24.12.06

A tesoura

Cortou cuidadosamente os pedacinhos de fita-cola. Mediu com régua e esquadro o papel de embrulho. Recortou-o com a velhinha tesoura que lhe deixara a tia Teresa, numa caixa de papel, forrada a veludo amarelo. Depois foi lavar as mãos. Esfregou-as com vigor. Cheirou vezes sem conta os dedos. Não gostava do aroma a ferrugem que lhe ficava nos dedos depois de cortar com a tesoura que lhe deixara a tia Teresa.
Sentou-se num dos bancos compridos, de reitoria, que ladeavam a mesa da cozinha e cobriu com o papel colorido todas as caixinhas de cartão. Depois, escreveu cuidadosamente o seu nome em cada uma das etiquetas.
«De: Teresa. Para: ti.»
Da tia Teresa herdara também o nome. Quando era criança, não gostava do nome Teresa, mas o passar dos anos vergou-lhe a vontade que tinha de se chamar Maria. Sempre que fazia uma travessura de criança, a mãe repreendia-a dizendo-lhe que jamais poderia ter-lhe posto o nome de Maria: «Estás bem longe da pureza de Nossa Senhora. És Teresa como a tua tia, que é tão mázinha quanto tu.»
A zanga da família com a tia Teresa teve um único motivo: uma fuga com um homem casado para Paris. Antes de partir, ela mesma agarrou na caixa de papel forrada a veludo amarelo e foi levá-la à sobrinha. «Toma. É para ti. Não tenho mais o que te deixar. Ao menos ficas com uma recordação minha, algo em que possas pegar e que te seja útil. Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora. Pode ser que um dia vás ver-me a Paris». Não foi.
Pousou as caixinhas de cartão revestidas a papel de embrulho debaixo do pinheiro. Desligou as luzinhas trémulas que piscavam a compasso e foi-se deitar. Dormiu toda a noite de um sono só.
Acordou estremunhada. Procurou o relógio em cima da mesa-de-cabeceira, esfregou os olhos e olhou para o vidrinho riscado. O marcador dos dias revelava o número por que há muito esperava: «25».
A custo, arrastou-se da cama para a sala e voltou a ligar as luzinhas do pinheiro. Pegou na primeira caixinha. Leu o cartão.
«De: Teresa. Para: ti.».
«Para mim?», pensou, e os olhos arregalaram-se como se ler aquele cartãozinho que ela própria havia escrito lhe houvesse trazido muita surpresa. Desembrulhou a caixa. Estava vazia. Depois leu os cartões de todas as outras caixas que desembrulhou zelosamente. Estavam todas igualmente vazias.
Para o fim, deixou uma caixa comprida, rectangular. O cartão que ostentava era idêntico a todos os outros.
«De: Teresa. Para: ti.».
Rasgou o papel. Olhou para as unhas e achou-as grandes. Abriu a caixa. Lá dentro, a tesoura da tia Teresa repousava em veludo amarelo. Pegou nela e começou a cortar as unhas das mãos, depois as dos pés.
«Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora.» Naquela manhã de Natal lembrou-se da tia Teresa, algures em Paris, se ainda fosse viva. E disse baixinho «obrigada», para lhe agradecer o singular presente que alguma vez recebera.

© [m.m. botelho], ao som de Merry Christmas, Mr. Lawrence, de Ryuichi Sakamoto, do álbum Merry Christmas, Mr. Lawrence: OST [1994].