27.12.07

Sem título

O tempo fechou

[todas]

as janelas por nós.

© [m.m. botelho], ao som de If we cannot see, dos Devics, do álbum Push the heart [2006].



you were born with a heart that can never be filled / and a head like snow that can never be still / there are streets paved in gold that shine so bright / that you force yourself to look away
if we can't see now, we might never see / we only kill ourselves more slowly / if you can't find love, then you will finally see / how we kill ourselves slowly
the words that fall from your mouth / they crystalize and break on the ground / and everything you want, you can't have / but you force yourself to look away
if we can't see now / we might never see / we only kill ourselves more slowly / if you can't find love, then you will finally see / how we kill ourselves more slowly
if you can't find me then you can't find love / if you close your eyes then will finally see / that you're already here with me

20.11.07

Um improvável adeus

O desenho dos teus ombros, o ténue som dos teus passos rápidos, uma silhueta esguia que lentamente se afasta, até se tornar pequenina, tão pequenina que os meus olhos deixam de a ver. A imagem que guardo de ti, a imagem da tua ida, por entre as gotas de chuva que te encharcavam o casaco, a mesma chuva que escorria pelo vidro do meu carro.
- Graças a Deus está a chover.
Não quero acreditar que não voltarei a ter a tua cabeça repousando no meu ombro
- Porque é que o mundo não é só aqui e agora, a minha cabeça sobre o teu peito?
não quero acreditar que não terei mais o castanho aguado dos teus olhos perdido nos meus, a tua gargalhada genuína nos meus ouvidos
- Gosto tanto de te ouvir rir.
o teu cheiro a invadir as minhas noites
- Gosto tanto de estar aqui contigo.
Não quero acreditar que te irás, assim tão depressa, sem que eu tenha sequer levantado um pé do chão
- Isto tudo é tão improvável...
sem que eu tenha sequer tido a possibilidade de não gostar de ti.
- Quero que te fixes, essencialmente, nessas características terríveis que eu tenho e que te tiram do sério.
Tinha sempre tantas saudades tuas, mesmo quando estava contigo.
- Vais fazer-me falta.
Vou ter tantas saudades tuas...
- Tarde demais, eu não consegui evitar.
Não quero que vás, mas pouco importa o que eu quero
- Isso é um problema meu, que eu tenho de resolver.
pouco importa que eu me tenha dado inteiramente a ti, pouco importa se eu me dei e tu não aceitaste
- Dei o melhor de mim e acho que dei tanto.
pouco importa se foi ridículo, estúpido ou qualquer outro adjectivo que eu lhe queira chamar enquanto o meu peito definha perante a dor
- A inteligência é fatal, a ignorância é menos mortífera.
a verdade vem sempre à tona
- Não te cobro nada.
afinal de contas, entre nós, nunca houve promessas.
Levaste-me uma dor, deixaste-me outra e, em adição, a memória de ti,
- Esta memória é uma cruz.
a memória de todos os momentos em que foste presente e em que agora sentirei mais a tua ausência.
- Esta é a última frase que te digo antes de abrires a porta do carro e saíres...
O Outono, este ano, foi tão quente e tão frio,
- Terei saudades tuas durante muito tempo, mas depois passa.
tão quente no teu sorriso, tão frio no teu silêncio, no teu olhar fixo em mim, na tua mão segurando a porta, no meu sinal para que fosses, no desenho dos teus ombros, o ténue som dos teus passos rápidos, uma silhueta esguia que lentamente se afasta, até se tornar pequenina, tão pequenina que os meus olhos deixaram de a ver.
A chuva começou a morrinhar quando o meu carro desenhou a curva e o teu seguiu em frente, quando os meus olhos se fecharam sem a luz dos teus, quando a manhã cinzenta começou a abrir. Foi madrugada e tu não estavas comigo. Mais nenhuma madrugada contigo.
Sei que morrerei um bocadinho. A cada dia que passa morremos um bocadinho, mas os dias sem ti depois de ti matar-me-ão um pouco mais do que o esperado, como o lume que consome o cigarro cujo fumo se escapa pela nesga da janela aberta, no meu solitário regresso a casa.
E sabes que mais? Nunca fomos ao teatro. E eu tenho a certeza de que teria amado ir ao teatro contigo.

