23.6.06

A janela que avista o mar

Caspar David Friedrich [1774-1840] | Caminhante Contemplando um Mar de Nevoeiro | c.1817/18
C. Friedrich [1774-1840] | Caminhante Contemplando Mar de Nevoeiro | c.1817
Hamburger Kunsthalle | Hamburgo | Alemanha


Daqui onde me encontro avisto o mar. Hoje está uma daquelas tardes quentes, a antecipar o Verão, quase fazendo esquecer que há Primavera... As janelas das casas abrem-se ainda timidamente, como que adivinhando os calafrios que ainda surpreendem quem lá vive. Daqui onde me encontro avisto o mar. Tem hoje a tíbia superfície tomada da placidez que é costume encontrar-se só nas profundezas, só no escuro do inacessível.
Hoje está um daqueles dias taciturnos, convidativos a um silêncio que esta massa salgada, aqui em frente, teima em enodoar. Um murmúrio, um rugido de onda... e o sossego interrompe-se, os olhos erguem-se do livro, despregam-se das letras emparelhadas em palavras e perdem-se, novamente, nas vagas desta imensidão.
Das janelas das casas das redondezas espreitam os que lá vivem, tolhidos do arrepio e ainda incrédulos da quentura dos dias como o de hoje. Olham estas águas, perdem-se entre a espuma, entre os recortes da ondulação, afundam-se neste intenso azul. E as casas onde se acham contorcem-se também, friorentas por dentro e escaldadas desta luz incandescente por fora. As janelas abertas de par em par são gigantescos olhos atentos que espreitam a vida de quem passa lá em baixo. As casas vêem tudo com os olhos de quem lá mora.
Hoje está uma daquelas tardes em que o mar quer engolir o sol, enquanto as janelas abocanham as pessoas que passam cá em baixo e as casas devoram as pessoas que nelas moram. Hoje está uma daquelas tardes abrasadoras, de Estio, quase a fazer esquecer que há Primavera, a fazer esquecer que há estações. E o meu desejo, sob o domínio desta fulgência, é prender-te na mordedura do meu beijo, em frente a este abismo marítimo, debaixo desta janela onde as cortinas que nos encobrem são a espuma das ondas em tropel.
Porque o aqui onde me encontro é o aí onde me perco.

© [m.m. botelho], ao som de É doce morrer no mar, na voz de Cesária Évora e Marisa Monte, do álbum Café Atlântico [1999].

É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
A noite que ele não veio foi / Foi de tristeza p'ra mim / Saveiro voltou sozinho / Triste noite foi p'ra mim
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
Saveiro partiu de noite foi / Madrugada não voltou / O marinheiro bonito / Sereia do mar levou
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
Nas ondas verdes do mar, meu bem / Ele se foi afogar / Fez sua cama de noivo / No colo de Iemanjá
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar