26.12.06

Como as gaivotas em terra

© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | setembro de 2006

- Que fazes, tonta, aí sentada à beira-mar?

Sou
como as gaivotas em terra.
Não sabem que esperam,
não sei que espero.
Quem passa augura:
«Vai tempestade
no mar.» Em mim,
tumulto de ventos,
destroços
submersos
em lágrimas.
Cada onda traz em si
estranho voltar.

Que faço eu, tonta, aqui
sentada à beira-mar?
Não sei que espero,
se desespero
pelo tornar.

Eis-me, tonta, aqui
sentada
por ti,
em ti
à beira-mar.

© [m.m. botelho]

24.12.06

A tesoura

Cortou cuidadosamente os pedacinhos de fita-cola. Mediu com régua e esquadro o papel de embrulho. Recortou-o com a velhinha tesoura que lhe deixara a tia Teresa, numa caixa de papel, forrada a veludo amarelo. Depois foi lavar as mãos. Esfregou-as com vigor. Cheirou vezes sem conta os dedos. Não gostava do aroma a ferrugem que lhe ficava nos dedos depois de cortar com a tesoura que lhe deixara a tia Teresa.
Sentou-se num dos bancos compridos, de reitoria, que ladeavam a mesa da cozinha e cobriu com o papel colorido todas as caixinhas de cartão. Depois, escreveu cuidadosamente o seu nome em cada uma das etiquetas.
«De: Teresa. Para: ti.»
Da tia Teresa herdara também o nome. Quando era criança, não gostava do nome Teresa, mas o passar dos anos vergou-lhe a vontade que tinha de se chamar Maria. Sempre que fazia uma travessura de criança, a mãe repreendia-a dizendo-lhe que jamais poderia ter-lhe posto o nome de Maria: «Estás bem longe da pureza de Nossa Senhora. És Teresa como a tua tia, que é tão mázinha quanto tu.»
A zanga da família com a tia Teresa teve um único motivo: uma fuga com um homem casado para Paris. Antes de partir, ela mesma agarrou na caixa de papel forrada a veludo amarelo e foi levá-la à sobrinha. «Toma. É para ti. Não tenho mais o que te deixar. Ao menos ficas com uma recordação minha, algo em que possas pegar e que te seja útil. Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora. Pode ser que um dia vás ver-me a Paris». Não foi.
Pousou as caixinhas de cartão revestidas a papel de embrulho debaixo do pinheiro. Desligou as luzinhas trémulas que piscavam a compasso e foi-se deitar. Dormiu toda a noite de um sono só.
Acordou estremunhada. Procurou o relógio em cima da mesa-de-cabeceira, esfregou os olhos e olhou para o vidrinho riscado. O marcador dos dias revelava o número por que há muito esperava: «25».
A custo, arrastou-se da cama para a sala e voltou a ligar as luzinhas do pinheiro. Pegou na primeira caixinha. Leu o cartão.
«De: Teresa. Para: ti.».
«Para mim?», pensou, e os olhos arregalaram-se como se ler aquele cartãozinho que ela própria havia escrito lhe houvesse trazido muita surpresa. Desembrulhou a caixa. Estava vazia. Depois leu os cartões de todas as outras caixas que desembrulhou zelosamente. Estavam todas igualmente vazias.
Para o fim, deixou uma caixa comprida, rectangular. O cartão que ostentava era idêntico a todos os outros.
«De: Teresa. Para: ti.».
Rasgou o papel. Olhou para as unhas e achou-as grandes. Abriu a caixa. Lá dentro, a tesoura da tia Teresa repousava em veludo amarelo. Pegou nela e começou a cortar as unhas das mãos, depois as dos pés.
«Sempre que cortares com ela, lembra-te que ta deixou a tua tia Teresa, antes de se ir embora.» Naquela manhã de Natal lembrou-se da tia Teresa, algures em Paris, se ainda fosse viva. E disse baixinho «obrigada», para lhe agradecer o singular presente que alguma vez recebera.

© [m.m. botelho], ao som de Merry Christmas, Mr. Lawrence, de Ryuichi Sakamoto, do álbum Merry Christmas, Mr. Lawrence: OST [1994].


19.12.06

Da cabeça aos pés

Felicien Rops [1833-1898] | Haisne et Amour de prestre sont de mesme Viol
c. 1878 | carvão, água a tinta-da-china e pastel
Galeria Derom | Bruxelas | Bélgica

Passei por ti ontem, na rua.
Seriam umas
seis da tarde.
Vestias preto
da cabeça aos pés.
Não reparei nos sapatos.
Seriam vermelhos?

Trazias pela mão o teu filho,
o filho que eu te fiz.
Dizem que tem os meus olhos,
o teu nariz.
Recordo com lucidez
a noite em que engravidámos.
E tu, ainda te lembras?

Disse-me, há tempos, o teu patrão
que lhe puseste o meu nome.
Porque é que o tratas só por «filho»?

O teu filho, o teu filho
esse filho que eu te fiz.

Engravidei-te, engravidámos
numa noite morna de Maio.
Cobri-te o rosto com ambas as mãos
e tatuei-te as entranhas
com sémen,
o meu sémen que era teu.

Engravidei-te, engravidámos
numa noite morna de Maio.
Passava das seis da tarde.
Vestias o mundo
inteiro
da cabeça aos pés.

© [m.m. botelho]

18.12.06

Canela

© [m.m. botelho] | manuscrito | dezembro de 2006

Queria polvilhar a tua voz com canela e mordê-la como se morde um pastel de nata. Apetece-me a tua voz doce, polvilhada com canela.
© [m.m. botelho], ao som de Métropolitain, de Emanuel Santarromana, do álbum Hôtel Costes, Vol. 6, compilado e misturado por Stéphane Pompougnac.

12.12.06

Fecha a porta quando saíres.

Já lavei a loiça,
limpei os copos,
os pratos e as panelas ficam a escorrer,
amanhã arrumo-os no armário.
Dobrei as tuas meias,
os pijamas,
as camisas.
Está tudo como tu gostas.
Ia aquecer-te leite no micro-ondas
- aqueci um pouco para mim -
mas depois lembrei-me de que talvez
prefiras chá.
O açúcar está no armário,
no mesmo sítio de sempre.
Hoje voltei a cruzar-me com o engenheiro
no elevador.
Perguntou por ti,
lembrou a conta do condomínio.
Está cada dia mais careca,
o estupor do engenheiro.
Estive a limpar a carpete.
Encheste a carpete de terra
com essas botifarras medonhas.
Gostava tanto que usasses sapatos,
pretos,
de sola e berloques.
Depois de arrumares o que é teu
- leva tudo de uma vez,
não deixes nada para trás -
mete as tralhas no elevador de uma assentada.
Oxalá não te cruzes com o engenheiro,
não vá pedir-te também a ti
que pagues a conta do condomínio.
Fecha a porta quando saíres,
mas deixa a luz acesa,
que quero guardar na memória
a tua imagem
ao ires embora
.

© [m.m. botelho]

11.12.06

Uma puta vulgar

© [m.m. botelho] | fotografia | lusitano | porto | setembro de 2006


Margarida caminhava nas pontas dos pés. Mal pousava o calcanhar no chão. Tinha receio de perder a pose. Todas as manhãs, quando acordava, corria para o guarda-fatos. Ansiava pelo dia em que se olharia no espelho, corpo inteiro, e gostaria do que visse. Margarida achava-se feia. E era.
Pousar inteiramente o pé no chão requer carisma, coisa que Margarida não tinha. Não sabia, simplesmente, se deveria pousar o pé todo de uma vez no chão, se primeiro a ponta e depois o calcanhar ou primeiro o calcanhar e depois a ponta. Evitava olhar para os pés enquanto caminhava, não fosse perder o norte. Margarida não sabia caminhar por instinto; tinha de prever exactamente onde pisava. No fundo, temia apenas calcar os dejectos de um cão vadio e ficar ainda mais suja do que o que já era.
Passava os dias deambulando de um lado para o outro, na esperança de ser abordada por um cliente que vestisse fato. Os clientes de Margarida usavam fatos-de-treino e pullovers, calças de ganga muito coçadas com camisas de flanela e botas sujas de terra que exalavam cheiros pestilentos quando descalçadas. Não raras vezes, sobrevinha-lhe o vómito em pleno acto. Enojavam-na os aromas baratos dos desodorizantes comprados no supermercado.
Gostaria de uma vez, ao menos uma vez na vida, ir para a cama com um homem que cheirasse a perfume e não a um reles after shave. Mas esse tipo de homens não olhava para Margarida. Não que não recorressem aos préstimos de prostitutas, mas de outra índole que não a dela. Margarida mantinha o secreto desejo de um dia vir a ser uma puta com classe. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa de uma puta vulgar.

Era Abril. Passava pela rua de Margarida um desses homens bem parecidos, asseados, bem vestidos, uns quatro ou cinco anos mais jovem do que ela. Margarida não hesitou. Abeirou-se dele e, lastimando-se, pediu ajuda ao pobre coitado, invocando um salto partido. O cavalheiresco indivíduo, sôfrego que estava de carícias e de quem o fizesse sentir-se alguém - perdera o emprego há dias e desde então deambulava pela cidade em busca de trabalho - ofereceu-se imediatamente para a acompanhar ao sapateiro. Margarida vestiu a pele de cordeiro e foi.
Fez-se pura aos olhos de Pedro - imaginemos, por momentos, que o rapaz se chamava Pedro - e desde então empenhou-se em prosseguir o seu objectivo. Talvez se se olhasse ao espelho de braço dado com Pedro se achasse mais bonita.
Casaram passados quatro meses. Ainda não têm filhos, mas estão a pensar seriamente nisso. Margarida faz amor com Pedro de quando em vez, se ele não está cansado ou não tem sono. Para poder casar rapidamente com Margarida, Pedro mudou de profissão. Nunca mais voltou a ser executivo. Agora é mineiro e, como as toupeiras, sabe sobreviver no escuro das profundezas. A princípio, a falta de ar das minas incomodava-o, mas, lentamente, foi-se habituando a respirar em pequenas golfadas. Pedro é versátil: respira como pode, fala como pode, pensa como pode, vive como pode e casou com quem pôde. Não é homem de grandes ambições e, por isso, a mediocridade basta-lhe.