© [m.m. botelho], ao som de Voltar, de Rodrigo Leão, do álbum O Mundo (1993-2006) [2006], aqui ao vivo.



manhã cinzenta / faz-me chorar / a chuva lembra / o teu olhar
as folhas mortas / caem no chão / a dor aperta / o coração
quanto eu não daria / para poder voltar atrás / volta para o meu peito / daqui não saias mais
perdi minha dor / para te encontrar / na solidão / do teu olhar
no teu olhar / se perde o meu também no mar / se perde o céu
quanto eu não daria / para poder voltar atrás / volta para o meu peito / daqui não saias mais

18.11.07

Pronome possessivo

Estava para ali a olhar para esta página em branco, para ali a pensar no que haveria de escrever, se é que haveria de escrever alguma coisa. Tinha acabado de pousar o copo, bebericara um pouco de água quando nisto bateram à porta. Do lado de lá do intercomunicador perguntaram se, apesar da hora tardia, me importava de abrir e deixar entrar. Disse que não me importava. As horas estão presas dentro dos relógios, a cada segundo que passa os ponteiros fazem-lhes cócegas na barriga, como aos bebés que dormem o dia inteiro e a quem nada importa a não ser que nunca lhes desapareçam da vista as grades do berço. As horas estão presas dentro dos relógios, dizia, por isso «Façam o favor de entrar, não se acanhem. Façam de conta que a casa é vossa».
Perguntei-lhes depois o que queriam, mas afinal não queriam nada de concreto, apenas entrar, sentar-se um pouco no par de cadeiras que tinha diante de mim e ficar a olhar para o tecto, para a janela, para as aguarelas que mancham a parede. Ofereci-lhes água, que mais não tinha, «Não se preocupe que bebemos pelo mesmo copo. Não queremos dar trabalho e certamente quando chegámos estava a meio de qualquer coisa». Respondi que mesmo quando não estamos a fazer nada estamos sempre a fazer alguma coisa, porque nada já é alguma coisa, não é? «Pois, realmente, é».
Olharam-me com ar de comiseração por mim e recostaram-se entre os braços da cadeira. Perguntei-lhes se se importavam que continuasse a olhar para a página em branco, a ver se, com a sua presença, me saía alguma coisa para encher a folha, «Não, claro que não nos importamos. Continue para aí a mirar a palidez do papel e não cuide de nós, que nós por cá nos arranjamos».
Algum tempo depois saiu-me uma palavrinha ou duas e comecei a escrevê-las. A tinta preencheu meia linha da folha. À minha frente, «Ai, que se faz tarde! É melhor irmos andando que ainda adormecemos aqui». Levantei-me, abri a porta e desejei-lhes boa noite. Saíram em silêncio, sorrindo à passagem por mim.
Depois de fechar a porta ouvi comentar que lá fora estava frio, «Agora sim, já parece Inverno. Este ano praticamente não tivemos Outono.», os passos a afastarem-se a as vozes a ficarem cada vez mais sumidas, cada vez mais sumidas, até que deixei de as ouvir.
Voltei para a secretária e pus-me a olhar para a folha agora já não totalmente em branco, apenas com uns rabiscos de tinta e li o que escrevera. E não me apeteceu escrever mais nada, nem sequer reler o que havia escrito, porque o tecto pareceu-me bem mais interessante e igualmente imaculado. E quedei-me para ali a olhar para os fios do candeeiro que o esventravam e concluí que já eram horas de me ir deitar. Ando a dormir mal porque nunca me dá o sono e eu não me obrigo a ir para a cama. Esta noite posso obrigar-me a ir para a cama mais cedo e mesmo que não durma vou ficar por ali a olhar para o tecto, afundando os olhos no escuro.
Mesmo antes de adormecer, lembrei-me do que escrevera no papel e de como não me ocorreu mais nada nem poderia. No canto da folha escrevera a data, um pouco mais abaixo escrevera o teu nome, imediatamente a seguir a um pronome possessivo que não faz qualquer sentido estar ali. O teu nome não condiz com aquele pronome possessivo e por isso o discurso interrompeu-se. Na verdade, o teu nome não condiz com folhas brancas, nem com a tinta que sai da minha caneta nem com nada do que tenho espalhado por aqui dentro da cabeça e que não me deixa dormir. As visitas tardias foram-se embora quando leram escrito na minha melhor caligrafia, no máximo do meu esmero, o teu nome. A seguir à data o teu nome e depois do teu nome mais nada, nem sono nem coisa nenhuma. Resta o espesso do carvão da noite que inunda os meus olhos no meu quarto escuro.
Se me baterem à porta já não me levanto. Quero ficar aqui a pensar nas questões gramaticais dos pronomes possessivos antes dos nomes e nos nomes a seguir às datas. Estamos presos como as horas dentro dos relógios, agora percebo isso e não sei se gosto. O sono há-de vir e amanhã rasgo o papel e começo tudo de novo. Alguma coisa há-de vir à ideia. Não sei quem esteve cá, sei que entraram e saíram e que lá fora faz frio. O sono há-de vir e há-de apagar o teu nome de dentro de mim como a chama se apaga nas velas, queimando-o, juntamente com todos os pronomes possessivos e todas as datas e as minhas insónias.
Continuará a fazer frio lá fora e isso é tudo o importa. Afinal de contas, «Até parece que estamos no Inverno, não parece?», pois parece, «Este ano nem tivemos Outono!», tivemos sim, mas nem demos por ela, «Pois, realmente, não demos por ela, não».

