11.12.06

Uma puta vulgar

© [m.m. botelho] | fotografia | lusitano | porto | setembro de 2006


Margarida caminhava nas pontas dos pés. Mal pousava o calcanhar no chão. Tinha receio de perder a pose. Todas as manhãs, quando acordava, corria para o guarda-fatos. Ansiava pelo dia em que se olharia no espelho, corpo inteiro, e gostaria do que visse. Margarida achava-se feia. E era.
Pousar inteiramente o pé no chão requer carisma, coisa que Margarida não tinha. Não sabia, simplesmente, se deveria pousar o pé todo de uma vez no chão, se primeiro a ponta e depois o calcanhar ou primeiro o calcanhar e depois a ponta. Evitava olhar para os pés enquanto caminhava, não fosse perder o norte. Margarida não sabia caminhar por instinto; tinha de prever exactamente onde pisava. No fundo, temia apenas calcar os dejectos de um cão vadio e ficar ainda mais suja do que o que já era.
Passava os dias deambulando de um lado para o outro, na esperança de ser abordada por um cliente que vestisse fato. Os clientes de Margarida usavam fatos-de-treino e pullovers, calças de ganga muito coçadas com camisas de flanela e botas sujas de terra que exalavam cheiros pestilentos quando descalçadas. Não raras vezes, sobrevinha-lhe o vómito em pleno acto. Enojavam-na os aromas baratos dos desodorizantes comprados no supermercado.
Gostaria de uma vez, ao menos uma vez na vida, ir para a cama com um homem que cheirasse a perfume e não a um reles after shave. Mas esse tipo de homens não olhava para Margarida. Não que não recorressem aos préstimos de prostitutas, mas de outra índole que não a dela. Margarida mantinha o secreto desejo de um dia vir a ser uma puta com classe. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa de uma puta vulgar.

Era Abril. Passava pela rua de Margarida um desses homens bem parecidos, asseados, bem vestidos, uns quatro ou cinco anos mais jovem do que ela. Margarida não hesitou. Abeirou-se dele e, lastimando-se, pediu ajuda ao pobre coitado, invocando um salto partido. O cavalheiresco indivíduo, sôfrego que estava de carícias e de quem o fizesse sentir-se alguém - perdera o emprego há dias e desde então deambulava pela cidade em busca de trabalho - ofereceu-se imediatamente para a acompanhar ao sapateiro. Margarida vestiu a pele de cordeiro e foi.
Fez-se pura aos olhos de Pedro - imaginemos, por momentos, que o rapaz se chamava Pedro - e desde então empenhou-se em prosseguir o seu objectivo. Talvez se se olhasse ao espelho de braço dado com Pedro se achasse mais bonita.
Casaram passados quatro meses. Ainda não têm filhos, mas estão a pensar seriamente nisso. Margarida faz amor com Pedro de quando em vez, se ele não está cansado ou não tem sono. Para poder casar rapidamente com Margarida, Pedro mudou de profissão. Nunca mais voltou a ser executivo. Agora é mineiro e, como as toupeiras, sabe sobreviver no escuro das profundezas. A princípio, a falta de ar das minas incomodava-o, mas, lentamente, foi-se habituando a respirar em pequenas golfadas. Pedro é versátil: respira como pode, fala como pode, pensa como pode, vive como pode e casou com quem pôde. Não é homem de grandes ambições e, por isso, a mediocridade basta-lhe.

Aos fins-de-semana, Pedro vai ver a mãe, acamada num lar. Margarida fica sozinha em casa. Remexe-lhe as coisas, abre-lhe as gavetas, vasculha-lhe os bolsos do casaco. Gosta de se limpar à toalha dele e de fazer as palavras cruzadas no jornal com a caneta que ele mete no bolso do peito. Acha que usar as coisas de Pedro aumenta a intimidade entre ambos. Por falar em intimidade, não vá o diabo tecê-las, não fazem muito barulho, à noite, na cama. Pouco conversam entre si. Margarida não gostava que os clientes falassem muito, preferindo que se aviassem depressa. Achava sempre que se demorasse muito, as prostitutas da rua lhe roubariam o cliente seguinte, ou formariam um maquiavélico esquema para lhe prejudicar o "negócio".
Às vezes, enquanto lava a loiça, Margarida olha Pedro de soslaio e interroga-se se ele gostará mesmo dela. Depois pergunta-lho de viva voz. Ele diz que sim. Lá dentro, Pedro ouve alguém dizer-lhe que acha que sim, que gosta dela e todos os dias vai achando que sim. Até um dia.
Depois de despejar a bacia e limpar as mãos molengonas ao pano, Margarida pede a Pedro que lhe dê o braço e vão juntos pôr-se diante do guarda-fatos.
Pedro não diz nada. Fica quedo, mudo. Ela mira a sua própria imagem reflectida no vidro. Margarida continua a ansiar pelo dia em que se olhará no espelho, corpo inteiro, e gostará do que vê. Margarida continua a achar-se feia. E é. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa, nunca passará, de uma puta vulgar.

© [m.m. botelho], ao som de Popless, dos G.N.R., do álbum homónimo lançado em 2000.



Maldito espelho devolveu a imagem dela sem reflectir / É um vicio danado aspirar o ar ao ela passar, / Vem o hábito ficar sentado e, deixá-la fugir / Fingir que passou ao lado, e vê-la zarpar...
Ai, lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce, / Lá vem ela mostrando interesse / Essa palavra, nesse popless. / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito acima, outro desce / Lá vem ela mostrando interesse / No que, no que cresce.
É uma pena ter ficado sentado e deixá-la jantar / Foi um erro declarado e culpado por ela sorrir.
Ai, lá vem ela sabendo que é bela / Que me escuta à janela. / Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa tudo mexe. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa, / Que a nossa cabeça fica á toa. / Lá vem ela sabendo que o interesse / De tudo isto é palavra popless.
Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce / Lá vem ela mostrando interesse / De resolver este popless. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa / E que esta cabeça ficou à toa / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito assim até mais cresce / Lá vem ela mostrando interesse / E lá vem ela sabendo que é bela / E que à janela eu fico à espera / À espera de vê-la...