28.7.06

Capítulo V

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | julho de 2006


Nasci numa manhã de Abril. Não fazia frio nem calor. Nem sol, nem chuva. Não foi um dia ventoso nem abafado.
- Era Abril, que mais queres que te diga? – esquivava-se o meu Pai, sempre que eu lhe pedia que me descrevesse o dia em que nasci.
Fui criada pela Mariana e por ele. A minha Mãe foi sempre uma presença ausente. Penso até que nunca conseguiu ultrapassar o facto de ter interrompido uma aula para me dar à luz. Detestava que lhe interrompessem as aulas. Chegava a expulsar os alunos se lhe faziam perguntas em ocasiões que considerava despropositadas.
- Não suporto pessoas impertinentes! – esconjurava frequentemente.
O meu Pai costumava dizer que a minha Mãe tinha o melhor e o pior dos grandes artistas: «era boa e sabia disso». Na verdade, qualquer projecto ao qual o seu nome estivesse associado era um sucesso garantido. Eu mesma assisti a algumas ovações à minha mãe enquanto encenadora, nas raras vezes em que o meu Pai tinha tempo para ir comigo aos espectáculos, pois só pela mão dele eu entrava num teatro. A minha Mãe ralhava e dizia que não podia ter meninas agarradas às saias dela no teatro, que tinha de se movimentar, que tinha uma companhia e muitos subsídios, muitas carreiras, muitos espectáculos dependentes dela. Não podia, por isso, desperdiçar o seu preciosíssimo tempo com meninas agarradas às suas saias, ainda que se tratasse da própria filha.
O meu Pai fingia não ouvir o que ela dizia, mas não podia tapar-me os ouvidos, apesar de, sempre que a minha Mãe zurzia coisas do género, a mandar calar e lhe pedir que não dissesse aquelas coisas ao pé de mim, ao que ela, evidentemente, não obedecia. A minha Mãe era uma "diva". Teve o público aos pés durante os melhores anos da sua vida, como fazia questão de frisar a cada passo, para que ao meu Pai não restassem dúvidas de que o casamento para ela nunca fora sinónimo de felicidade.
A minha Mãe teve o condão de sempre me fazer sentir um fardo na sua vida. No fundo, apenas fazia questão de reiterar diariamente o que havia dito ao meu Pai quando ele lhe sugeriu a minha concepção. E por muito que eu tenha pedido a ambos a dádiva de um irmão, ele nunca nasceu. O meu Pai ainda hoje continua a dizer que «foi porque Deus não quis», porque «contra Deus não há vontade». Agora que penso mais detidamente sobre isso, dou graças por ele nunca ter nascido. Para ter de provar da rejeição materna que eu provei, foi certamente melhor que não tenha vindo ao mundo. Se bem que, não tendo ganho uma Mãe alheada, perdeu um Pai excepcional.
- É um avô, é o que é. Por isso acha graça a tudo o que a criancinha faz. Tem o coração derretido, num melaço de meter dó! – criticou a minha Mãe, quando ouviu o meu Pai aplaudir excessivamente as minhas interpretações pavorosas ao violoncelo dos primeiros exercícios que estudei. E, de facto, o meu Pai tinha mesmo de ter o coração derretido para ser capaz de suportar o que a minha Mãe lhe fazia. Corriam boatos de que a "diva", como a Mariana lhe chamava pejorativamente, não dava lições aos alunos apenas no teatro, mas também na cama. Se era verdade ou não, nunca o soube, pois o meu Pai nunca me falou disso e a Mariana fecha-se em copas sempre que tento abordar o assunto.
- Até à morte do seu Avô, a Mãezinha da menina ainda era suportável. Depois disso, passou a ignorar completamente o seu Paizinho. E ele não merecia isso, não senhor. Não merecia. – contou-me a Mariana na conversa mais longa que já tivemos, na noite em que decidi sair de casa sem nada dizer ao meu Pai, na tentativa de lhe evitar a dor da despedida, que apenas consegui adiar.