© [m.m. botelho]

13.11.07

à superfície de mim

ainda agora chegaste e já
o vento te soprou
para longe
só porque a noite
caiu entre nós
volta quando o dia raiar
quando a luz
do sol for perfume
espalhado na tua pele
tisnada
deixa-te pousar
à superfície de mim
quando a madrugada
despontar neste imenso céu
do outono que foi tecto
do nosso encontro


© [m.m. botelho]

12.11.07

Oxalá

A maior angústia não é saber-te desse lado do rio. A maior angústia talvez seja saber que queres muito saltar para a minha margem, mas não o fazes. Uma angústia tão grande como as noites que passo sem ti, uma angústia do tamanho da eternidade que não se pode medir porque os nosso braços esticados não chegam.
Já te disse tantas coisas que quase sinto que tudo está gravado no granito há que tempos. Abrir os olhos ao amor é quase tão difícil como abri-los debaixo de água. O sal a corroer-nos, o desconforto, a visão turva. Tudo isso e muito mais faz a nossa inércia. E a dor é infinitamente maior e muito mais pungente.
O amor é, provavelmente, o mais fácil de conseguir. Tudo o resto, o resto de tudo é que é desafiante almejar.
Eu ouso. Oxalá hoje queiras tu também ousar. E, então, o teu colo será habitáculo do repouso da minha cabeça, o teu ventre lençol dos meus beijos e os teus cabelos resguardo dos segredos que te direi baixinho, antes de adormeceres. Oxalá.

© [m.m. botelho]

10.11.07

Metade

Começa-se
Sempre
a meio das coisas


Adília Lopes (n. 1960), «13 poemas fáceis», inéditos em «O Escritor», revista da A.P.E., n.os 15/16/17, Março/1991.


Eu e tu começámos a meio de qualquer coisa. A meio de nós, talvez. Dois corpos vagantes que se confundiram um dia sob uma intensa luz branca. Dois pares de olhos que, durante a eternidade que dura uma noite, se diluíram um no outro, debaixo de um candeeiro de onde pingava uma claridade amarelecida. Dois rostos que se perderam de si mesmos enquanto o ruído do silêncio que habitava as nossas bocas se afogava num ritmo ensurdecedor e vertiginoso. Duas mãos que se desmembraram na escuridão de uma rua alcatroada de uma cidade barulhenta tão quieta e calada naquele instante.
Eu e tu não nos cruzámos antes porque então era o princípio. Eu e tu não nos cruzaremos depois porque então será o fim. Cruzámo-nos agora, a meio das coisas, de todas as coisas. Seguiremos em direcções opostas, que o tempo não se compadece com nada, muito menos connosco. A minha estrada segue para Norte, a tua para Sul, paralelamente, mas sem nunca se cruzarem. Diria que fomos um acidente de percursos independentes que nunca ninguém saberá explicar como e porquê se encontraram.
Eu e tu fomos só metade de algo que começou a meio. A outra metade divide-se em duas. Uma delas vai comigo, a outra fica caída junto à berma do teu caminho. Vai-te embora e nunca olhes para trás, não quero que olhes para trás. Não quero que me vejas estancada à tua espera. Segue o teu trilho e deixa-me o meu. A meio das rotas, das vidas, das horas que marcam o relógio começam-se muitas coisas, mas nenhuma delas se termina. Acabam-se as coisas sempre pela metade. Nós acabámos pela metade. E é a incompletude tudo o resta.

© [m.m. botelho], de rajada. Por dentro quero acreditar que faz algum sentido, apesar de cá fora tudo parecer tão desconexo.

Ouve-se, no Viagens Interditas, Lie To Me, dos Devics, do álbum Push The Heart [2006].



you're wasting all your time here / riding around in the sun / alone and idling / come wander back to me / you know I'll always be there
lie to me, lie to me / make like you love me / lie to me, lie to me, oh
with this one you never go / and this one you never show yourself / with this one you tell it all / and turn your world into a ghost town
lie to me, lie to me / make like you love me / lie to me, c'mon it's easy, oh
don't think of what we can't be / I know what you need and you know that you like it / the name you were born with / your soul on your sleeve / let me believe in something

31.10.07

Recadinhos

Amanhã, passa de novo por aqui. Se me encontrares, pergunta-me por mim e dá-me recadinhos. Eu dir-me-ei que te vi e que o sol deixou fiapos no teu cabelo...
Se me encontrares, eu estou por aqui.

