5.3.08

Ex

A noite arrefeceu. Logo hoje, que tu não estás cá para me aqueceres debaixo dos cobertores, logo hoje que tu não vens. Ainda me hás-de explicar porque é que tens sempre os pés tão frios.
Quando fui à rua despejar o lixo vi passar do lado de lá do passeio a tua ex-mulher. Continua com a mania de passar aqui à porta todas as noites. Trazia o cão pela trela, vestia uma camisola vermelha. Fica-lhe bem o vermelho, fá-la mais nova. Quando abri a porta, ela vinha mais ou menos em frente à mercearia e desde então não tirou os olhos de cima de mim. Ela percebe que me incomoda que me olhe assim, mas não porque seja tua ex. Ela sabe que tem um estranho poder qualquer de prender as pessoas com o olhar. Tenho medo que me hipnotize, que depois me leve para casa, me mate, corte em pedaços e me dê de comer ao cão. Não sei ao certo se lhe tenho medo ou se a acho simplesmente maluca.
Depois de despejar o lixo fechei a porta o mais depressa que pude. Enquanto subia as escadas podia ouvir o eco do meu coração descompassado no corredor. Senti a garganta a latejar, uma dor de cabeça repentina. Entrei em casa e fui a correr buscar a manta. De repente, a noite arrefeceu só porque a tua ex-mulher voltou a passar aqui na rua. Logo hoje, que tu não vens. Ainda me hás-de explicar se também é por causa dela que tens sempre os pés tão frios.

© [m.m. botelho]