24.9.06

E mais não peço e de mais não preciso

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | estátua | lisboa | agosto de 2006
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]


Amputação

Algo, em mim, está morto.
O lado direito inerte, ausente,
de mim está alheio.
Do lado esquerdo
o fito,
como se a um outro
olhasse.
Metade de mim persiste,
vive,
e contempla algo, ardendo,
estiolando,
que em mim está morto.
Um perfil que apodrece
e eu vivendo
e vendo ausentar-se de mim
algo que em mim está morto
definitivamente.


Rui Knopfli [1932-1997] | Memória Consentida: 20 Anos de Poesia (1959-1979) | prefácio de Luís Sousa Rebelo | Imprensa Nacional Casa da Moeda | Lisboa | 1982 | pág. 144 | publicado originalmente em Reino Submarino | 1962


Dos meus parcos e longinquamente adquiridos conhecimentos básicos de anatomia resta-me, ainda, a absoluta certeza de que o coração habita, palpita, agita o meu lado esquerdo.

O meu lado esquerdo
é mais forte do que o outro;
é o lado da intuição,
é o lado onde mora o coração.


Palpo o peito. Sinto-me. Conservo ainda íntegro e intacto o meu lado esquerdo. Estou viva. Persisto. E mais não peço e de mais não preciso, que é quanto me basta para deixar a intuição guiar-me aos bons ventos.
O lado morto, esse, que importa? «The dead only quickly decay».

© [m.m. botelho] [e excerto de O meu lado esquerdo, letra de Carlos Tê para música dos Clã], ao som de The dead only quickly decay, dos The 6ths, [voz de Neil Hannon], do álbum Hyacinths and Thistles [2000].



Priests and fools say / We are but animate clay / Rude vessels / Housing immortal souls
But the dead only quickly decay / They don't go about being born and reborn / And rising and falling like soufflé / The dead only quickly decay
It would be swell / To see some folks burn in hell / But when they go / It's just as pleasant to know /
That the dead only quickly decay / They don't go about being born and reborn / And rising and falling like soufflé / The dead only quickly decay

21.9.06

O teu ser tão vivo dentro de mim

Leonardo da Vinci [1452-1519] | desenho | estudo anatómico do tronco feminino | s.d.
L. da Vinci [1452-1519] | desenho | estudo anatómico do tronco feminino | s.d.
Biblioteca Ambrosiana | Milão | Itália

Todos os dias olho repetidamente, sem me dar conta do tempo que passa, os teus retratos, todos os teus, os nossos retratos. Neles, a tua figura, sempre tão segura, está imóvel, estática. São assim as memórias que as fotografias captam e, à sua maneira, eternizam: inertes e mudas. Por isso me inquieta, persistentemente, uma pergunta:

porque continua o teu ser tão vivo dentro de mim, batendo no meu
peito não o meu coração, mas a tua imagem viva, real, dizendo
que ainda me queres, que ainda me tens, que ainda sou tua?

Diz-me, diz-me...

porquê?

© [m.m. botelho], todos os dias. E não me interessa o tempo que passa, senão aquele em que vivo para nos amar.

20.9.06

Qualquer coisa de eterno

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | gerês | 1 de janeiro de 2006
memórias de uma manhã de outrora na tua companhia


O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.

Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.

Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.

E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.


Dante Milano [1899-1991] | Antologia dos Poetas Brasileiros: Fase Moderna, volume I | organização de Manuel Bandeira | Nova Fronteira | Rio de Janeiro | 1996

Perdoa-me por padecer terrivelmente de saudades tuas. Perdoa-me por sentir a tua falta. Perdoa-me a fragilidade de não saber viver sem ti. Perdoa-me por te querer tanto. Perdoa-me a ousadia de [sempre] te [nos] amar. Perdoa-me a fraqueza de to confessar.

© [m.m. botelho]

18.9.06

Cinco

O piano, melancólico, embala-me. Confesso que tomei, apenas há instantes, consciência da finitude do Tempo. É fácil aprisionar o tempo em medidas estanques: segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos. Bastam cinco segundos - e o que são, quanto são, como são cinco segundos? - para impregnar toda uma vida de amor.


Espero, inconformada com a demasiado vagarosa passagem do Tempo, o tempo de uma vida. Continuo à espera, sempre à espera. Permaneço imóvel, nas redondezas, apenas a alguns metros - serão quilómetros? - de distância. E tu...
Tu limitas-te, dia após dia, a flutuar sobre o Tempo, sobre mim, sobre o [nosso] amor.


Quanto Tempo é preciso para apagar aqueles cinco segundos? De quanto tempo precisaste para arrancar aqueles cinco segundos - seriam cinco anos? - de ti?

Cinco horas? Cinco dias? Cinco semanas? Cinco meses?

Não sei. Nunca saberei? Não sei, talvez um dia me contes. Cinco anos, a minha vida, toda a eternidade: nada tem importância.


Nada mais importa, pois não?

Os cinco segundos em que te tive nos meus braços - seriam cinco anos? - não são as minhas memórias, continuam presentes: são o Tempo finito em que me movimento. Permaneço estacada, perplexa, suspensa nesses cinco segundos - seriam cinco anos? -, incapaz de ir embora, de sair daqui, de os apagar de mim, de os ignorar.