© [m.m. botelho]

20.10.07

O inesperado encontro

Li algures, num rodapé de um noticiário televisivo, que já é Outono. E esta? É Outono e eu nem dei por nada.
O calor continua lá fora, o frio continua cá dentro. Tudo ao contrário, portanto. Continua tudo de pernas para o ar.
Dentro do elevador que me leva ao destino, as portas dos vários andares vão passando por mim. Estou parada, tudo o resto é que se move. Dentro dos elevadores o mundo é que anda para cima e para baixo atrás de nós, à nossa procura.
Quem está de fora não vê,
nem mesmo tu vês
mas cá dentro também eu ando à tua procura
numa viagem algures entre um rés-do-chão e um sexto andar.
Conheci-te num dia de Outono.
Andava há tanto tempo à tua procura.
Os nossos olhos cruzaram-se e eu voltei a olhar em frente. Como a porta de um andar para quem vai dentro de um elevador, passaste por mim depressa.
Agarrei-te,
interrompi, algures, a tua viagem
tive-te num dia de Outono e deixei-te escapar
disseste que tinhas já a tua rota traçada.
A estação voltará todos os anos. Tu talvez não voltes. Escolheste ir embora no mesmo dia em que chegaste. E eu agarrei-te, mas deixei-te ir. E nem dei por nada.

© [m.m. botelho], ao som de Não Vá Embora (O Inesperado Encontro), de Marisa Monte, do álbum Memórias, Crônicas e Declarações de Amor [2000].



e no meio de tanta gente eu encontrei você / entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio / e eu que pensava que não ia me apaixonar / nunca mais na vida
eu podia ficar feio só perdido / mas com você eu fico muito mais bonito / mais esperto / e podia estar tudo agora dando errado pra mim / mas com você dá certo
por isso não vá embora / por isso não me deixe nunca nunca mais / por isso não vá, não vá embora / por isso não me deixe nunca nunca mais
eu podia estar sofrendo caído por aí / mas com você eu fico muito mais feliz / mais desperto / eu podia estar agora sem você / mas eu não quero, não quero
por isso não vá embora / por isso não me deixe nunca nunca mais / por isso não vá, não vá embora / por isso não me deixe nunca nunca mais / por isso não me deixe nunca nunca mais

1.10.07

Fosses tu

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | oeiras | setembro de 2006


Fosses tu uma ave ou uma folha
E o Outono te viria desprender


Daniel Faria [1971-1999] | A Casa dos Ceifeiros | Associação de Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto | 1993

26.9.07

Causa-efeito

As mãos suadas. As têmporas a latejar. O batimento cardíaco em altos decibéis dentro da cabeça. Os dentes cerrados. A expressão fechada. A respiração contida. Os olhos meio-húmidos. A incapacidade de concentração. O silêncio, o silêncio, o silêncio. O coração aos pulos dentro do peito. O pensamento perdido não sei [ou sei? já nem sei] por onde. A fadiga repentina. A falta de apetite. O sono a teimar não chegar. O corpo às voltas na cama. Uma terrível enxaqueca. O dia à porta outra vez. Slideshow em flash no escuro do meu quarto. Tudo isto, ali, bem diante do nariz. A vida, ali, tão à flor da pele.

Tu. Tu. Tu.
Sempre e outra vez tu.
Tu tão longe e tão por dentro.

© [m.m. botelho], ao som de A culpa é da vontade, um inédito de António Variações, interpretado por Humanos, do álbum homónimo [2004].



a culpa não é do sol / se o meu corpo se queimar / a culpa é da vontade / que eu tenho de te abraçar
a culpa não é da praia / se o meu corpo se ferir / a culpa é da vontade / que eu tenho de te sentir
a culpa é da vontade / que vive dentro de mim / e só morre com a idade / com a idade do meu fim / a culpa é da vontade
a culpa não é do mar / se o meu olhar se perder / a culpa é da vontade / que eu tenho de te ver
a culpa não é do vento / se a minha voz se calar / a culpa é do lamento / que suporta o meu cantar
a culpa é da vontade / que vive dentro de mim / e só morre com a idade / com a idade do meu fim / a culpa é da vontade

25.9.07

Relação directa

Quanto maior a nossa distância, mais penosa a tua presença.

