São, precisamente, 03h52. Abri a porta do nosso quarto e do teu vestido, sobre a cadeira, nem sinal. No seu lugar, umas calças minhas, muito velhas, muito amarrotadas, que uso frequentemente para andar em casa. Como é possível que não esteja lá o teu vestido? O que raio fazem ali aquelas calças? No armário da casa de banho, contudo, há uma embalagem do teu champô. Vazia. Em vão tento recuperar o cheiro dos teus cabelos, mas nada. Nada. Nada. Começo outra vez às voltas pela casa, a abrir todas as portas, todas as janelas, chamando por ti, os dentes rangendo nervosamente na minha boca, gritando o teu nome que parece não querer ficar nunca dentro de mim, mas tu não respondes, mas tu não estás.
Falta um minuto para as 04h00. O frio de novo nos pés, os pés de novo dentro dos chinelos, a manta no colo mas que, todavia, já não me vale de nada. Estou outra vez gelado, sozinho, o suor a escorrer-me da testa para o rosto, as pernas meio trémulas. Começo a pigarrear. Lembro-me da vizinha de cima. A tosse sacode-me o corpo como para me despertar da letargia
ela já não está cá, ela nunca esteve cá
mas eu prefiro continuar a dormir acordado. O estupor da vizinha de cima bateu outra vez com a vassoura no chão, amanhã vai pôr-me a campainha outra vez imunda. Não me interessa o que ela diz, nem o que a tosse me faz, só espero ainda ter desinfectante para limpar aquilo tudo muito bem limpo, senão vai mesmo com álcool.
Já passa um pouco das quatro da manhã. Olho a carpete que agasalha o centro do chão da nossa sala. Nela, vejo nitidamente uma linha da cor vermelha da bainha do teu vestido vermelho, um cabelo negro da cor dos teus cabelos negros, várias manchas de cinza espalhadas e entranhadas. Cinza dos teus cigarros, cinza feita do ar que os teus lábios levaram até ao cigarro que se consumiu como eu agora me consumo. Na aparelhagem, uma canção qualquer que deve ser do Sérgio Godinho, que só pode ser do Sérgio Godinho.
Por isso, pouco me importam as evidências. Eu sei que tu não te foste embora, eu sei que
tu ainda andas por cá, tu sempre estiveste cá.
© [m.m. botelho]
Falta um minuto para as 04h00. O frio de novo nos pés, os pés de novo dentro dos chinelos, a manta no colo mas que, todavia, já não me vale de nada. Estou outra vez gelado, sozinho, o suor a escorrer-me da testa para o rosto, as pernas meio trémulas. Começo a pigarrear. Lembro-me da vizinha de cima. A tosse sacode-me o corpo como para me despertar da letargia
ela já não está cá, ela nunca esteve cá
mas eu prefiro continuar a dormir acordado. O estupor da vizinha de cima bateu outra vez com a vassoura no chão, amanhã vai pôr-me a campainha outra vez imunda. Não me interessa o que ela diz, nem o que a tosse me faz, só espero ainda ter desinfectante para limpar aquilo tudo muito bem limpo, senão vai mesmo com álcool.
Já passa um pouco das quatro da manhã. Olho a carpete que agasalha o centro do chão da nossa sala. Nela, vejo nitidamente uma linha da cor vermelha da bainha do teu vestido vermelho, um cabelo negro da cor dos teus cabelos negros, várias manchas de cinza espalhadas e entranhadas. Cinza dos teus cigarros, cinza feita do ar que os teus lábios levaram até ao cigarro que se consumiu como eu agora me consumo. Na aparelhagem, uma canção qualquer que deve ser do Sérgio Godinho, que só pode ser do Sérgio Godinho.
Por isso, pouco me importam as evidências. Eu sei que tu não te foste embora, eu sei que
tu ainda andas por cá, tu sempre estiveste cá.
© [m.m. botelho]