© [m.m. botelho] | companheiros de temporada | fotografia | agosto de 2006
Saí para a rua e pus-me a pensar nisso em que levo o dia inteiro a pensar. Nas cigarras. Digo a mim própria que as cigarras têm toda a razão e que não sei quem foi o estúpido que um dia disse o contrário, não sei quem se lembrou de propor que as cigarras mudassem. Grande parvoíce. As formigas é de deviam mudar, pois, coitadas, são tão parvas. Dizer que uma cigarra deve trabalhar foi uma imbecilidade repetida durante séculos. As formigas sim, deviam ser cigarras, fazia-lhes bem o ócio, nenhuma formiga devia privar-se de uma sensação tão maravilhosa como a de saber dizer não, mandar ao inferno de uma vez por todas os seu feliz e pesado ninho laborioso.
Enrique Vila-Matas (n. 1948) | Filhos Sem Filhos | tradução de José Agostinho Baptista | Assírio & Alvim | junho de 2002 | págs. 27 e 28
Preciso vitalmente de contrariar a rotina das férias. Se transformadas em rotina, deixam de ser o que são. Pavor. De maneira que, perco-me por temporadas - gosto de dizer temporadas, sem contar os dias, porque saber quantos são ao certo aviva a memória do seu fim e torna-os mais pequenos - imitando as cigarras quando todos à minha volta, de negro solenemente vestidos, se esforçam por parecerem formigas. Mas a meteorologia, essa incógnita e imperscrutável personagem, ainda não consegui contrariar, embora ela me altere os planos não raras vezes e eu saiba que, mais dia, menos dia, será a minha vez de clamar por desforra.
Por isso vos digo:
[voz firme e colocada]
parto daqui para o nada, para o silêncio, a acalmia. Quero perder-me de mim nos outros. Peço-vos, portanto, que não me pergunteis se está tudo bem, pois não vos responderei, nem com as expressões da praxe. Pretendo tão somente dizer não, não sei, não vi, não ouvi, não quero saber - e tais palavras não se adequam como resposta a um olá, tu por aqui?. Se se der o caso de vos cruzardes comigo na rua - por Deus! - fingi que não me conheceis, pois eu farei o mesmo. O mais provável, aliás, é que, na verdade, não vos reconheça mesmo, pois se meus olhos vos fitarem, crede que não é para vos ver, senão porque para algum lado têm de olhar. Não me desejeis bom dia, boa tarde e muito menos bom fim de semana - não vale a pena a distinção porque todos os meus dias serão iguais, e a palavra fim estará interdita aos meus ouvidos. Evitai os acenos, tentando captar a minha atenção. Ah! E não me pergunteis pela tese. Aliás, não é tese, é dissertação, mas repito, não me pergunteis pois não vos corrigirei nem darei resposta. Não vos atrevais a sentir ou verbalizar saudades minhas: previno-vos já que eu não terei vossas.
Durante uma temporada estarei singularmente gozando o que a tal da aleivosa meteorologia só oferece quando lhe dá na realíssima gana: sol, azul e verde. De gente, não pretendo sequer ouvir falar. Quero embriagar-me de luz, mar e natureza e a taça é pequena só para mim.
À noite, tenciono quedar-me no breu a ouvir minhas amigas cigarras dando lições ao formiguedo de como se entoa correctamente não, no, non, nein.
Assim sendo, peço-vos que façais silêncio.
[orelha colada à tela]
Está bem assim, muito obrigada.
© [m.m. botelho], carregando no player para ouvir Sympathique, dos Pink Martini, do álbum homónimo [1997]. Quando as pilhas estiverem gastas, restará a quietude do nada e o ruído emudecido do relógio esquecido na gaveta.
ma chambre a la forme d'une cage / le soleil passe son bras par la fenêtre / les chasseurs à ma porte comme les petits soldats / qui veulent me prendre
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
déjà j'ai connu le parfum de l'amour / un million de roses n'embaumerait pas autant / maintenant une seule fleur dans mes entourages / me rend malade
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
Enrique Vila-Matas (n. 1948) | Filhos Sem Filhos | tradução de José Agostinho Baptista | Assírio & Alvim | junho de 2002 | págs. 27 e 28
Preciso vitalmente de contrariar a rotina das férias. Se transformadas em rotina, deixam de ser o que são. Pavor. De maneira que, perco-me por temporadas - gosto de dizer temporadas, sem contar os dias, porque saber quantos são ao certo aviva a memória do seu fim e torna-os mais pequenos - imitando as cigarras quando todos à minha volta, de negro solenemente vestidos, se esforçam por parecerem formigas. Mas a meteorologia, essa incógnita e imperscrutável personagem, ainda não consegui contrariar, embora ela me altere os planos não raras vezes e eu saiba que, mais dia, menos dia, será a minha vez de clamar por desforra.
Por isso vos digo:
[voz firme e colocada]
parto daqui para o nada, para o silêncio, a acalmia. Quero perder-me de mim nos outros. Peço-vos, portanto, que não me pergunteis se está tudo bem, pois não vos responderei, nem com as expressões da praxe. Pretendo tão somente dizer não, não sei, não vi, não ouvi, não quero saber - e tais palavras não se adequam como resposta a um olá, tu por aqui?. Se se der o caso de vos cruzardes comigo na rua - por Deus! - fingi que não me conheceis, pois eu farei o mesmo. O mais provável, aliás, é que, na verdade, não vos reconheça mesmo, pois se meus olhos vos fitarem, crede que não é para vos ver, senão porque para algum lado têm de olhar. Não me desejeis bom dia, boa tarde e muito menos bom fim de semana - não vale a pena a distinção porque todos os meus dias serão iguais, e a palavra fim estará interdita aos meus ouvidos. Evitai os acenos, tentando captar a minha atenção. Ah! E não me pergunteis pela tese. Aliás, não é tese, é dissertação, mas repito, não me pergunteis pois não vos corrigirei nem darei resposta. Não vos atrevais a sentir ou verbalizar saudades minhas: previno-vos já que eu não terei vossas.
Durante uma temporada estarei singularmente gozando o que a tal da aleivosa meteorologia só oferece quando lhe dá na realíssima gana: sol, azul e verde. De gente, não pretendo sequer ouvir falar. Quero embriagar-me de luz, mar e natureza e a taça é pequena só para mim.
À noite, tenciono quedar-me no breu a ouvir minhas amigas cigarras dando lições ao formiguedo de como se entoa correctamente não, no, non, nein.
Assim sendo, peço-vos que façais silêncio.
[orelha colada à tela]
Está bem assim, muito obrigada.
© [m.m. botelho], carregando no player para ouvir Sympathique, dos Pink Martini, do álbum homónimo [1997]. Quando as pilhas estiverem gastas, restará a quietude do nada e o ruído emudecido do relógio esquecido na gaveta.
ma chambre a la forme d'une cage / le soleil passe son bras par la fenêtre / les chasseurs à ma porte comme les petits soldats / qui veulent me prendre
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
déjà j'ai connu le parfum de l'amour / un million de roses n'embaumerait pas autant / maintenant une seule fleur dans mes entourages / me rend malade
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...