© [m.m. botelho]

10.9.07

Morrer outra vez

começo a acreditar que um dia
hei-de morrer mesmo

outra vez

© [m.m. botelho]

9.9.07

Enxurrada

andei muito tempo a desejar sair daqui
mas a chuva arrastou na enxurrada o meu coração
e eu voltei atrás para o agarrar

de novo o meu coração entre as mãos
sujo da água dos esgotos
do jorro da imundície dos outros
do que os outros deitaram fora

© [m.m. botelho]

7.9.07

Dúvida

Quis ficar ali, estática, impassível, a deixar-me somente trespassar pelo teu olhar. Quis morrer naquela fracção de segundo em que todos os dias morreram. Quedar-me eternamente rígida como os ponteiros do relógio quando se sobrepõem. Fugir de mim mesma, fugir por dentro e por fora de mim. Quis tantas coisas e, no entanto, queria apenas o profundo silêncio, o peso da ausência de tudo. Ser soterrada, imersa, absorvida. Qualquer outra coisa que não fosse ver-te ir, qualquer coisa que não fosse consentir à desesperança que cobrisse os nossos corpos. Quis deixar-me ensurdecer pelos teus gritos mudos, pela estridor dos teus lábios imóveis. Esvaecer em sangue e nevoeiro. Desfalecer, diluir-me, gotejar até ao fim. Prantear a minha própria miséria e maldizer tal sorte. Suster a respiração até entorpecer as pernas e os braços e permitir ao meu coração bater desgovernadamente enquanto não deixasse de sentir saudades tuas. Desde aquele momento continuo a não saber se há lembrança desse amor que um dia esbanjou assim a minha alma. Não sei, até hoje, se a perversidade conseguiu vencer a paixão. Nunca mais voltei a olhar cá para dentro. Temo deixar de te notar a falta, de te querer. Não tenho habilidade alguma para tirar conclusões sobre isto que é a vida real. Recuso-me a parir do interior uma dúvida ainda maior do que esta. Naquela noite tu morreste e eu fiquei moribunda. E sem certezas algumas sobre o desejo da cura.

© [m.m. botelho], ao som de Fado da Dúvida, dos Madredeus, do álbum Faluas do Tejo (2005).



se já não lembras como foi, / se já esqueceste o meu amor, / o amor que dei e que tirei, / não queria lamentar depois. / mas uma coisa é certa, eu sei. / não tive nunca amor maior. / e ainda vivo o que te dei, / ainda sei quanto te amei, / ainda desejo o teu amor.

não tenho esperança de te ver, / não sei amor onde andarás. / pergunto a todo o que te vê / e nunca sei como é que estás. / agora diz-me o que farei / com a lembrança deste amor. / diz-me tu, que eu nunca sei, / se voltarei ou não para ti, / se ainda quero o que sonhei.

5.9.07

Trilho

Eis que caem as palavras. Deixá-las escorrer pelo decote, sorvê-las no meu próprio ventre, cuspi-las no sexo. A minha vulva húmida de palavras. Beijar muito o branco destas paredes, até ter os lábios gretados pela cal. Lamber o silêncio do chão, das solas dos teus sapatos, dos dedos dos teus pés. Enlouquecer, enroscada como animal no tapete. Gravar com as unhas o teu nome em toda a parte. Ir pela madrugada fora. Sentir o corpo pesado. Deixar palavras molestas vertendo por onde eu passar. E consumir-me, por aí, no trilho fundo que o meu gozo rasgar.

© [m.m. botelho]

3.9.07

Palavra de honra

eu faria um esforço
- palavra de honra que faria -
para fingir não me importar muito
caso tu tivesses avisado
que, afinal,
não seria bem o que todos
- eu incluída -
esperavam,
mas tão somente aquilo que tu
muito bem entendias

no tão pouco desta escassez de ti que agora me rodeia
compreendo
[?]
por fim, o quanto
podemos enganar-nos
- a nós próprios e aos outros -
sobre aquilo que é possível
receber.

as tuas mãos estendidas
espelham bem o nada que tens para me dar

és tu quem está de mãos vazias,
sem teres onde te agarrar e,
contudo,
sou eu quem
desamparada
cai

tu não notas
- ninguém nota -
sequer que eu faço um incomensurável esforço
- palavra de honra que faço -
para fingir que não dói muito
e depressa me levantar

© [m.m. botelho]

31.8.07

Mal-entendido

Eu deste lado a dizer-te «olá».
Tu desse lado a dizeres-me «adeus».

Eu deste lado a dizer-te «até sempre».
Tu desse lado a dizeres-me «até nunca mais».

Eu deste lado a gritar que te amo.
Tu desse lado em completo silêncio.

Eu deste lado, eu sempre aqui.
Tu desse lado, tu não sei onde.