Aos fins-de-semana, Pedro vai ver a mãe, acamada num lar. Margarida fica sozinha em casa. Remexe-lhe as coisas, abre-lhe as gavetas, vasculha-lhe os bolsos do casaco. Gosta de se limpar à toalha dele e de fazer as palavras cruzadas no jornal com a caneta que ele mete no bolso do peito. Acha que usar as coisas de Pedro aumenta a intimidade entre ambos. Por falar em intimidade, não vá o diabo tecê-las, não fazem muito barulho, à noite, na cama. Pouco conversam entre si. Margarida não gostava que os clientes falassem muito, preferindo que se aviassem depressa. Achava sempre que se demorasse muito, as prostitutas da rua lhe roubariam o cliente seguinte, ou formariam um maquiavélico esquema para lhe prejudicar o "negócio".
Às vezes, enquanto lava a loiça, Margarida olha Pedro de soslaio e interroga-se se ele gostará mesmo dela. Depois pergunta-lho de viva voz. Ele diz que sim. Lá dentro, Pedro ouve alguém dizer-lhe que acha que sim, que gosta dela e todos os dias vai achando que sim. Até um dia.
Depois de despejar a bacia e limpar as mãos molengonas ao pano, Margarida pede a Pedro que lhe dê o braço e vão juntos pôr-se diante do guarda-fatos.
Pedro não diz nada. Fica quedo, mudo. Ela mira a sua própria imagem reflectida no vidro. Margarida continua a ansiar pelo dia em que se olhará no espelho, corpo inteiro, e gostará do que vê. Margarida continua a achar-se feia. E é. Sempre que se olha no espelho sabe bem que, em boa verdade, não passa, nunca passará, de uma puta vulgar.

© [m.m. botelho], ao som de Popless, dos G.N.R., do álbum homónimo lançado em 2000.



Maldito espelho devolveu a imagem dela sem reflectir / É um vicio danado aspirar o ar ao ela passar, / Vem o hábito ficar sentado e, deixá-la fugir / Fingir que passou ao lado, e vê-la zarpar...
Ai, lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce, / Lá vem ela mostrando interesse / Essa palavra, nesse popless. / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito acima, outro desce / Lá vem ela mostrando interesse / No que, no que cresce.
É uma pena ter ficado sentado e deixá-la jantar / Foi um erro declarado e culpado por ela sorrir.
Ai, lá vem ela sabendo que é bela / Que me escuta à janela. / Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa tudo mexe. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa, / Que a nossa cabeça fica á toa. / Lá vem ela sabendo que o interesse / De tudo isto é palavra popless.
Lá vem ela sabendo que é linda / Por onde passa a relva cresce / Lá vem ela mostrando interesse / De resolver este popless. / Ai, lá vem ela sabendo que é boa / E que esta cabeça ficou à toa / Lá vem ela sabendo que mexe / Um peito assim até mais cresce / Lá vem ela mostrando interesse / E lá vem ela sabendo que é bela / E que à janela eu fico à espera / À espera de vê-la...

5.12.06

Um bom começo

Auguste Rodin [1840-1917] | Par Abraçado | c. 1889
desenho a grafite, pena e tinta sobre papel
Museu Rodin | Paris | França

- Sabes a que cheira a ausência?
- A amoras silvestres, acabadas de colher das feridas que me rasgam a carne as noites que passo sem ti.

Ainda hei-de escrever um qualquer texto a partir destas linhas, que me parecem um bom mote. Quase tudo na vida se inicia sem que nos demos conta. O que importa é saber reconhecer e não desperdiçar - sobretudo, não desperdiçar - um bom começo.

© [m.m. botelho]

27.11.06

Terna é a noite

© [m.m. botelho] | desenho a carvão | novembro de 2006


Costumava chegar sempre por volta da meia-noite, mais coisa, menos coisa. As costas muito direitas, os cabelos irrepreensivelmente alinhados, a expressão fechada. Encostava-se ao balcão e esperava que eu me abeirasse. Então, sussurrava-me ao ouvido o mesmo pedido de sempre. Depois abria o pacote dos cigarros e tirava um, que segurava entre os lábios. Eu riscava um fósforo e acendia-lho. Ela inspirava longamente e soprava o fumo, para depois, no mais absoluto silêncio, ficar a olhar os círculos diáfanos a contra-luz, até que se elevassem a uma altura em que se confundiam com o negro do tecto.
Ficava nisto muito tempo, cigarro atrás de cigarro. Tossicava de vez em quando, bebia um pouco, perguntava-me as horas.
- Uma e meia.
- Duas e vinte.
- Três e cinco.
Quando o bar começava a ficar vazio, fazia-me sinal para que me aproximasse dela e perguntava-me:
- Importa-se que lhe volte as costas?
Eu respondia invariavelmente que não, que estivesse à vontade, mas nunca lhe confessei como ansiava que os clientes partissem. Seria capaz de desenhar às escuras cada uma das linhas dos seus ombros, cada fio de cabelo a escorrer-lhe das orelhas para o pescoço, cada traço dos vestidos pretos que usava.
Quando todos partiam, ela voltava-se para me pedir mais uns minutos. Eu e uma bebida saíamos, então, detrás do balcão e sentávamo-nos no banco ao lado. Acendia um cigarro e com o mesmo fósforo dava-lhe lume para o dela. Os fumos das nossas expirações fundiam-se debaixo da luz do candeeiro, erguíamos ambos o olhar que depois deixávamos pousar nas mãos um do outro: eu na aliança dela, ela na minha. E perguntava-lhe:
- Acha que as estrelas, lá fora, são sempre as mesmas?
- Não sei. Mas acho que o fumo dos nossos cigarros é sempre o mesmo. Entra e sai dos nossos pulmões, para depois voltar a percorrer o cigarro desde a ponta até aos nossos lábios e voltar a sair. Fumamos sempre o mesmo fumo.
- Às vezes eu fumo o seu, às vezes fuma o meu.
- Mas é sempre o mesmo, não é?
- Sim, penso que sim. Como a luz é sempre a mesma, saltando de estrela em estrela.
Ela apagava o cigarro com zelo religioso, certificando-se de que o lume morria soterrado pelas cinzas e pela força dos seus dedos. Depois voltava a beber e perguntava-me se podia servi-la uma última vez.
Eu acenava-lhe com a cabeça que sim, dava a volta e agarrava nos dois copos que deixara preparados antes daquele cigarro. Ela bebia um pouco, depois olhava para mim e dizia:
- Todas as noites, por esta hora, é infinitamente tarde. Quando esta hora toma conta da noite é sempre infinitamente tarde.
Deixava umas notas no balcão, sempre mais do que as devidas e entregava-me o casaco para que lho pusesse sobre os ombros. Dizia-me
- Boa noite.
e saía.
Eu ficava a vê-la partir, a admirar a cadência, a firmeza, o som seco dos seus passos. Lembrava-me da minha aliança, da aliança dela, ambas a brilhar no escuro.
Era madrugada alta quando eu saía e estava sempre frio demais para a roupa que tinha vestida. Por isso, corria até casa, o suor a escorrer-me da testa no Verão, a minha respiração a enevoar o escuro no Inverno.
Deitado na cama, trazia à memória o tempo em que ela murmurava, enquanto eu a beijava, que à noite era sempre o mesmo beijo, sempre o mesmo abraço, entre os nossos corpos. Voltava a mirar a minha mão, a aliança. Nunca cheguei a perguntar-lhe porque é que não a tirou, depois de nos divorciarmos, e ela também não mo perguntou, embora as víssemos brilhar na mão um do outro, todas as noites, enquanto ela fumava o seu último cigarro, o mesmo cigarro de sempre, que eu sempre lhe acendia.


Nota: o título deste texto segue a inspiração de F. Scott Fitzgerald.

© [m.m. botelho], ao som de Infinitely Late At Night, dos The Magnetic Fields, do álbum i [2004].

It was infinitely late at night / The stars are still out there / But they're all out of light / Don't worry about me, I'll be all right / It's just infinitely late at night
It's still getting later / And later andlater / I feel like I'm in a falling elevator / I'd kill for a drink / But I can't find the waiter / I really believe he's gone home / Oh god I wish I could go home / But it's infinitely late at night
Is this a blackout / Or am I losing my sight? / It should have been noon now, / The sun should be bright / But it's infinitely...
The hour on the bar clock, / It isn't finite / It's all black and white / Without the white / It's just infinitely late at night.

26.11.06

«... está tudo ainda por acontecer.»

© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | agosto de 2006

Há quanto tempo viajamos? Para quê? se já não reparamos nas paisagens. Atravessámo-las da mesma maneira que a solidão nos obrigou a percorrer essas outras paisagens de cinza que sobrevivem na memória.
Viajamos porque é necessário enfrentarmos o desamparo dos dias, ao mesmo tempo que procuramos um lugar para descansar e nele ansiarmos por um regresso.
Um nome, um nome apenas, evocando alguém, um lugar ou uma coisa, é a bagagem suficiente para avançar pela noite dentro, esperar a morte, ou iniciarmos o regresso...
Alugámos um quarto. Pernoitaremos aqui. Para lá das paredes deste quarto, na vasta noite do mar, existe uma ilha. Vê-la-emos ao amanhecer.
Chegámos à aldeia ao lusco-fusco. Entrámos nela por um largo onde uma rua se abre em direcção ao mar.
A enseada que serve de porto de abrigo avança pela terra adentro. Fecha-se como uma mão à tempestade. É um lugar seguro para os barcos e para as lágrimas da alma.
Mas não há lágrimas na verdadeira tristeza, assim como não há riso na alegria. Falo duma tristeza e duma alegria fundas, escuras, como as minas escavadas, ano após ano, para procurar um veio de ouro.
Lá fora, nas ruas e nos largos, uma luminosidade diáfana coalha, suavemente, nas mãos antigas das mulheres.
— Quem chega, etéreo, do outro lado da linha do horizonte? Quem toca as minhas pálpebras fechadas? Onde se ergue o silêncio dos dias queimados pela paixão? Quem está sobre a minha boca, com este ardor a sal?
Ouve-se o mar, longe daqui, e eu digo:
- Andei tempo a mais pelas ruas. Vivi nelas ao sabor do vento. Dormi em casas abandonadas, e nunca conheci ninguém que me amasse.
Encostando-se ao vidro da janela, a Helena diz:
E se nos calássemos enquanto a memória se esvazia? Está tudo por acontecer. Mesmo o sono, se vier, terá um peso de lume, um sabor a terras mortas e areias salgadas. Não sei... está tudo ainda por acontecer.


Al Berto [1948-1997]| O Anjo Mudo | Assírio & Alvim | 1993

21.11.06

Deglutição

George Flegel [1563-1638] | Natureza Morta | s.d.
Metropolitan Museum of Art | Nova Iorque | USA

Quando te sentas à mesa para jantar a toalha e os pratos inquietam-se, nervosos da honra de te servirem. Os talheres iniciam, então, um namoro entre si e a faca enciuma-se do garfo porque é este que te toca a boca, que vê o vermelho quente da tua boca.
O guardanapo agita-se-te no colo, suplicante de que o leves aos lábios, ansioso por que perpetues no tecido imaculado a mancha do teu beijo. Da nódoa se enche de orgulho, para voltar plácido ao teu regaço.
E logo é o copo, onde o vinho borbulha, que faz a luz incidir sobre si, em conluio com o candeeiro e te namora a língua, onde o degustarás. Deixa-se tombar com supremo gozo enquanto o bebes e julga-se Zeus só porque te percorre as entranhas.
A faca, atarantada por não ter sequer o calor da tua mão, descansa outra vez quando a seguras para estraçalhar a carne branca da ave que te sacia a fome. Até ela, embora morta, se sabe especial por ter como destino o alimento do teu corpo. Nenhuma ave teme jazer no teu prato, perante o gáudio de ser tocada pela alvura dos teus molares, envolvida pela tua língua, humedecida pela tua saliva. À medida que a deglutes faringe, laringe, estômago, todos os teus órgãos se felicitam entre si por isso mesmo, só por serem teus.
Perante a saciedade, pousas os talheres, que se deixam ficar a contar as migalhas de tempo até à próxima refeição. Dão por terminado o festim.

Só eu, sentada à tua frente, guardo a mais inerte posição, o mais sepulcral silêncio, a mais cordial expressão, só para não me entregar inteira, corpo e alma, à vontade que tenho de ser tua.

© [m.m. botelho]

17.11.06

Lembra-te de te esqueceres delas.

© [m.m. botelho] | manuscrito | novembro de 2006


Toma.
Acabei de as colher, há instantes
no jardim.
São para ti.
Abandona-as, se quiseres.
Pousa-as num qualquer banco
de uma qualquer rua,
como se de um livro velho
de poesia
se tratasse e lembra-te
de te esqueceres delas.

Deixa-as pousadas sobre as tábuas de madeira,
numa manhã de sexta-feira
sobre o orvalho de inverno.
Pode ser que o diabo as queira
para as queimar comigo na braseira,
ou para enfeitar o inferno.

Ou que alguma criança as apanhe
e as leve para casa,
ou algum bêbado as guarde,
enroladas
numa folha de jornal.

São da tua cor preferida.
Não deixei nenhum pormenor
ao acaso.

© [m.m. botelho], no local e no Tempo errados para te pensar, agora que em todos os sítios me é vedado pensar-te, ao som de 9 crimes, de Damien Rice, do álbum 9 [2006].



Leave me out with the waste / This is not what I do / It's the wrong kind of place / To be thinking of you / It's the wrong time / For somebody new / It's a small crime / And I've got no excuse
Is that alright with you? / Give my gun away when it's loaded / that alright with you? / If you don't shoot it how am I supposed to hold it / Is that alright with you? / Give my gun away when it's loaded / Is that alright with you?
Leave me out with the waste / This is not what I do / It's the wrong kind of place /
To be cheating on you / It's the wrong time / but she's pulling me through / It's a small crime / And I've got no excuse
Is that alright with you? / Give my gun away when it's loaded / Is that alright with you? / If you don't shoot it how am I supposed to hold it / Is that alright with you? / Give my gun away when it's loaded / Is that alright / Is that alright with you?
Is that alright? / Is that alright? / Is that alright with you? / Is that alright? / Is that alright? / Is that alright with you?
No...

16.11.06

O teu nome desenhado nas águas do rio.


© [m.m. botelho] | vídeo | vila do conde | novembro de 2006

Repouso

Devias ter um nome, para que to pudesse
dizer ao ouvido, quando acordasses, e o azul
da manhã te limpasse do rosto a sua cor
nocturna. Veria a luz passar por
sobre os teus cabelos, e falar-te-ia das ilhas
que nos esperam, num oceano sem nome;
e dar-me-ias a tua mão, num instante longo
como a eternidade, enquanto procuro
o teu nome para te chamar, e ouvir-te
dizer-me que acordaste para o dia
sem fim que tem o teu nome.


Nuno Júdice | A a Z | Junho de 2006


Acerca do vídeo: filmado em Vila do Conde, na manhã de 13 de Novembro de 2006; na banda sonora, Nightswimming dos R.E.M., do álbum Automatic For The People [1992].



Nightswimming deserves a quiet night. / The photograph on the dashboard, taken years ago, / turned around backwards so the windshield shows. / Every streetlight reveals the picture in reverse. / Still, it's so much clearer. / I forgot my shirt at the water's edge. / The moon is low tonight.
Nightswimming deserves a quiet night. / I'm not sure all these people understand. / It's not like years ago, / The fear of getting caught, / of recklessness and water. / They cannot see me naked. / These things, they go away, / replaced by everyday.
Nightswimming, remembering that night. / September's coming soon. / I'm pining for the moon. / And what if there were two / Side by side in orbit / Around the fairest sun? / That bright, tight forever drum / could not describe nightswimming. / You, I thought I knew you. / You I cannot judge. / You, I thought you knew me, / this one laughing quietly underneath my breath.
Nightswimming. / The photograph reflects, / every streetlight a reminder. / Nightswimming deserves a quiet night, deserves a quiet night.

8.11.06

Os sentidos da vida não se mudam com a facilidade das luas.

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | setembro de 2006


A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge... ora aqui, ora ali, como muito bem entende. São migalhas, o problema depois é juntá-las. É esse montinho de areia. E este grão, que grão sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física. Retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, a areia desliza, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado?... Até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja. Deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.

António Tabucchi | Tristano Morre | Lisboa | Publicações D. Quixote | 2006

E dás por ti sem saberes o que fazer com as migalhas da tua vida - os retratos, os poemas, os papéis, as músicas, as palavras sussurradas ao ouvido que ainda ecoam dentro de ti. A tua vida em estilhaços, como num vitral, cuja imagem está desfigurada. Alguém bateu a porta rapidamente demais, num ápice - zás! - e o espelho em que te olhavas caiu no chão e partiu-se. Deixas de saber onde te ver. Os teus olhos percorrem a parede branca, fixam-se no prego ferrugento e deslizam até aos pedaços de vidro quebrado no chão. Corres a apanhá-los. Segura-los com força contra o peito e quando abres as mãos o que vês é uma mistura de carne e sangue, a tua pele recortada pelas lâminas. Procuras, procuras-te por entre a massa sangrenta mas já não te vês.
Entram pela sala dentro e pedem-te que te ergas rapidamente, que escrevas, que escrevas muito, que fales, que rias, que estejas desperta, que sejas atenta, que comas e bebas e caminhes e ajas como se nada houvesse acontecido. Dizem-te que esqueças as feridas das mãos, que não doem. Dizem-te que tens de suportar essa dor porque foste tu quem voluntariamente agarrou os estilhaços que já sabias cortantes. Tudo isto como se uma dor, só porque foi causada por ti, deixasse de doer.
Do lado de fora ouves a voz que bateu a porta - zás! - dizer-te que se está melhor ali, que ali fora está sol. Ergues a tua mão direita e empunhas nela uma vela, toda a tua luz, toda a luz com que iluminaste os olhos da voz que te fala lá de fora. Responde-te que a luz do sol é a luz que verdadeiramente ilumina. Olhas a vela, esguia, alva, fria, na tua mão direita. Alivia-te a dor segurá-la com força e por isso não a soltas. Ficas com os dedos brancos, as unhas cravadas na palma. Ainda que o sangue verta, seguras a todo o custo a tua luz, o pequenino ponto de luz que tens, o único que tens, que sempre te iluminou e àquela voz, enquanto essa sala onde estás era o bastante, era o tudo.
A voz, lá fora, diz-te que não te atenhas a nada do que está dentro dessas quatro paredes, que esqueças tudo o que lá está guardado, que o Tempo e o Lugar onde vives é Passado, que os caminhos desse espaço já não levam a lado nenhum, que não passam de garatujas ilógicas. Diz-te que prossigas, que saias lá para fora, que deixes de ser o que ainda és, o que sempre serás, porque nunca foste nem sabes ser fora dessa sala. Diz-te que trilhes novos rumos, assim, entre um almoço e um jantar, entre um dia e outro, algures no tempo. Dizem-te que a luz da vela que prendes na mão se apagou, em meia-dúzia de dias, algures no tempo. Não sabes o que fazer com ela, se ela já não ilumina porque lá fora há o sol.
E parece-te que as vozes do mundo, lá fora, fingem não saber que os sentidos da vida não se mudam com a facilidade das luas...

