4.8.06

«O amor é fodido.»

       O amor é fodido. Hei-de acreditar sempre nisto. Onde quer que haja amor, ele acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser fodido. [...]
       Por que é que fodemos o amor? Porque não resistimos. É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja pelo menos parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.

© [m.m. botelho]
       Dávamo-nos mal, mas éramos inseguros e um bocado estúpidos na forma de discutir, pelo que lá fomos aguentando. Ela chamava-me «crápula». Ofendia-me. Eu respondia sempre com a mesma fórmula: «Posso ser muitas coisas, mas crápula (ou velhaco, ou sacana ou vaidoso) é que não sou.» Ela batia-me de vez em quando. Enraivecia-a. Sou uma pessoa muito calma, sobretudo diante da histeria. As raparigas não gostam desta minha faceta. Confundem-na com frieza e insensibilidade. Mas é verdade que, quando alguém me chateia, fico insensível. Como os porcos-espinhos quando são apanhados nos faróis dos camiões. Não gosto de nada que me doa.

© [m.m. botelho]
       Estávamos sempre a foder, ou a recuperar, ou a prepararmo-nos para foder. Em nada afectava o nosso amor. Tanto suspirávamos como arfávamos; tanto dizíamos carinhos como palavrões: era-nos igual. A coisa funcionava sozinha. Se exigisse algum esforço da nossa parte, teria fracassado. É uma consolação que resta. O amor é fodido, mas foder também.

© [m.m. botelho]
       Adeus – aonde mandamos as pessoas. A última sílaba que ouvimos é dum nome que só conhecemos porque jurámos que nunca o havíamos de dizer.

       Seria alegre termos sido capazes de nos despedirmos bem, ao menos uma vez. A todos os outros foi-nos tão fácil dizer adeus. Nós éramos danados, especialistas nos reencontros e no «vamos mas é continuar juntos.»

© [m.m. botelho]
       Por estas e por outras estarás sempre eu contigo e tigo com mim.

       Sobre uma estrela caída no chão, uma estrela que nunca se viu, deitei o meu coração doente e por causa de ti não ardeu.

       Para onde vai a minha vida é coisa que eu quero lá saber. Ainda tenho o cheiro nos dedos duns caranguejos que comi quando era pequenino, a mil quilómetros do mar e daqui. É esse o curso que quero seguir, se for obrigado a escolher um. Ser como um cheiro que permanece, ligado a um momento que se esqueceu.

       Sofrer é fodido porque o amor é fodido – mas como foder o sofrimento? Fazendo sofrer os outros? Já experimentei. Não resulta.

       Ai, o meu mal de amor. Todo o mal que tenho feito e que me tem acontecido, vem-me do amor que me tiraste.

© [m.m. botelho]
       Torno-me culpado só para aceitar o teu comportamento. Nunca me importei de ser o responsável por fosse o que fosse – nisto consiste a minha irresponsabilidade.

© [m.m. botelho]
       Cada um com a sua doença. A minha era não querer existir. Pensava que merecias melhor que eu, que te ias fartar de mim, que me ias descobrir. E afinal a única coisa que eu tinha para descobrires, à parte o meu grande amor, era a minha queda para a cobardia, e para ti.
       A música do meu tempo são as mulheres à minha volta a falar. «São uns filhos da puta.» Têm razão. De quem estarão a falar?

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       Estou sempre a cair em ti, em vez de em mim. [...]

       Nunca vi um céu tão bonito nem tanto sossego, enquanto acabo o meu café no meio da cidade quase vazia, a não correr para apanhar o correio que já sei que não vou apanhar, sem saber que mais dizer-te, porque a minha alma está sempre a interromper-me, a chamar por ti.

© [m.m. botelho]
       Quanto mais longe, mais perto me sinto de ti, como se os teus passos estivessem aqui ao pé de mim e eu pudesse seguir-te e falar-te e dizer-te quanto te amo e como te procuro, no meio de uma destas ruas em que te vejo, zangado de saudade, no céu claro, no dia frio. Devolve-me a minha vida e o meu tempo. Diz qualquer coisa a este coração palerma que não sabe nada de nada, que julga que andas aqui perto e chama sem parar por ti.

Texto: Miguel Esteves Cardoso | O Amor é Fodido | 3.ª edição | Assírio & Alvim | março de 1995 | excertos das páginas 16, 18, 19, 23, 24, 25, 27, 28, 30 e 31 [capítulos 2 e 3]
Imagens: © [m.m. botelho] | ontem, late at night, ao volante, de regresso a casa | 3 de agosto de 2006 |