© [m.m. botelho], ao som de Patience Is A Virtue, de Rufus Wainwright, do álbum Release The Stars [2007].

patience is a virtue, I will name you after patience / wanting to be there, but being able to wait / patience is a baby that I'd really love to give you / So he can take care, 'stead of staying out late
I wake up in the morning, take my tea or coffee / look at the world out the window / listening to church bells, weddings, funerals / hell of a sound, want you around
could this be the answer, answer to all my confessions? / are you the difference between glitter and tears? / or is there still no reason, and I am once more mistaken / putting all my emotions into porcelain ears
I wake up in the morning, take my tea or coffee / look at the world out the window / listening to church bells / praying for you, down on my knees / what do I do?
patience is a virtue, I will name you after patience / patience is a baby that I'd really love to give you / blame it on black steeples and listening to church bells ringing / or watching the people passing me by / weddings and funerals passing me by

2.8.07

Mais do que o teu sorriso perfeito

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | vila do conde | agosto de 2007


Enquanto escrevo, os Camera Obscura fazem cócegas nas colunas do computador. Ouço Books Written For Girls. A voz cálida de Tracyanne Campbell é entrecortada apenas pelo som das teclas a afundarem-se sob a pressão dos meus dedos.

You can compliment me on the style of my hair...

Ergo-me da cadeira e abro a janela. De cada vez que a abro penso sempre a mesma coisa, que esta janela é enorme, tão grande que um dia me engole, me mastiga os ossos e os cospe lá para fora.

You probably thought I had more upstairs...

Regresso à sonatina de caracteres. Escrevo. A claridade do monitor vai inundando a sala, revelando lentamente o que está escrito nos papéis que se espalham sobre a secretária. Há uma ou outra fotografia nesta sala. Quase todas captadas por ti, que eu nunca fui grande fotógrafa. Falta-me a perspicácia e os bons reflexos para disparar no momento certo, na posição correcta, com a iluminação ideal, ou seja, tudo o que tu tens para dar e vender.

Can't see through your perfect smile...

Também não sou grande modelo. Sempre achei que fico mal nas fotografias, mesmo nas que foram tiradas por ti. Às vezes olho e penso que nem pareço eu. Gostava que as fotografias mostrassem mais do que aquilo que os olhos podem entender.

He prides himself on being a man of the world...

Na rua vai um grande reboliço. Já é tarde, mas é Verão e as pessoas aproveitam o bom tempo para virem arejar as suas solidões para a minha rua. Os mais ocupados (ou tímidos), como eu, limitam-se a ficar dentro das casas e a abrir as janelas porque não têm tempo (ou coragem) para mais.

In the darkest of places he gets his thrills...

Os passeios não sentem a falta de gente como eu. Até agradecem o bom senso que me leva a ficar aqui fechada. As calçadas não gostam de gente solitária que tem consciência da sua solidão, preferindo os que a disfarçam em ajuntamentos de final de tarde. Tanta gente desconhecida. Tanta gente que não se conhece.

I think separation is okay...

Da secretária não vejo a rua. Ouço apenas os barulhos, mas não sei de onde vêm. Ouço as vozes, mas não vejo os rostos. Não sei se quem passa é velho ou novo, se homem, se mulher. Da rua não se vê a minha secretária. De lá de baixo ninguém sabe quem fustiga estas teclas. Não sabem quem sou, a que cheiro, de que cor são os meus cabelos.

You're not star to guide me anyway...

Gosto de ficar por aqui mesmo quando já não se ouve ninguém. Sob o peso das horas, a minha solitude há-de brindar com o silêncio da noite não sei a quê. E a quietude será tanta cá dentro como lá fora, tanta nos outros como em mim.

A fool... played by your rules...

Enquanto vou escrevendo vou-me lembrando de todas as pessoas que passaram aqui hoje e que eu não sei quem são. Imagino-as agora em casa, com as televisões ligadas num canal com chuva, descalçando os sapatos, palpando os pés inchados, o cheiro do suor impregnado nas roupas que despem e atiram sobre as cadeiras, as mãos húmidas segurando o despertador, os suspiros provocados pelo calor, o peso da imensa tristeza por mais um dia ter chegado ao fim. Quase posso vê-las a mirar a sua própria sepultura, certas de que um dia a mais é sempre um dia a menos, certas de que a terra que hoje pisaram amanhã há-de cobri-las.

People get shattered in many ways...

Tu não passaste por aqui hoje, nem ontem, nem em nenhum dos dias que correram desde a última vez que aqui estiveste. Posso dizer que já não sei quem és nem a que cheiras embora ainda guarde bem viva na memória a cor dos teus cabelos. Imagino-te também a ti contando as horas que faltam não sei para quê. Também para mim e para ti um dia a mais é sempre um dia a menos, também a nós nos espera um buraco sem fundo quando já não tivermos de ajustar o despertador.

They can disappoint you...

Todos os dias são dias de fim para alguém e esse alguém somos muitas vezes nós mesmos. Estou tão farta de enterrar pessoas vivas. Estou tão farta de sepultar em silêncio e frio e seco tanta gente. Tão farta de, sempre que me lembro de ti, imaginar o teu retrato sobre um monte de terra que te cobre o corpo todo e te apaga da superfície da minha vida. Ao menos tu ficas sempre bem nas fotografias. O teu sorriso é sempre perfeito. Deve ser por isso que quando olho para o teu rosto eternizado no papel sou capaz de ver muito mais do que os olhos podem entender.