Os meus pais haveriam de se separar quando eu ainda andava no colégio. O meu Pai comprou um palacete enorme, com um grande pátio recheado de árvores frondosas, no qual a "diva" passou a viver. Ali leccionava, recebia artistas, organizava tertúlias e dava jantares aborrecidíssimos para os quais eu passei a ser convidada desde que ganhei o meu primeiro prémio de interpretação, aos doze anos. A partir de então, a minha Mãe passou a exibir-me como um troféu, como mais uma distinção entre as tantas que tinha espalhadas pelas paredes. Comprava-me os vestidos, as meias e os sapatos e ordenava ao motorista que fosse buscar-me a casa do meu Pai, que se despedia de mim com um beijo embebido em meiguice e lágrimas. Apenas ele e a Mariana se davam conta do meu sofrimento porque, à porta do quarto, me ouviam chorar baixinho enquanto me aperaltava naqueles vestidinhos pavorosos, incredulamente ainda menos estéticos quando eu alojava o violoncelo entre as pernas, qual animal amestrado do circo, que representa o número mas não recolhe os aplausos, pois esses vão para o domador, no meu caso, a minha querida Mãe, que até as peças que eu haveria de tocar se encarregava de escolher...
Penso que a única vez que a minha Mãe me deu um beijo sincero foi na noite em que, ao jantar, disse timidamente que queria ser violoncelista. O meu Pai engasgou-se, tossicou bastas vezes e pediu-me por favor que repetisse, que com certeza não ouvira bem. Sem erguer os olhos da toalha muito branca e muito engomada, respirei fundo, engoli em seco e cuspi intrepidamente:
- Quero ser violoncelista.
O meu Pai pousou então o guardanapo, ergueu-se da cadeira e caminhou até mim em passos lentos. A cada centímetro que se aproximava, a sua figura agigantava-se, desmesuradamente, perante a minha agora tiritante pequenez.
- Minha filha, tens a certeza do que nos estás a dizer?
Fitei a minha Mãe, que havia pousado os talheres e o guardanapo e ajeitava agora os óculos no nariz, voltada para mim, na expectativa da minha resposta.
- Então? – perguntou ela, atravessando-me o peito com o olhar.
- Sim, decidi que quero ser violoncelista. Tenho a certeza.
A minha Mãe logo ali soltou uma estrondosa gargalhada, levantou-se da cadeira, caminhou até mim e deu-me um beijo rápido na testa. Depois disse com voz seca:
- Estou muito orgulhosa de ti. – e saiu da sala, lançando sorrisos altivos ao marido, com o ar triunfante dos generais romanos percorrendo a Via Appia.
O meu Pai, desolado, acenava negativamente com a cabeça. Sem saber que o fazia, naquela noite destruí-lhe um sonho. Eu, sua única filha, tinha por seu desejo sobre os ombros a singular tarefa de dar continuidade a quatro gerações de médicos. No entanto, decidira ser artista, como a minha Mãe. O meu desolado Pai acabava de ser derrotado pela sua maior aliada, eu, numa luta que desde o meu nascimento travara com a sua maior opositora, a minha Mãe.
- Ao menos, que siga a vida artística, que não seja uma apagada, como a Mariana e como a maioria das outras mulheres. Que deixe uma marca da sua passagem neste país, neste mundo! - alvitrou ela, poucas horas depois de eu nascer.
- Que ideia! A menina vai para Coimbra estudar Medicina. Como eu fiz. Como o seu Avô fez. Como o seu Bisavô fez. E o meu Avô fez antes dele.
- A ver vamos, Joaquim... A ver vamos... – rematou ela, na esperança de sair vitoriosa da querela que então começava entre si e o meu Pai.
O meu Pai, naquele instante em que me ouviu dizer «quero ser violoncelista», vaticinou que eu, por ter escolhido tal profissão, acabava de encarnar tudo o que ele mais detestava na minha Mãe. Pensou que também eu, no futuro, não quereria ter filhos por não poder tocar violoncelo com a barriga grande, ou para que os fedelhos não me interrompessem as aulas, ou que, mesmo que os tivesse, nunca os levaria aos meus concertos porque não quereria meninos agarrados às minhas saias. Pobre Pai! Volvidos tantos anos ainda recordo bem a aflição que lhe percorria o olhar. Mesmo sem saber o que lhe passava pela cabeça, afaguei-lhe ternamente os cabelos e disse-lhe:
- Papá, não se preocupe. Não vou ser uma "diva". Vou só ser violoncelista.
E ele, com os olhos marejados de lágrimas, abraçou-me e, apertando-me com força contra o seu peito, murmurou:
- Sim, meu bebé. Se tiveres de ser, serás. Contra Deus não há vontade...

© [m.m. botelho], em nova incursão ao baú das inutilidades.