© [m.m. botelho], a partir de algumas frases que me disseste, ao som de Ó Luz da Alegria, dos Madredeus, do álbum Um Amor Infinito, que tu, segurando-me nos braços, me deste a ouvir.

Eu ouvi um sereno canto / Nas alturas do céu cantar / E as montanhas da minha terra em silêncio a escutar...
Eu ouvi um canto sereno / Nas douradas ondas do mar / E nas praias da minha terra, muita gente a escutar...
Ó Luz da Alegria! Ó Alma da Vida! / Ó Luz da Alegria, só te vê quem dá...
Das montanhas da minha terra / Às sagradas praias do mar / Toda a gente escutando espera o Divino Cantar...
Ó Luz da Alegria! Ó Alma da Vida! / Ó Luz da Alegria, só te vê quem dá...

7.11.06

O tudo que resta

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | casa da música | porto | abril de 2006
no [nosso] Tempo de atrás, cicatrizes do meu corpo


De que me valem as tuas fotografias amontoadas diante dos olhos?
De que me valem os teus poemas dispersos sobre a secretária?
De que me valem os teus escritos a latejar-me por dentro?
De que me vale o coração a inquietar-me o peito?
De que me vale o choro a varrer o silêncio?
De que me valem duas mãos trémulas vazias?
De que me vale o Tempo de atrás?
De que me valem as cicatrizes deste corpo?
De que me valem olhos cegos de escuro?
De que me valem os dias vertidos no calendário?

De que me valem as palavras mudas?
De que me valem os segredos gritantes?
De que me valem os números dos dias?
De que me valem as memórias dos meus vinte anos?

De que me vale o tudo que resta, o pouco que resta?

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)


O que me resta é tudo o que vale.

© [m.m. botelho]
e excerto de Há Palavras Que Nos Beijam [1958] | Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões [1924-1986] | No Reino da Dinamarca | Lisboa | Relógio d'Água | 1997

1.11.06

O comedor de insectos

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | agosto de 2006
parede exterior do antigo palácio dos condes de alvor
museu nacional de arte antiga | rua das janelas verdes


A pancada no soalho foi seca. Ao ruído opaco do encontro do sapato com o pavimento de madeira seguiu-se um crepitar quase inaudível debaixo do pé de Artur.
Baixou-se. Sentiu as costelas rangerem entre a carne e a distensão lenta de todos os músculos rígidos. Esticou muito os dedos da mão direita e, num gesto preciso de tenaz, segurou a barata entre o polegar e o indicador. A destreza advinha-lhe da experiência.
Atravessou o amplo salão despojado de mobília e aproximou-se da janela. Correu a pesada cortina, outrora castanha e hoje desbotada pelo constante namoro do sol, e expôs a sua captura à luz. A claridade ainda tímida da aurora revelou um pequeno insecto inerme estrebuchando, que Artur se demorou a inspeccionar.
Com a minúcia e a diligência de um estudioso, examinou-a cuidadosamente: primeiro os três pares de patas, depois a cabeça, o tórax e, finalmente, o abdómen da sua mais recente prisioneira.
«Ainda está viva», disse para consigo mesmo. Segurando a presa, encaminhou-se para a cozinha, abriu o armário e retirou do interior um copo baço onde eram visíveis vestígios de vinho tinto. Pousou a barata na mesa e cobriu-a com o vidro. Depois, regressou à sala, correu a cortina protegendo os olhos com o braço e foi deixar-se cair no desengonçado cadeirão.
Palpou ambos os bolsos por fora das calças. Voltou-se de lado para retirar da algibeira o maço de cigarros e os fósforos e sentiu invadir-lhe as narinas o cheiro acre da sua própria urina. Lembrou-se de que não mudava de calças havia já nove dias. Assaltou-o uma sensação de vómito. Apressou-se a cobrir a boca com a camisa imunda, mas o escasso líquido amargo que regurgitou não chegou sequer a tocar-lhe os dentes. Cuspiu para o chão e tirou um cigarro. Riscou com firmeza um fósforo e uma chama clareou por segundos o negro da sala. Puxou o fumo longamente e sentiu o ar percorrer-lhe a língua, a laringe, a faringe e encher-lhe os pulmões. Susteve a respiração por breves instantes, para logo libertar uma extensa nuvem cinzenta pelas narinas.
Gostava daquela sensação. Era das poucas que o faziam sentir-se vivo. Para além desta, só se lembrava da dor que sentira quando, na noite anterior, com um singular e certeiro golpe, havia cortado um dos dedos do seu próprio pé esquerdo. Olhou para o lenço que apertara em torno da ferida. O sangue estancara e o pano estava agora manchado de um vermelho escuro, muito escuro, seco. Lembrou-se do outro pé, aprisionado no sapato. Na sola haveria de estar ainda um resquício do ventre da barata que esmagara há pouco.
Acordou horas depois, já com o arrulho dos pássaros que rondavam a janela. Recordou-se do insecto aprisionado no copo, na cozinha, na escuridão. Ergueu-se do cadeirão empoeirado e foi ver.
«Está morta», pensou, mirando detidamente o pequeno bicho inerte. Libertou-a. Com efeito, morrera. Sucumbira no decorrer da manhã.
Deixou-se ficar ali, em silêncio. Apenas a tosse lhe interrompia, de quando em vez, os pensamentos, sacudindo-lhe os compactos ossos. Hesitava em comer aquela barata, como antes havia comido tantas outras. Estava farto de alimentar-se de insectos. Farto de moscas, de baratas, de aranhas. Raramente era capaz de apanhar um rato, animal demasiado veloz para competir com o seu vergado físico.
Agarrou na barata e guardou-a, junto com as últimas que matara, numa caixa de latão onde se lia, a letras azuis, a palavra "arroz". Defronte, no armário, estava o seu próprio dedo, que mutilara ontem. Tomou-o nas mãos e meteu-o numa panela atestada de água que deixou ferver.
Comeu-o. Enquanto o fazia, tolhiam-no dores lancinantes. O lenço atado no pé revelou-se, então, insuficiente para absorver o sangue que tornara a jorrar. Por momentos, sentiu-se desfalecer, mas recuperou as forças. Correu para o quarto, tingindo por onde passava o soalho de vermelho vivo.
Tomando um papel, apressou-se a escrever, temeroso do fim:
«Aos que me encontrarem, peço apenas que escrevam sobre o meu túmulo:
Aqui jaz Artur Centelha da Reigosa, que nascendo rico, morreu miserável, chamado "o comedor de insectos", mas que para saciar a fome preferiu alimentar-se de si próprio a sobreviver da morte alheia.»

Pereceu à gangrena seis meses depois. A sua sepultura não foi assinalada.


© [m.m. botelho]
Escrito no Porto, na esplanada de um café da praia do Molhe, a 27 de Junho de 2006, dia do aniversário de meu avô, José Francisco Botelho, o último que tive o privilégio de passar na sua companhia. Este texto é dedicado à sua memória.

Ouve-se, no Viagens Interditas, Inner Flight, dos Primal Scream, do álbum Screamadelica [1991].

27.10.06

Um beijo sem boca

Leonardo da Vinci [1452-1519] | estudo anatómico do coração, veias e artérias | caderno de windsor | s.d.
L. da Vinci [1452-1519] | estudo anatómico do coração, veias e artérias | s.d.
do Caderno de Windsor | Biblioteca Ambrosiana | Milão | Itália

E para terminar, é precisamente a boca que nos vai servir para falar do paraíso.
A boca é um pólo de tensão nervosa - cerrar os dentes, morder a língua, cigarros - mas também de escape gratificante, indulgência com os prazeres sensuais. A boca que acolhe os alimentos da sobrevivência e resguarda os dentes, derradeiros despojos.
A boca. Lugar de três paraísos:
- o paraíso religioso da comunhão com o corpo de Deus, através da hóstia consagrada;
- o paraíso infantil da comunhão com o corpo da Mãe, através da amamentação; ou das delícias da descoberta dos primeiros sabores;
- o paraíso sexual da comunhão com o corpo de alguém, através do beijo, para dar só um exemplo.
O paraíso perdido é, então, bem feitas as contas, o da coincidência física e espiritual com o corpo, um corpo, mas que corpo de quem?
A resposta seria infância, religião, prazer, amor, família, memória, e todas as outras palavras que só a muito custo, ou talvez nem mesmo a muito custo,aqui se poderiam acrescentar.
Isso falta. Falta a resposta. O que há, então, é a falta. Chama-se-lhe vida e disso se vive. Mais ou menos.


