação, sapatos apertados que lhes refreiam os volteios. Tenho para comigo que se não fossem os sinais de pontuação e os cadernos pautados, todas as letras se prestariam insolentemente a serem iluminuras.
Volvido largos minutos, já depois de os meus olhos haverem desesperadamente trocado a palidez das páginas do livro pelo negrume das pálpebras cerradas, começam a espreitar por entre os ombros umas das outras e chamam-me para escarnecerem polutamente da minha curiosa ignorância acerca do que estiveram a engendrar. Mas eu resisto, estóica e orgulhosamente, dando-me ares de despercebida até que se enfastiem de tanta troça com sabor a rebuçados de anis e caiam de sono, tombadas pela indolência.
Só então, quando tudo está submerso em quietude, é que torno a mirá-las e descubro finalmente o porquê de tanto bulício...
Às vezes, as letras escorrem dos livros para se juntarem e formarem o teu nome.
© [m.m. botelho], ao som de Comptine D'un Autre Été: L'après Midi, composta por Yann Tiersen para a banda sonora original do filme Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain [2001], de Jean-Pierre Jeunet.