28.6.06

O recalcitrar dos dias

© [m.m.botelho]
© [m.m.botelho] | tabuleiro de rosas mortas | junho de 2006
desenho a tinta da china preta windsor & newton e aparo sobre papel


Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversabilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.
No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.
Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.


Eduardo Pitta [n.1949] | Marcas de Água | Imprensa Nacional | Lisboa | 1999

23.6.06

A janela que avista o mar

Caspar David Friedrich [1774-1840] | Caminhante Contemplando um Mar de Nevoeiro | c.1817/18
C. Friedrich [1774-1840] | Caminhante Contemplando Mar de Nevoeiro | c.1817
Hamburger Kunsthalle | Hamburgo | Alemanha


Daqui onde me encontro avisto o mar. Hoje está uma daquelas tardes quentes, a antecipar o Verão, quase fazendo esquecer que há Primavera... As janelas das casas abrem-se ainda timidamente, como que adivinhando os calafrios que ainda surpreendem quem lá vive. Daqui onde me encontro avisto o mar. Tem hoje a tíbia superfície tomada da placidez que é costume encontrar-se só nas profundezas, só no escuro do inacessível.
Hoje está um daqueles dias taciturnos, convidativos a um silêncio que esta massa salgada, aqui em frente, teima em enodoar. Um murmúrio, um rugido de onda... e o sossego interrompe-se, os olhos erguem-se do livro, despregam-se das letras emparelhadas em palavras e perdem-se, novamente, nas vagas desta imensidão.
Das janelas das casas das redondezas espreitam os que lá vivem, tolhidos do arrepio e ainda incrédulos da quentura dos dias como o de hoje. Olham estas águas, perdem-se entre a espuma, entre os recortes da ondulação, afundam-se neste intenso azul. E as casas onde se acham contorcem-se também, friorentas por dentro e escaldadas desta luz incandescente por fora. As janelas abertas de par em par são gigantescos olhos atentos que espreitam a vida de quem passa lá em baixo. As casas vêem tudo com os olhos de quem lá mora.
Hoje está uma daquelas tardes em que o mar quer engolir o sol, enquanto as janelas abocanham as pessoas que passam cá em baixo e as casas devoram as pessoas que nelas moram. Hoje está uma daquelas tardes abrasadoras, de Estio, quase a fazer esquecer que há Primavera, a fazer esquecer que há estações. E o meu desejo, sob o domínio desta fulgência, é prender-te na mordedura do meu beijo, em frente a este abismo marítimo, debaixo desta janela onde as cortinas que nos encobrem são a espuma das ondas em tropel.
Porque o aqui onde me encontro é o aí onde me perco.

© [m.m. botelho], ao som de É doce morrer no mar, na voz de Cesária Évora e Marisa Monte, do álbum Café Atlântico [1999].

É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
A noite que ele não veio foi / Foi de tristeza p'ra mim / Saveiro voltou sozinho / Triste noite foi p'ra mim
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
Saveiro partiu de noite foi / Madrugada não voltou / O marinheiro bonito / Sereia do mar levou
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar
Nas ondas verdes do mar, meu bem / Ele se foi afogar / Fez sua cama de noivo / No colo de Iemanjá
É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar / É doce morrer no mar / Nas ondas verdes do mar

18.6.06

Dança de palavras

Paula Rego [n. 1935] | desenho para 'The Dance' II | 1988
Paula Rego [n. 1935] | desenho para The Dance II | 1988
Tate Gallery | Londres | Reino Unido

- O Jesus morreu?
- Sim. Mas depois de morto, ressuscitou e foi para o Céu.
- Então o que é que está ali a fazer? (pergunta, apontando para uma réplica miniatura da Pietà)
- Está a descansar nos braços da mãe.
- Hum... Se calhar, cansou-se a jogar à bola, não?...

[pausa]

- Quem é este? (aponta para uma imagem miniatura de um santo envolto numa redoma de vidro)
- É o São Bento.
- Por que é que está aqui fechado? Portou-se mal? (dá pancadinhas na redoma)
- Não. Está aí dentro para ficar protegido da chuva e do sol. (pisco-lhe o olho)
- Ele já morreu?
- Já. Morreu aqui na Terra, mas foi para o Céu, onde vive feliz, a saltar de nuvem em nuvem! (sorrio e passo-lhe a mão pela cabeça)
- Ui! Descalço?

[pausa]

- Porque é que o Jesus está na cruz? (aponta para um crucifixo)
- Porque deu a vida por nós.
- Porque é que os maus puseram o Jesus na cruz?
- Por isso mesmo, porque eram maus.
- O Jesus não tinha amigos?
- Tinha, muitos. E tinha doze amigos especiais, os discípulos.
- Eu amanhã também vou ter com os meus amigos.
- Ah sim? E como se chamam os teus amigos?
- Oh... Ainda não sei. Ainda não os conheço. Mas vou conhecer. É bom conhecer, não é?


As minhas conversas de ontem com o Senhor D. Pedro - como eu lhe chamo -, infante de quatro anos que, de vez em quando, me entra casa dentro para lhe pintar as paredes de alegria... e de dúvida.

© [m.m. botelho], a pensar ao som de Ser de Sagitário, de Adriana Calcanhotto, do álbum Adriana Partimpim.

Você metade gente / e metade cavalo / durante o fim do ano / cruza o planetário / cavalga elegância / cabeça em pé de guerra mansa / nas mãos arco e flecha / meu coração / aguarda e acompanha / seu itinerário / até o fim do ano / ser de sagitário. / Você metade gente / e metade cavalo.

1.6.06

Especiarias num narcótico

© 2006 [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | sem título | maio de 2006
desenho/ilustração a caneta rotring isograph 1.00 mm preta
e lápis caran d'ache prismalo aquarelle vermelho sobre papel

Dama em frente do espelho
[1907-08]

Como especiarias num narcótico,
solta leve no fluente-claro
espelho os gestos cansados;
e põe todo o sorriso lá dentro.

E espera, até que o fluido
cresça; então lança os cabelos
no espelho e, erguendo os ombros
admiráveis do vestido de noite,

bebe em silêncio da sua imagem. Bebe
o que um amante beberia em vertigem,
crítica, desconfiada; e só acena

à criada, quando lá no fundo
do espelho vê luzes, armários
e o baço duma hora tardia.


Rainer Maria Rilke [1875-1926]
, in Poemas. As Elegias de Duíno. Sonetos a Orfeu, prefácios, selecção e tradução de Paulo Quintela [1905-1987], 5.ª edição, Edições Asa, 2003.