Alexandre Melo [n. 1959] | Aventuras no Mundo da Arte | Lisboa Assírio & Alvim | 2003

Lembrar a quentura da tua boca, a aridez da tua língua, a brancura dos teus dentes, a humidade dos teus lábios. Deixar-me devorar por ti. O teu beijo a esquartejar-me a carne, a estraçalhar-me os ossos. Ficar-me a morrer na tua boca e dela fazer meu túmulo. Sepultar-me perpetuamente em ti. Escrever-me com a tua saliva em forma de epitáfio para que se saiba em toda a parte que o meu coração jaz ao pé da tua boca.

© [m.m. botelho], ao som de Epitaph For My Heart, dos The Magnetic Fields, do álbum 69 Love Songs [1999].



"Caution to prevent electic shock. Do not remove cover. No user servicable parts inside. Refer servicing to qualified service personelle."
Let this be the epitaph for my heart / Cupid put too much poison in the dart / this is the epitaph for my heart / because it's gone, gone, gone
And life goes on and on and on / and death goes on, world without end / and you're not my friend
Who will mourn the passing of my heart / Will it's little droppings climb the pop chart / Who'll take its ashes and, singing, fling / them from the top of the Brill Building
And life goes on, and dawn, and dawn / and death goes on, world without end / and you're not my friend

13.10.06

Do outro lado da linha

© [m.d. botelho]
© [m.d. botelho] | fotografia | coimbra | maio de 2001

O que a Faculdade de Direito faz por ti é isto: diz-te que seres jurista significa esquecer os teus sentimentos, esquecer a tua comunidade, e principalmente, se fores mulher, esquecer a tua experiência.
Catharine A. MacKinnon | Feminism Unmodified. Discourses on Life and Law | Harvard University Press | 1987 | p. 205


Há uns anos atrás, foste a primeira pessoa a saber, a primeira pessoa a quem liguei, as mãos ainda trémulas entre o contentamento e a tristeza, os olhos ainda assustados, as primeiras lágrimas a quererem manchar-me o rosto e a camisa azul escura. Foi o teu nome o primeiro que disse quando atendeste, voz colocada do outro lado da linha e a minha frase, tão pequena, tão singelamente pequena, fez-te respirar longamente. Do outro lado da linha disseste que tinhas orgulho em mim, que sabias que eu conseguiria, que sempre soubeste que o conseguiria. E eu, tão pequena, tão singelamente pequena, senti-me flutuar no teu orgulho, no orgulho que então disseste ter em mim e me fez sentir mais próxima de ti, do que eras, do que sei que ainda és.
Há uns anos atrás, foste a primeira pessoa a saber, a quem correndo fui levar a novidade, com quem quis sorrir a alegria, mesmo ao telefone, mesmo à distância. A tua voz, àquela hora sempre tão formal, foi quente, nesse dia, aquecida pelo sabor da conquista, daquela conquista que era nossa, como nossas eram todas as conquistas desses dias.
Lembro-me de onde dormi na noite anterior, da roupa que vesti, do exacto sítio onde estacionei o carro. Ainda me vejo, pasta académica na mão esquerda, as fitas a escorregarem
[a tua fita ainda em branco, ainda hoje em branco],
o telefone na mão direita. Ainda ouço o sinal de chamada a entrecortar-me a pulsação
[o meu coração a bater aceleradamente,
a saliva a secar-me na língua]
e do outro lado da linha o teu "Sim?" quando atendeste. O meu pé direito no rebordo do passeio, o meu olhar fito no calcário da calçada, o teu nome nos meus lábios e a minha frase, uma palavra, uma única palavra, a soltar-se dos meus dentes e a chegar a ti
[tu do outro lado da linha, costas muito direitas
dentro do blaser, a camisa irrepreensivelmente engomada]
.
E depois o meu nome a sair de ti, a tua alegria a sair de ti, a unir-se à minha do lado de cá da linha e as duas a bailarem em rodopio, suspensas no ar, suspensas na vontade do abraço, no desejo do beijo, as nossas alegrias juntas, em pontas dos pés a dançarem sobre o calcário da calçada.

Naquela calçada ainda há uma réstia da nossa alegria, da alegria daquele dia que evoco hoje, que sempre evocarei a 13 de Outubro. A alegria de sentir o teu orgulho em nós, o teu orgulho em mim e naquilo que já não sabes mas que eu ainda sou.

Não foi à toa que hoje, exactamente hoje, sonhei contigo.

© [m.m. botelho], em dia de memórias, ao som de Second Brain, de Kaki King, do álbum ... until we felt red [2006].

9.10.06

Aqueles éramos nós

Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966
Lee Friedlander [n. 1934] | Self-Portrait | Haverstraw, New York | 1966

A ausência de nuvens prometia um dia de claridade e calor. Era o fim do Estio, mas o ar continuava abafado. A cada inspiração sentíamos o aroma da boca do outro, com a nítida sensação de que o ar que agora respirávamos havia já percorrido outros pulmões. Uma inspiração mais profunda encher-nos-ia o peito do cheiro dos dejectos caninos que se acumulavam nas bermas. A cada mirada, o alcatrão da estrada desfigurava-se mais sob o vapor que emanava. A recta imensa à nossa frente parecia cada vez mais uma tortuosa sequência de curvas delimitadas por duas linhas brancas paralelas. Esforçávamo-nos ambos por manter os olhos abertos antes de bebermos café.
Contámos as curvas do caminho: exactamente 112, desde que partíramos pela última vez. O conta-quilómetros somava, até então, 79.326 unidades. O ponteiro do depósito descia alucinadamente em direcção à reserva e os pneus, desejosos de descanso já antes da partida, chiavam a cada travagem e perpetuavam no asfalto a nossa passagem por aquele exacto ponto.
Os vidros descidos convidavam os insectos a entrar. O intenso aroma que exalávamos a suor e saliva misturados com poeira atraía-os e eram visíveis nos braços, no rosto e no peito as marcas das picadas. Baixávamos as palas para protegermos os olhos da luz mas continuávamos a evitar ver a nossa imagem reflectida nos pequenos espelhos rectangulares. Não queríamos acreditar que aqueles éramos nós.
No rádio, a mesma cassete sempre a rolar dava-nos a ouvir Bigger, Stronger, dos Coldplay.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car
To take me anywhere in seconds,
To take me anywhere I wanna go...

De vez em quando parávamos debaixo de algum alpendre de uma estação de serviço. Saíamos do carro e contorcíamo-nos com dores ao escutar o som das nossas costas despidas a descolarem-se dos estofos do carro. Maldizíamos a todo o instante a opção pelo cabedal preto que, além de se nos agarrar à pele, concentrava o quente. E logo em seguida dizíamos mal de nós mesmos por irreflectidamente termos encravado a capota quando, num acesso de estupidez, preferimos a força à habilidade naquela manhã em que o mecanismo se recusara a fechar.
Tirávamos os chapéus e ríamos das figuras um do outro: cabelos ensopados, colados à testa, a lembrar os tempos em que corríamos até à exaustão atrás dos gatos.
Quando crianças, tínhamos por passatempo apanhar os gatos sem dono que abundavam na aldeia e atar-lhes ao rabo latas e caricas vazias para soltá-los em seguida. Depois dávamos estridentes gargalhadas enquanto os víamos correr desalmadamente em círculo, assustados com o barulho e convictos de que estavam a ser perseguidos por algo ameaçador e desconhecido. Quando os pobrezinhos tombavam, línguas de fora, olhos cerrados pelo desmaio, erguíamo-nos cheios de dores de barriga, caminhávamos até eles e cortávamos a guita que segurava as latas e as caricas e que tencionávamos usar para atormentar o próximo felino que se atravessasse à nossa frente.
Lavávamos as mãos e os pés nas casas de banho das estações de serviço e, se estivessem desertas, aproveitávamos para matar a fome do corpo e fazíamos amor em pé, dentro de uma cabine, silenciosamente. O frio dos azulejos aliviava-me o calor e, por isso, eu não me importava de ser empurrada contra as paredes sujas das cabines das casas de banho das estações de serviço enquanto fazíamos amor.
Depois comíamos e bebíamos do que houvesse enquanto ouvíamos as conversas dos outros. Não trocávamos palavra, nem entre nós, nem com estranhos. Limitávamo-nos a acenar com a cabeça à entrada e à saída e a levar as mãos aos chapéus em gesto de cortesia, sem que, contudo, fôssemos corteses.

I think I need to change my attitude,
I think I wanna change my oxygen,
I think I wanna change my air...

A cada paragem trocávamos de lugar. Quando nos aproximávamos do carro sabíamos já para que lado haveríamos de nos dirigir. Seguia-se o ritual de ajustamento dos bancos e dos retrovisores e logo a ignição soava e o motor começava a rugir. Fazíamo-nos à estrada e a única certeza que tínhamos era a de que a viagem se prolongaria enquanto víssemos rectas entrecortadas por curvas à nossa frente, enquanto nos guiassem duas linhas brancas paralelas.

I wanna be bigger, stronger, drive a faster car.
At the touch of a button
I can go anywhere I wanna go.

E era nesse exacto instante, em que um de nós esmagava o acelerador e os pneus do carro começavam a fustigar a areia, que sabíamos que a tormenta do calor, a tortura dos mosquitos, o incómodo dos cheiros pestilentos e da nossa própria sujidade e o desconforto de fazer amor em pé em casas de banho imundas seriam sempre suportáveis, desde que tivéssemos a companhia um do outro.