When you see through their perfect smile...

© [m.m. botelho], ao som de Books Written For Girls, dos Camera Obscura, do álbum Underachievers Please Try Harder [2003].



you can compliment me on the style of my hair / give me marks out of ten for the clothes that I wear / you probably thought I had more upstairs.
I disappoint you. / can't see through your perfect smile.
he likes to read books written for girls. / he prides himself on being a man of the world. / in the darkest of places he gets his thrills.
He will disappoint you / If you see through his perfect smile.
I think separation is okay. / you're not star to guide me anyway. / you only wanted me to play. / a fool... played by your rules.
now my door has swollen from the rain. / god knows we'll never see her face again. / people get shattered in many ways.
they can disappoint you / when you see through their perfect smile.

28.7.07

Um coração remendado

Ainda não sei se é possível remendar um coração partido. Tenho-me afadigado em busca do melhor modo de intervenção sobre esse órgão magistral onde, dizem, têm início todos os sentimentos, mas a verdade é que ainda não cheguei a conclusão alguma.
Consta, aliás, que em matéria de consertos de coração não há grande coisa a fazer. Não se trata de um relógio que pode abrir-se para afinar. O coração nem sequer é alimentado por um motor à parte que possa ser desmontado, limpo e reparado; ele próprio é que é o motor de tudo o resto.
Começo a achar que o artífice de tão minucioso arranjo só posso ser eu. Uma tarefa solitária, parece-me, ainda que o artífice do desarranjo tenhamos sido nós. Mas descansa, não conto com a tua ajuda. Talvez já não fosse tão mau quanto isso se tivesses, ao menos, o desejo de que o meu coração voltasse a bater descompassadamente. O problema do meu coração é que bate compassadamente demais, discretamente demais, desapaixonadamente demais. E não me serve de muito um coração que não me inquieta, que não me angustia, que não palpita mais do que o estritamente necessário para bombear o sangue para o resto do meu corpo.
Embora não perceba absolutamente nada da arte do remendo dos corações feridos, quase me atrevo a ponderar a possibilidade de, um destes dias, deitar mãos à obra e tentar compôr o que está estraçoado.
Estive a pensar. Talvez o comprima e o distenda até que perca esta ridícula forma que apresenta, esta forma simétrica que constantemente me lembra que cada coração tem duas metades. Talvez retalhe o meu coração e depois o cosa e recosa, dando-lhe uma forma abstracta. É que é bem possível que o problema do meu coração se resolva no dia em que eu aceitar que metade dele está morta, inanimada, sem sentidos.
Pudessem os corações sobreviver apenas pela metade e este seria o método definitivo para solucionar a questão. Pudesse eu viver de funções meramente biológicas e congelá-lo-ia definitivamente. Mas não posso, ainda não posso. Resta-me, portanto, limpar-lhe as feridas e curá-lo, ainda que consciente de que os efeitos secundários de tão longa paragem nunca deixarão de ser sentidos. Vá lá, ao menos se me conserve esta lucidez.
Caso consiga encontrar o tão desejado método, prometo revelar-to. Poderás, então, também tu, resgatar esse teu coração que eu bem sei, que todos bem sabem, está igualmente despedaçado. Uma coisa te garanto: nunca desistirei de o procurar. Pelo menos, não enquanto continuar a acreditar que é melhor um coração remendado dentro do peito do que um coração moribundo a vaguear por aí.

© [m.m. botelho]

25.7.07

Mas desamar-te não chega.

Eu queria tudo. Tu deste-me o bastante para uma vida. Ainda assim não chegou. Não sei se foi o meu se o teu egoísmo, esta estranha relutância de ofertar, esta distância entre o dar e o receber que nos apartou. É que eu queria tudo, tudo, e tu só me deste o bastante para uma vida.

Não sei o que faça agora destes restos do que me deste que ficaram espalhados dentro de mim. Eu queria tudo, tudo. Até que me ensinasses essa fórmula que tão bem conheces de desamar. Mas desamar-te não chega. A vida não chega para me bastar de ti.

© [m.m. botelho], ao som de Todo o Amor do Mundo Não Foi Suficiente, poema de José Luís Peixoto interpretado pel'A Naifa, do álbum 3 Minutos Antes de a Maré Encher [2006], aqui numa versão ao vivo (apenas a partir de 1:11).



todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor/ não / serve / de nada. ficaram / só / os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros / da / morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não / foram / suficientes e foram / demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são / como / lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar / em / cada instante, cada hora, / não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem / mesmo / quando estiver / deitado, / nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a / amo / antes de a / foder.

