23.3.08

Carpete [parte 1]

São 03h04. O ponteiro dos segundos está quase quase a chegar ao minuto seguinte mas ainda não chegou. Ah. Agora sim. São, exactamente, 03h05. Tenho uma manta no colo, os chinelos enfiados nos pés, gelados. Não é que esteja propriamente frio, eu é que tenho uma tremenda dificuldade em aquecer.
Acabaram-me os cigarros, mas não me faz grande diferença. Fumando menos, tusso menos e assim já não incomodo a vizinha de cima, que ainda hoje me bateu à porta para me dizer que não descansa de noite por causa do meu pigarrear. A parva. Soubesse ela o quão rápido vou buscar o desinfectante e um pano para limpar a campainha de todas as vezes que ela lá pespega o dedo. Tem as unhas sempre porcas e cheira a fritos. Quero lá saber que não durma de noite. Que ponha algodão nos ouvidos. Tem aquele pescoço tão encardido que nem deve saber, sequer, o que é algodão. Até me dá comichão só de falar na mulher. O que interessa é que se amanhã me aparece aqui lhe sopro o fumo do cigarro em cheio para a cara, a ver se tossirá ou não. E depois que não se queixe de mim
- Vê, Sô Dona Belarmina, como fumando também a senhora tosse?
ou fecho-lhe a porta na cara. Assim, sem mais.

São, exactamente, 03h11. O ponteiro dos segundos acabou de passar no zero. São, exactamente, 03h11 e o teu vestido continua pendurado na cadeira, ao Deus-dará, o cinto a cair mais para um lado do que para o outro, os botões do decote todos desapertados, a bainha da saia descosida. De cada vez que abro a porta do nosso quarto, vejo-o abanar com o vento
não imaginas a corrente-de-ar que, mesmo com a porta fechada, há no nosso quarto
e é como se te visse a ti, dentro dele, a abanares-te toda ao som de uma canção qualquer do Sérgio Godinho
e eu, tão insensível, nunca achei graça a nenhuma das canções do Sérgio Godinho
os braços para um lado, as pernas para outro, como se fosses feita de trapos mas cheirasses sempre a alfazema.
Na verdade, tu cheiravas sempre bem, mesmo quando não cheiravas a nada. O teu vestido não cheira a nada, que é o mesmo que dizer que cheira a ti,
sabes que o cheiro da cebola nos teus dedos não cheirava a cebola?
que cheira ao perfume dos teus cabelos quando o vento mo trazia pela manhã, antes de saíres para o trabalho.

São agora 03h17 e o teu vestido continua imóvel sobre a cadeira. Se ao menos o teu vestido caísse ao chão, se ao menos se mexesse
afinal, há corrente de ar no nosso quarto!
eu pegava nele e enfiava-o no armário de novo, ou num saco plástico, ou no tambor da máquina de lavar roupa, que desde que tu não lavas os teus vestidos também não se mexe. Ele não fala - o tambor da máquina de lavar roupa - mas de certeza que se falasse me diria que tem saudades do cheiro dos teus vestidos dentro dele, a tocarem-lhe ao de leve o alumínio, cada um dos orifícios, as borrachas, encharcados de água e detergente.

São 03h20. Que estranho. Só passaram três minutos desde que vi as horas e parece que passou uma eternidade. Ao invés, já passaram anos desde que pousaste o teu vestido naquela cadeira do nosso quarto e parece que ainda foi ontem que te ouvi cantar uma canção qualquer do Sérgio Godinho
não sei a letra, mas só podia ser do Sérgio Godinho
ali na cozinha, enquanto fazias café para nós. Se queres que te diga, parece que ainda foi esta manhã que te vi entrar
as maçãs do rosto rosadas pelo frio da rua
com o jornal numa mão e o pão quente, ainda a fumegar, na outra. Quase podia jurar que ainda há pouco andavas aqui na sala a fumar cigarro atrás de cigarro, a maldizeres-te a ti própria porque deixaste cair cinza na carpete
- E a empregada nunca aspira esta carpete como deve ser!
enquanto abanavas os cabelos ao som do Sérgio Godinho e inundavas o meu nariz com o cheiro do teu champô. Mas vendo bem, no cinzeiro há apenas beatas dos meus cigarros, de cujo aroma tu sempre te queixaste e que nunca compreendeste como é que eu conseguia inalar. Dos teus cigarros, nem vestígio. De marcas do teu baton nos filtros brancos dos teus cigarros, nem sombra.
Se calhar, não estiveste ainda há pouco aqui na sala a dançar. Se calhar, é tudo fruto da minha imaginação. Se calhar, sou eu que ainda sonho contigo acordado, manta no colo, chinelos enfiados nos pés sempre frios porque esta casa é enorme e há corrente de ar em todo o lado, mas, principalmente, no nosso quarto. Por falar nisso, deixa-me ir ao nosso quarto. Faz-se tarde, é melhor fechar as portadas e ligar o aquecedor, que já são mais do que horas de dormir.

© [m.m. botelho]