© [m.m. botelho], de partida, ao som de Bigger, Stronger, dos Coldplay, do EP Safety [1998].



I wanna be bigger, stronger, drive a faster car / To take me anywhere in seconds, / To take me anywhere I wanna go, / And drive around a faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I wanna be bigger, stronger, drive a faster car, / At the touch of a button / I can go anywhere I wanna go / And drive around my faster car, / I will settle for nothing less, / I will settle for nothing less.
I think I wanna change my attitude / I think I wanna change my oxygen / I think I wanna change my air, / My amorous fear, I wanna choke.

1.10.06

«Os milagres acontecem a horas incertas»

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | outubro de 2006

Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Ana Paula Inácio [n. 1966] | Vago Pressentimento Azul por Cima | Editora Ilhas | Porto | 2000


Quando estás longe de mim, olho muitas vezes para o relógio. Temo que o Tempo possa acelerar de repente e me apanhe desprevenida. Nunca sei quando vais entrar por aquela porta para me dizeres que lá fora já chove, sacudindo a gabardina, essa tua gabardina preta, sombra esguia que te cobre o corpo nestes dias incertos de Outono.

© [m.m. botelho], ao som de Os Milagres Acontecem, poema de Ana Paula Inácio [n. 1966] musicado por A Naifa no álbum Canções Subterrâneas.

24.9.06

E mais não peço e de mais não preciso

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | estátua | lisboa | agosto de 2006
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]


Amputação

Algo, em mim, está morto.
O lado direito inerte, ausente,
de mim está alheio.
Do lado esquerdo
o fito,
como se a um outro
olhasse.
Metade de mim persiste,
vive,
e contempla algo, ardendo,
estiolando,
que em mim está morto.
Um perfil que apodrece
e eu vivendo
e vendo ausentar-se de mim
algo que em mim está morto
definitivamente.


Rui Knopfli [1932-1997] | Memória Consentida: 20 Anos de Poesia (1959-1979) | prefácio de Luís Sousa Rebelo | Imprensa Nacional Casa da Moeda | Lisboa | 1982 | pág. 144 | publicado originalmente em Reino Submarino | 1962


Dos meus parcos e longinquamente adquiridos conhecimentos básicos de anatomia resta-me, ainda, a absoluta certeza de que o coração habita, palpita, agita o meu lado esquerdo.

O meu lado esquerdo
é mais forte do que o outro;
é o lado da intuição,
é o lado onde mora o coração.


Palpo o peito. Sinto-me. Conservo ainda íntegro e intacto o meu lado esquerdo. Estou viva. Persisto. E mais não peço e de mais não preciso, que é quanto me basta para deixar a intuição guiar-me aos bons ventos.
O lado morto, esse, que importa? «The dead only quickly decay».

© [m.m. botelho] [e excerto de O meu lado esquerdo, letra de Carlos Tê para música dos Clã], ao som de The dead only quickly decay, dos The 6ths, [voz de Neil Hannon], do álbum Hyacinths and Thistles [2000].



Priests and fools say / We are but animate clay / Rude vessels / Housing immortal souls
But the dead only quickly decay / They don't go about being born and reborn / And rising and falling like soufflé / The dead only quickly decay
It would be swell / To see some folks burn in hell / But when they go / It's just as pleasant to know /
That the dead only quickly decay / They don't go about being born and reborn / And rising and falling like soufflé / The dead only quickly decay

21.9.06

O teu ser tão vivo dentro de mim

Leonardo da Vinci [1452-1519] | desenho | estudo anatómico do tronco feminino | s.d.
L. da Vinci [1452-1519] | desenho | estudo anatómico do tronco feminino | s.d.
Biblioteca Ambrosiana | Milão | Itália

Todos os dias olho repetidamente, sem me dar conta do tempo que passa, os teus retratos, todos os teus, os nossos retratos. Neles, a tua figura, sempre tão segura, está imóvel, estática. São assim as memórias que as fotografias captam e, à sua maneira, eternizam: inertes e mudas. Por isso me inquieta, persistentemente, uma pergunta:

porque continua o teu ser tão vivo dentro de mim, batendo no meu
peito não o meu coração, mas a tua imagem viva, real, dizendo
que ainda me queres, que ainda me tens, que ainda sou tua?

Diz-me, diz-me...

porquê?

© [m.m. botelho], todos os dias. E não me interessa o tempo que passa, senão aquele em que vivo para nos amar.

20.9.06

Qualquer coisa de eterno

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | gerês | 1 de janeiro de 2006
memórias de uma manhã de outrora na tua companhia


O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.

Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.

Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.

E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.


Dante Milano [1899-1991] | Antologia dos Poetas Brasileiros: Fase Moderna, volume I | organização de Manuel Bandeira | Nova Fronteira | Rio de Janeiro | 1996

Perdoa-me por padecer terrivelmente de saudades tuas. Perdoa-me por sentir a tua falta. Perdoa-me a fragilidade de não saber viver sem ti. Perdoa-me por te querer tanto. Perdoa-me a ousadia de [sempre] te [nos] amar. Perdoa-me a fraqueza de to confessar.

© [m.m. botelho]

18.9.06

Cinco

O piano, melancólico, embala-me. Confesso que tomei, apenas há instantes, consciência da finitude do Tempo. É fácil aprisionar o tempo em medidas estanques: segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos. Bastam cinco segundos - e o que são, quanto são, como são cinco segundos? - para impregnar toda uma vida de amor.


Espero, inconformada com a demasiado vagarosa passagem do Tempo, o tempo de uma vida. Continuo à espera, sempre à espera. Permaneço imóvel, nas redondezas, apenas a alguns metros - serão quilómetros? - de distância. E tu...
Tu limitas-te, dia após dia, a flutuar sobre o Tempo, sobre mim, sobre o [nosso] amor.


Quanto Tempo é preciso para apagar aqueles cinco segundos? De quanto tempo precisaste para arrancar aqueles cinco segundos - seriam cinco anos? - de ti?

Cinco horas? Cinco dias? Cinco semanas? Cinco meses?

Não sei. Nunca saberei? Não sei, talvez um dia me contes. Cinco anos, a minha vida, toda a eternidade: nada tem importância.


Nada mais importa, pois não?

Os cinco segundos em que te tive nos meus braços - seriam cinco anos? - não são as minhas memórias, continuam presentes: são o Tempo finito em que me movimento. Permaneço estacada, perplexa, suspensa nesses cinco segundos - seriam cinco anos? -, incapaz de ir embora, de sair daqui, de os apagar de mim, de os ignorar.


Mas já nada importa, pois não? Não, suponho que não. Talvez te tenham bastado apenas... cinco segundos.


© [m.m. botelho], texto e tradução selvagem, ao som de 5 seconds to hold you, dos Devics, extraída do álbum My Beautiful Sinkink Ship [2001].



five seconds to hold you / then you'll slowly vanish from my arms / please don't speak or break this spell / you know it doesn't matter
five fathoms below you / i've waited a lifetime / but as you drift by over me / you know it doesn't matter
five years without you / they couldn't tear a moment from my mind / but memories fade and so did yours / you know it doesn't matter anymore


cinco seguros para te prender / depois tu, lentamente, dissipar-te-ias dos meus braços / por favor, não fales nem quebres este encantamento / sabes que já não importa
cinco braças abaixo de ti / esperei o tempo de uma vida / mas à medida que vagueias sobre mim / sabes que já não importa
cinco anos sem ti / não conseguiriam arrancar um momento da minha cabeça / mas as memórias desvanecem-se e assim sucedeu com as tuas / sabes que já não importa
.

14.9.06

Endoscopia

© [m.m. botelho] | bulbo
bulbo

À procura

© [m.m. botelho] | antro
antro

do invisível

© [m.m. botelho] | corpo
corpo

dentro de mim,

© [m.m. botelho] | esófago
esófago

cenário de esperança nua.

endoscopia | do gr. éndon [dentro] + skop, r. de skopein [examinar]

© [m.m. botelho], bulbo, antro, corpo do estômago, esófago e palavras.

10.9.06

Por um instante que fosse

Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity [1953]
Mauritus Cornelis Escher [1898-1972] | Relativity | litografia | 1953
M.C. Escher Museum | Den Haag | Países Baixos

Deixa-me respirar o ar que corre
por entre os fios dos teus cabelos,
agarrá-lo
com as minhas mãos
que hoje como outrora são tuas,
talhadas que foram para se enlaçarem
em ti.
Deixa-me sentir o cheiro da aurora que desponta
na alvura de cada um dos teus dentes
e guardá-la,
preciosa,
neste coração que tempestuosamente se esmaga
contra as paredes do meu peito.
Deixa-me sufocar na saliva que te humedece
a língua
e crer
que ainda está desejosa de nós,
dos nossos corpos lado a lado,
adormecidos, esgotados
por entre os lençóis amarrotados
dessa cama que ainda é nossa.
Deixa-me serenar no teu colo,
nesse colo onde ainda repousa
o meu choro incontido
de nada saber.

Dou por mim a duvidar
da existência do real,
do chão debaixo dos pés,
do princípio de Arquimedes,
das camadas da atmosfera,
da sucessão dos dias,
das vagas e das marés,
dos pontos cardeais,
da evidência da morte,
da função aritmética,
da cinética musical,
das luas de Saturno,
da regra de três simples,
das propriedades do ópio,
da relatividade especial,
das estações do ano,
do alfabeto com que escrevo,
da fonética do que digo,
da luz que me estilhaça os olhos,
do meu próprio nome primeiro

mas nunca desacreditei,
por um instante que fosse
na eternidade do nosso amor.

