31.8.06

Desde aquele dia aziago

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | agosto de 2006


Meu amor,

Escrevo-te estas linhas mesmo antes de partir. Comprei o papel de carta na loja da D. Carmelinda que hoje, como sempre, me perguntou por ti. Disse-lhe que não tinha novas tuas. Com uma expressão de imensa compaixão no rosto, murmurou por entre os dentes falhos «É a vida. Há que ter paciência.», enquanto me recolhia as moedas das mãos. Procurei no fundo da gaveta pelo aparo. Sabia que o havia lá deixado, mas não o encontrei logo, tantos eram os papéis e a poeira desarrumada. Sem que nada o fizesse prever, veio-me parar às mãos, enquanto vasculhava a gaveta, uma fotografia do nosso casamento. Está amarelecida pelo tempo e o meu fato preto tem marcas de dedadas. Devia tê-la posto num quadro, para não se estragar. A ver se quando voltar não me esqueço de o fazer.
Como te disse, estou de abalada e ainda não sei quando voltarei. As longas viagens, antes de começarem nas estradas, começam dentro de nós mesmos. Disto mesmo me dei conta quando, naquela maldita terça-feira de Carnaval, em vão me busquei no negro dos teus olhos. Havia já muito tempo que estávamos apartados, ainda que continuássemos a dormir no mesmo quarto, que partilhássemos a mesma cama. Já então, sempre que me olhava ao espelho não via reflectido na minha retina o teu semblante, nem mesmo por entre alguma névoa provocada pelas cataratas, como aparecias nos olhos do teu avô nos nossos tempos de namoro. Tinhas partido para longe de mim. Tu e eu, ambos, andávamos há muito em andanças por trilhos afastados.
Comecei a procurar-te incessantemente em todos os olhos de todas as pessoas desde que se pôs o sol e terminou aquele dia aziago. Sem calçar as botas, sem sair do sítio, comecei a minha busca de ti. Para te encontrar, transformei-me num observador de gestos e de intrigas, de estranhos enredos de escritores medíocres, representados por misteriosas personagens. Muitas ruas volvidas, após todas as buscas concluídas, cheguei à óbvia conclusão de que nenhum deles me dizia de ti.
Graças a essa duradoura jornada, sei hoje de cor muitas histórias de muita gente, inúmeros segredos, inconfessáveis detalhes e sórdidos pormenores. Sinto os cheiros sempre que inspiro, sei até ao que sabem os beijos de quem nunca beijei. Sei muitas coisas, umas boas, outras más, umas virginais, outras escabrosas, mas nunca mais soube nada de ti.
Partiste para dentro de ti mesma e nunca mais voltaste. Mergulhaste profundamente dentro desse teu corpo tisnado pelo sol para me deixares sozinho, atarantado, condenado a procurar-te em todas as criaturas que passam por mim na rua e que eu vejo acenarem-me sem desviarem sequer o olhar. Aqui me tens, demente, aparvalhado, morto de cansaço, de fome e de frio, vendo o teu reflexo nas montras das lojas, no branco da claridade da manhã, em toda a parte. Em toda a parte.
Hoje acordei para mais uma viagem. Talvez seja hoje que te encontre, que esbarre contigo num qualquer eléctrico, ou que te veja ao longe lavando os pés na fonte da praça. Vivo no alento de que seja hoje, de que seja todos os dias, que são todos os dias em que quero ir impensadamente de encontro a ti, embater no teu colo trigueiro e deixar-me tombar para que me ampares.
Parto hoje e sempre daqui, porque sei que por muito que de mim te apartes, caminharemos todos os dias sob as mesmas decadentes nuvens, sob o mesmo lúcido sol.

À partida e à chegada, cubro-te toda de beijos, de todas as cores.

Teu.


© [m.m. botelho], de partida, a galope no amanhã, ao som de Que o Mundo É Meu, de Filipa Pais, sobre um poema de Reinaldo Ferreira (1922-1959), do álbum À Porta do Mundo [2003].



Quero um cavalo de várias cores, / Quero-o depressa, que vou partir. / Esperam-me prados com tantas flores, / Que só cavalos de várias cores / Podem servir.
Quero que as rédeas façam prodígios; / Voa, cavalo, galopa mais, / Trepa as camadas do céu sem fundo, / Rumo àquele ponto, exterior ao mundo, / Para onde tendem as catedrais.
Quero uma sela feita de restos / Dalguma nuvem que ande no céu. / Quero-a evasiva – nimbos e cerros - / Sobre os valados, sobre os aterros / Que o mundo é meu.
Deixem que eu parta agora já, / Antes que murchem todas as flores. / Tenho a loucura, sei o caminho, / Mas como posso partir sozinho / Sem um cavalo de várias cores?