Mas já nada importa, pois não? Não, suponho que não. Talvez te tenham bastado apenas... cinco segundos.


© [m.m. botelho], texto e tradução selvagem, ao som de 5 seconds to hold you, dos Devics, extraída do álbum My Beautiful Sinkink Ship [2001].



five seconds to hold you / then you'll slowly vanish from my arms / please don't speak or break this spell / you know it doesn't matter
five fathoms below you / i've waited a lifetime / but as you drift by over me / you know it doesn't matter
five years without you / they couldn't tear a moment from my mind / but memories fade and so did yours / you know it doesn't matter anymore


cinco seguros para te prender / depois tu, lentamente, dissipar-te-ias dos meus braços / por favor, não fales nem quebres este encantamento / sabes que já não importa
cinco braças abaixo de ti / esperei o tempo de uma vida / mas à medida que vagueias sobre mim / sabes que já não importa
cinco anos sem ti / não conseguiriam arrancar um momento da minha cabeça / mas as memórias desvanecem-se e assim sucedeu com as tuas / sabes que já não importa
.

14.9.06

Endoscopia

© [m.m. botelho] | bulbo
bulbo

À procura

© [m.m. botelho] | antro
antro

do invisível

© [m.m. botelho] | corpo
corpo

dentro de mim,

© [m.m. botelho] | esófago
esófago

cenário de esperança nua.

endoscopia | do gr. éndon [dentro] + skop, r. de skopein [examinar]

© [m.m. botelho], bulbo, antro, corpo do estômago, esófago e palavras.

10.9.06

Por um instante que fosse

Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity [1953]
Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity | litografia | 1953
M.C. Escher Museum | Den Haag | Países Baixos

Deixa-me respirar o ar que corre
por entre os fios dos teus cabelos,
agarrá-lo
com as minhas mãos
que hoje como outrora são tuas,
talhadas que foram para se enlaçarem
em ti.
Deixa-me sentir o cheiro da aurora que desponta
na alvura de cada um dos teus dentes
e guardá-la,
preciosa,
neste coração que tempestuosamente se esmaga
contra as paredes do meu peito.
Deixa-me sufocar na saliva que te humedece
a língua
e crer
que ainda está desejosa de nós,
dos nossos corpos lado a lado,
adormecidos, esgotados
por entre os lençóis amarrotados
dessa cama que ainda é nossa.
Deixa-me serenar no teu colo,
nesse colo onde ainda repousa
o meu choro incontido
de nada saber.

Dou por mim a duvidar
da existência do real,
do chão debaixo dos pés,
do princípio de Arquimedes,
das camadas da atmosfera,
da sucessão dos dias,
das vagas e das marés,
dos pontos cardeais,
da evidência da morte,
da função aritmética,
da cinética musical,
das luas de Saturno,
da regra de três simples,
das propriedades do ópio,
da relatividade especial,
das estações do ano,
do alfabeto com que escrevo,
da fonética do que digo,
da luz que me estilhaça os olhos,
do meu próprio nome primeiro

mas nunca desacreditei,
por um instante que fosse
na eternidade do nosso amor.

© [m.m. botelho], ao som de , de Jorge Palma, do álbum homónimo [1991].



só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar
só por ter dois sóis / só por hesitar / fiz a cama na encruzilhada / e chamei casa a esse lugar
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por inventar / só por destruir / tenho as chaves do céu e do inferno / e deixo o tempo decidir
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar / eu sei que nenhuma vai ganhar

6.9.06

«Pois meu coração é vosso.»

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | estátua | lisboa | agosto de 2006
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]


Belle qui tiens ma vie
Captive dans tes yeulx,
Qui m'as l'ame ravie
D'un soubz-ris gracieux,
Viens tost me secourir
Ou me fauldra mourir.
Pourquoy fuis tu mignarde
Si je suis pres de toy,
Quand tes yeulx je regarde
Je me perds dedans moy
Car tes perfections
Changent mes actions.

Approche donc ma belle
Approche toy mon bien,
Ne me sois plus rebelle
Puis que mon coeur est tien,
Pour mon mal appaiser,
Donne moy un baiser.


Thoinot Arbeau, pseudónimo de Jehan Tabourot [1520-1595]

Bela, que tendes a minha vida / Cativa em vossos olhos / Que arrebatais a minha alma / Com a graciosidade do vosso sorriso / Vinde depressa socorrer-me / Ou morrerei de dor. / Porque fugis, mimosa, / Quando me abeiro de vós? / Quando contemplo vossos olhos, / Perco-me dentro de mim, / Pois as vossas perfeições / Transformam a minha vida.

Aproximai-vos, pois, formosa, / Aproximai-vos, meu bem. / Não me resistais mais, / Pois meu coração é vosso. / Para serenar meu sofrimento / Dai-me um beijo.


Tradução selvagem de [m.m. botelho], enquanto lá fora [e dentro de mim] as primeiras chuvas de setembro cobrem a [demasiado] silenciosa cidade, ao som de Diferencias sobre el tema "Belle qui tiens ma vie", de Antonio de Cabezón [1510-1566], interpretadas pelo agrupamento Hesperion XXI sob a direcção de Jordi Savall, do álbum Carlos V. Mille Regretz: La Canción Del Emperador [2003].