© [m.m. botelho], ao som de , de Jorge Palma, do álbum homónimo [1991].



só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar
só por ter dois sóis / só por hesitar / fiz a cama na encruzilhada / e chamei casa a esse lugar
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por inventar / só por destruir / tenho as chaves do céu e do inferno / e deixo o tempo decidir
e anda sempre alguém por lá / junto à tempestade / onde os pés não têm chão / e as mãos perdem a razão
só por existir / só por duvidar / tenho duas almas em guerra / e sei que nenhuma vai ganhar / eu sei que nenhuma vai ganhar

6.9.06

«Pois meu coração é vosso.»

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | estátua | lisboa | agosto de 2006
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]


Belle qui tiens ma vie
Captive dans tes yeulx,
Qui m'as l'ame ravie
D'un soubz-ris gracieux,
Viens tost me secourir
Ou me fauldra mourir.
Pourquoy fuis tu mignarde
Si je suis pres de toy,
Quand tes yeulx je regarde
Je me perds dedans moy
Car tes perfections
Changent mes actions.

Approche donc ma belle
Approche toy mon bien,
Ne me sois plus rebelle
Puis que mon coeur est tien,
Pour mon mal appaiser,
Donne moy un baiser.


Thoinot Arbeau, pseudónimo de Jehan Tabourot [1520-1595]

Bela, que tendes a minha vida / Cativa em vossos olhos / Que arrebatais a minha alma / Com a graciosidade do vosso sorriso / Vinde depressa socorrer-me / Ou morrerei de dor. / Porque fugis, mimosa, / Quando me abeiro de vós? / Quando contemplo vossos olhos, / Perco-me dentro de mim, / Pois as vossas perfeições / Transformam a minha vida.

Aproximai-vos, pois, formosa, / Aproximai-vos, meu bem. / Não me resistais mais, / Pois meu coração é vosso. / Para serenar meu sofrimento / Dai-me um beijo.


Tradução selvagem de [m.m. botelho], enquanto lá fora [e dentro de mim] as primeiras chuvas de setembro cobrem a [demasiado] silenciosa cidade, ao som de Diferencias sobre el tema "Belle qui tiens ma vie", de Antonio de Cabezón [1510-1566], interpretadas pelo agrupamento Hesperion XXI sob a direcção de Jordi Savall, do álbum Carlos V. Mille Regretz: La Canción Del Emperador [2003].

31.8.06

Desde aquele dia aziago

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | agosto de 2006


Meu amor,

Escrevo-te estas linhas mesmo antes de partir. Comprei o papel de carta na loja da D. Carmelinda que hoje, como sempre, me perguntou por ti. Disse-lhe que não tinha novas tuas. Com uma expressão de imensa compaixão no rosto, murmurou por entre os dentes falhos «É a vida. Há que ter paciência.», enquanto me recolhia as moedas das mãos. Procurei no fundo da gaveta pelo aparo. Sabia que o havia lá deixado, mas não o encontrei logo, tantos eram os papéis e a poeira desarrumada. Sem que nada o fizesse prever, veio-me parar às mãos, enquanto vasculhava a gaveta, uma fotografia do nosso casamento. Está amarelecida pelo tempo e o meu fato preto tem marcas de dedadas. Devia tê-la posto num quadro, para não se estragar. A ver se quando voltar não me esqueço de o fazer.
Como te disse, estou de abalada e ainda não sei quando voltarei. As longas viagens, antes de começarem nas estradas, começam dentro de nós mesmos. Disto mesmo me dei conta quando, naquela maldita terça-feira de Carnaval, em vão me busquei no negro dos teus olhos. Havia já muito tempo que estávamos apartados, ainda que continuássemos a dormir no mesmo quarto, que partilhássemos a mesma cama. Já então, sempre que me olhava ao espelho não via reflectido na minha retina o teu semblante, nem mesmo por entre alguma névoa provocada pelas cataratas, como aparecias nos olhos do teu avô nos nossos tempos de namoro. Tinhas partido para longe de mim. Tu e eu, ambos, andávamos há muito em andanças por trilhos afastados.
Comecei a procurar-te incessantemente em todos os olhos de todas as pessoas desde que se pôs o sol e terminou aquele dia aziago. Sem calçar as botas, sem sair do sítio, comecei a minha busca de ti. Para te encontrar, transformei-me num observador de gestos e de intrigas, de estranhos enredos de escritores medíocres, representados por misteriosas personagens. Muitas ruas volvidas, após todas as buscas concluídas, cheguei à óbvia conclusão de que nenhum deles me dizia de ti.
Graças a essa duradoura jornada, sei hoje de cor muitas histórias de muita gente, inúmeros segredos, inconfessáveis detalhes e sórdidos pormenores. Sinto os cheiros sempre que inspiro, sei até ao que sabem os beijos de quem nunca beijei. Sei muitas coisas, umas boas, outras más, umas virginais, outras escabrosas, mas nunca mais soube nada de ti.
Partiste para dentro de ti mesma e nunca mais voltaste. Mergulhaste profundamente dentro desse teu corpo tisnado pelo sol para me deixares sozinho, atarantado, condenado a procurar-te em todas as criaturas que passam por mim na rua e que eu vejo acenarem-me sem desviarem sequer o olhar. Aqui me tens, demente, aparvalhado, morto de cansaço, de fome e de frio, vendo o teu reflexo nas montras das lojas, no branco da claridade da manhã, em toda a parte. Em toda a parte.
Hoje acordei para mais uma viagem. Talvez seja hoje que te encontre, que esbarre contigo num qualquer eléctrico, ou que te veja ao longe lavando os pés na fonte da praça. Vivo no alento de que seja hoje, de que seja todos os dias, que são todos os dias em que quero ir impensadamente de encontro a ti, embater no teu colo trigueiro e deixar-me tombar para que me ampares.
Parto hoje e sempre daqui, porque sei que por muito que de mim te apartes, caminharemos todos os dias sob as mesmas decadentes nuvens, sob o mesmo lúcido sol.

À partida e à chegada, cubro-te toda de beijos, de todas as cores.

Teu.


© [m.m. botelho], de partida, a galope no amanhã, ao som de Que o Mundo É Meu, de Filipa Pais, sobre um poema de Reinaldo Ferreira (1922-1959), do álbum À Porta do Mundo [2003].



Quero um cavalo de várias cores, / Quero-o depressa, que vou partir. / Esperam-me prados com tantas flores, / Que só cavalos de várias cores / Podem servir.
Quero que as rédeas façam prodígios; / Voa, cavalo, galopa mais, / Trepa as camadas do céu sem fundo, / Rumo àquele ponto, exterior ao mundo, / Para onde tendem as catedrais.
Quero uma sela feita de restos / Dalguma nuvem que ande no céu. / Quero-a evasiva – nimbos e cerros - / Sobre os valados, sobre os aterros / Que o mundo é meu.
Deixem que eu parta agora já, / Antes que murchem todas as flores. / Tenho a loucura, sei o caminho, / Mas como posso partir sozinho / Sem um cavalo de várias cores?

21.8.06

Dizer-te tudo o que cabe em cada segundo.

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | casa da música | porto | abril de 2006


«O Céu beijou a Terra e deixou-lhe impressa no rosto a sua efígie deslumbrante.
O Céu é a imagem da Terra, mas indefinida e transparente.
Noivam, todos os anos, o Céu e a Terra.»


Teixeira de Pascoaes [1877-1952] | O Pobre Tolo - Prosa e Poesia | Assírio & Alvim | 2000

Sem ti, os dias não passam de meras somas de horas.
Queria dizer-te tudo. Falar-te de tudo o que cabe em cada segundo.

© [m.m. botelho], ao som de My Favourite Plum, de Suzanne Vega, do álbum Nine Objects of Desire [1996].



my favorite plum / hangs so far from me / see how it sleeps / and hear how it calls to me / see how the flesh / presses the skin, / it must be bursting / with secrets within, / I've seen the rest, yes / and that is the one for me
see how it shines / it will be so sweet / I've been so dry / it would make my heart complete / See how it lays / languid and slow / Never noticing / me here below / I've seen the best, yes / and that is the one for me
maybe a girl will take it / maybe a boy will steal it / maybe a shake of the bough / will wake it and make it fall
my favorite plum / lies in wait for me / I'll be right here / longing endlessly / you'll say that I'm / foolish to trust / but it will be mine / and I know that it must / 'cause I've had the rest, yes / and that is the one for me / I've seen the best, yes / and that is the one for me.

20.8.06

« [...] os princípios raramente são coisas humanas.»

Sally Mann [n. 1951] | Jessie Bites [1985]
Sally Mann [n. 1951] | Jessie Bittes | 1985

Entrei no carro do meu pai. Sem saber porquê, recordei-me de um momento passado muitos anos antes na escola preparatória, quando uma rapariga chamada Michele Fox me colocou perante um dilema ético bem conhecido da maioria das crianças das escolas americanas dessa época: «Se um museu estivesse a arder», disse ela, «e tu só pudesses salvar a velhinha ou uma obra de arte de valor inestimável, qual salvarias?». «Bem», respondi eu, «isso depende. Quem é a velhinha? Qual é a obra de arte?». Ao que ela respondeu… de forma sensata, estou certo… «Não estás a perceber a questão, David Leavitt». Não havia dúvida que eu não percebia a questão – a questão dela, uma vez que a Michele tinha poucas dúvidas na vida. (Quando cresceu, tornou-se telefonista dos Serviços de Emergência.) Quanto a mim, torturei-me com aquele pequeno enigma durante anos, substituindo a velhinha primeiro pela minha tia Ida, depois por Edora Welty; a obra de arte inestimável substituí-a primeiro pela Mona Lisa depois pelo Guernica de Picasso. E de cada vez a minha resposta era diferente. Umas vezes optava pela vida, outras pela Arte. E, surpreendentemente, a partir daquele capricho formou-se em mim uma filosofia segundo a qual apenas as particularidades contavam, não as generalidades, pois os princípios raramente são coisas humanas; e quando um museu arde – quando qualquer edifício arde –, a verdade é que a maioria das pessoas se salva a si própria.

David Leavitt | Arkansas | Parte I, «Trabalhos de Artista» | tradução de Paula Teixeira | Edições Asa | 1999 | pág. 70

5.8.06

Não, no, non, nein.

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | companheiros de temporada | fotografia | agosto de 2006


Saí para a rua e pus-me a pensar nisso em que levo o dia inteiro a pensar. Nas cigarras. Digo a mim própria que as cigarras têm toda a razão e que não sei quem foi o estúpido que um dia disse o contrário, não sei quem se lembrou de propor que as cigarras mudassem. Grande parvoíce. As formigas é de deviam mudar, pois, coitadas, são tão parvas. Dizer que uma cigarra deve trabalhar foi uma imbecilidade repetida durante séculos. As formigas sim, deviam ser cigarras, fazia-lhes bem o ócio, nenhuma formiga devia privar-se de uma sensação tão maravilhosa como a de saber dizer não, mandar ao inferno de uma vez por todas os seu feliz e pesado ninho laborioso.

Enrique Vila-Matas (n. 1948) | Filhos Sem Filhos | tradução de José Agostinho Baptista | Assírio & Alvim | junho de 2002 | págs. 27 e 28


Preciso vitalmente de contrariar a rotina das férias. Se transformadas em rotina, deixam de ser o que são. Pavor. De maneira que, perco-me por temporadas - gosto de dizer temporadas, sem contar os dias, porque saber quantos são ao certo aviva a memória do seu fim e torna-os mais pequenos - imitando as cigarras quando todos à minha volta, de negro solenemente vestidos, se esforçam por parecerem formigas. Mas a meteorologia, essa incógnita e imperscrutável personagem, ainda não consegui contrariar, embora ela me altere os planos não raras vezes e eu saiba que, mais dia, menos dia, será a minha vez de clamar por desforra.

Por isso vos digo:
[voz firme e colocada]
parto daqui para o nada, para o silêncio, a acalmia. Quero perder-me de mim nos outros. Peço-vos, portanto, que não me pergunteis se está tudo bem, pois não vos responderei, nem com as expressões da praxe. Pretendo tão somente dizer não, não sei, não vi, não ouvi, não quero saber - e tais palavras não se adequam como resposta a um olá, tu por aqui?. Se se der o caso de vos cruzardes comigo na rua - por Deus! - fingi que não me conheceis, pois eu farei o mesmo. O mais provável, aliás, é que, na verdade, não vos reconheça mesmo, pois se meus olhos vos fitarem, crede que não é para vos ver, senão porque para algum lado têm de olhar. Não me desejeis bom dia, boa tarde e muito menos bom fim de semana - não vale a pena a distinção porque todos os meus dias serão iguais, e a palavra fim estará interdita aos meus ouvidos. Evitai os acenos, tentando captar a minha atenção. Ah! E não me pergunteis pela tese. Aliás, não é tese, é dissertação, mas repito, não me pergunteis pois não vos corrigirei nem darei resposta. Não vos atrevais a sentir ou verbalizar saudades minhas: previno-vos já que eu não terei vossas.
Durante uma temporada estarei singularmente gozando o que a tal da aleivosa meteorologia só oferece quando lhe dá na realíssima gana: sol, azul e verde. De gente, não pretendo sequer ouvir falar. Quero embriagar-me de luz, mar e natureza e a taça é pequena só para mim.
À noite, tenciono quedar-me no breu a ouvir minhas amigas cigarras dando lições ao formiguedo de como se entoa correctamente não, no, non, nein.

Assim sendo, peço-vos que façais silêncio.
[orelha colada à tela]
Está bem assim, muito obrigada.

© [m.m. botelho], carregando no player para ouvir Sympathique, dos Pink Martini, do álbum homónimo [1997]. Quando as pilhas estiverem gastas, restará a quietude do nada e o ruído emudecido do relógio esquecido na gaveta.



ma chambre a la forme d'une cage / le soleil passe son bras par la fenêtre / les chasseurs à ma porte comme les petits soldats / qui veulent me prendre
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
déjà j'ai connu le parfum de l'amour / un million de roses n'embaumerait pas autant / maintenant une seule fleur dans mes entourages / me rend malade
je ne veux pas travailler / je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...
je ne suis pas fière de sa vie / qui veut me tuer / c'est magnifique être sympathique / mais je ne le connais jamais
je ne veux pas travailler / non, je ne veux pas déjeuner / je veux seulement t'oublier / et puis je fume...

4.8.06

«O amor é fodido.»

       O amor é fodido. Hei-de acreditar sempre nisto. Onde quer que haja amor, ele acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser fodido. [...]
       Por que é que fodemos o amor? Porque não resistimos. É do mal que nos faz. Parece estar mesmo a pedir. De resto, ninguém suporta viver um amor que não esteja pelo menos parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança. Tem de haver progresso para pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.

© [m.m. botelho]
       Dávamo-nos mal, mas éramos inseguros e um bocado estúpidos na forma de discutir, pelo que lá fomos aguentando. Ela chamava-me «crápula». Ofendia-me. Eu respondia sempre com a mesma fórmula: «Posso ser muitas coisas, mas crápula (ou velhaco, ou sacana ou vaidoso) é que não sou.» Ela batia-me de vez em quando. Enraivecia-a. Sou uma pessoa muito calma, sobretudo diante da histeria. As raparigas não gostam desta minha faceta. Confundem-na com frieza e insensibilidade. Mas é verdade que, quando alguém me chateia, fico insensível. Como os porcos-espinhos quando são apanhados nos faróis dos camiões. Não gosto de nada que me doa.

© [m.m. botelho]
       Estávamos sempre a foder, ou a recuperar, ou a prepararmo-nos para foder. Em nada afectava o nosso amor. Tanto suspirávamos como arfávamos; tanto dizíamos carinhos como palavrões: era-nos igual. A coisa funcionava sozinha. Se exigisse algum esforço da nossa parte, teria fracassado. É uma consolação que resta. O amor é fodido, mas foder também.

© [m.m. botelho]
       Adeus – aonde mandamos as pessoas. A última sílaba que ouvimos é dum nome que só conhecemos porque jurámos que nunca o havíamos de dizer.

       Seria alegre termos sido capazes de nos despedirmos bem, ao menos uma vez. A todos os outros foi-nos tão fácil dizer adeus. Nós éramos danados, especialistas nos reencontros e no «vamos mas é continuar juntos.»

© [m.m. botelho]
       Por estas e por outras estarás sempre eu contigo e tigo com mim.

       Sobre uma estrela caída no chão, uma estrela que nunca se viu, deitei o meu coração doente e por causa de ti não ardeu.

       Para onde vai a minha vida é coisa que eu quero lá saber. Ainda tenho o cheiro nos dedos duns caranguejos que comi quando era pequenino, a mil quilómetros do mar e daqui. É esse o curso que quero seguir, se for obrigado a escolher um. Ser como um cheiro que permanece, ligado a um momento que se esqueceu.

       Sofrer é fodido porque o amor é fodido – mas como foder o sofrimento? Fazendo sofrer os outros? Já experimentei. Não resulta.

       Ai, o meu mal de amor. Todo o mal que tenho feito e que me tem acontecido, vem-me do amor que me tiraste.

© [m.m. botelho]
       Torno-me culpado só para aceitar o teu comportamento. Nunca me importei de ser o responsável por fosse o que fosse – nisto consiste a minha irresponsabilidade.

© [m.m. botelho]
       Cada um com a sua doença. A minha era não querer existir. Pensava que merecias melhor que eu, que te ias fartar de mim, que me ias descobrir. E afinal a única coisa que eu tinha para descobrires, à parte o meu grande amor, era a minha queda para a cobardia, e para ti.
       A música do meu tempo são as mulheres à minha volta a falar. «São uns filhos da puta.» Têm razão. De quem estarão a falar?

© [m.m. botelho]
       Estou sempre a cair em ti, em vez de em mim. [...]

       Nunca vi um céu tão bonito nem tanto sossego, enquanto acabo o meu café no meio da cidade quase vazia, a não correr para apanhar o correio que já sei que não vou apanhar, sem saber que mais dizer-te, porque a minha alma está sempre a interromper-me, a chamar por ti.

© [m.m. botelho]
       Quanto mais longe, mais perto me sinto de ti, como se os teus passos estivessem aqui ao pé de mim e eu pudesse seguir-te e falar-te e dizer-te quanto te amo e como te procuro, no meio de uma destas ruas em que te vejo, zangado de saudade, no céu claro, no dia frio. Devolve-me a minha vida e o meu tempo. Diz qualquer coisa a este coração palerma que não sabe nada de nada, que julga que andas aqui perto e chama sem parar por ti.

Texto: Miguel Esteves Cardoso | O Amor é Fodido | 3.ª edição | Assírio & Alvim | março de 1995 | excertos das páginas 16, 18, 19, 23, 24, 25, 27, 28, 30 e 31 [capítulos 2 e 3]
Imagens: © [m.m. botelho] | ontem, late at night, ao volante, de regresso a casa | 3 de agosto de 2006 |