14.7.07

Amor a tiracolo

Os dias da semana passam muito mais depressa do que as minhas cansadas pernas desejariam. Ando o dia inteiro a correr de lá para cá, de pasta ao ombro.
Continuo a preferir usar a pasta a tiracolo e não na mão.
Um amontoado de papéis lá dentro, alguns com as pontas dobradas.
Continuo a detestar as pontas das folhas dobradas.
Entre esses muitos papéis encontrei, há dias, uma carta tua. Não pode dizer-se que se trate, em rigor de uma carta. Um recado, talvez. Pedias desculpa por teres de sair sem te despedires; falavas do pacote de sumo que deixaste no frigorífico a gelar para mim.
Continuo a gostar do sumo gelado, pela manhã.
Qualquer dia hei-de debruçar-me a sério sobre o que vem a ser isso a que chamam «cartas de amor». Durante os anos em que fui tua, todos os papéis que me escrevias foram para mim cartas de amor.
Ainda guardo todas as tuas cartas de amor.
Há já muito tempo que ninguém me escreve. Na verdade, só tu me escreveste, recadinhos de amor em pedacinhos de papel rasgados à pressa...
Por tua causa é que dobrei o meu coração em muitas partes, como uma folha velha que já não interessa e se joga fora. Eu, que detesto as pontas das folhas dobradas.
Por tua causa é que tenho o coração cheio de vincos.
Por tua causa é que tirei o amor do peito e o meti na pasta. Escondi o coração no fundo da pasta, soterrado por um sem número de tralhas inúteis.
Por tua causa é que ando com o amor a tiracolo.
O meu amor por ti jaz no fundo da minha pasta, embrulhado nos teus recadinhos matinais.
O meu amor por ti morreu embalado ao som das nossas cartas de amor, papéis que já não te interessam.

© [m.m. botelho], ao som de Se Por Acaso (Me Vires Por Aí), de J.P. Simões, do álbum 1970 [2006], aqui ao vivo.



se por acaso me vires, por aí / disfarça, finge não ver, / diz que não pode ser, / diz que eu morri / num acidente qualquer, / conta o quanto quiseste fazer, / exalta a tua versão; / depois suspira e diz que esquecer / é a tua profissão.
e ouve-se ao fundo uma linda canção / de paz e amor.
se eu, por acaso me vires por aí / vamos tomar um café / diz qualquer coisa, telefona, enfim / eu ainda moro na Sé. / encaixotei uns papéis e não sei / se hei-de deitar tudo fora, / tenho uma série de cartas para ti / todas de uma tal de Dora.
e ouve-se ao fundo canções tão banais / de paz e amor.
se por acaso te vir por aí / passo sem sequer te ver. / naturalmente que já te esqueci / e tenho mais que fazer. / quero que saibas que cago no amor / acho que fui sempre assim / espero que encontres tudo o que quiseres / e vás para longe de mim.
e ouve-se ao fundo a velha canção / de paz e amor.
na sexta-feira acho que te vi / à frente da Brasileira / pareceu-me mesmo o teu fato azul / e a pasta em tons de madeira. / o Tó gostava de te conhecer / nunca falei mal de ti / a vida passa e era bom saber / que estás em forma e feliz.
e ouve-se uma triste canção / de paz e amor.

13.7.07

Memória de uma janela que já foi minha

sé velha | coimbra | 2007
fotografia da autoria de rui velindro *


Memória de uma janela que já foi minha, mas já não é. E tive saudades do tempo em que a abria, à noite, para fumar um cigarro a meias com o lampião, enquanto ambos namorávamos a «Cabra». Quem diria, saudades até de uma janela.

© [m.m. botelho]

* Inesperadamente encontrada aqui.

11.7.07

Um ano

Passou já um ano desde que te foste embora. Eu não sabia que uma despedida podia ser tão demorada como esta nossa está a ser. Todos os dias te digo adeus e todos os dias te reencontro. Hoje cruzo-me contigo muito mais do que quando estavas aqui, junto a mim. Tu ainda continuas aqui, junto a mim - basta pôr a mão sobre o peito e depressa te sinto lá dentro -, mas a verdade é que já não estás aqui, junto a mim, como estavas dantes. Agora estás mais, mais aqui e mais junto a mim. Por isso, este nosso adeus tem sido, afinal, uma série de sucessivos «até já». Passo a vida a esbarrar-me contigo em tudo e em todos. Haverias de ver como és tão evidente, tão evidente, nos olhos da avó a todas as horas.
Continuas a fazer-me uma falta terrível, dentro do coração e dentro de casa. Tenho saudades do teu assobio, do barulho das chaves quando chegavas, de te ouvir chamar os nossos nomes. E de que me peças os sapatos para engraxar, que me perguntes as horas.
Nunca haveria de imaginar ser capaz de descobrir a revelação da tua presença de outro modo: na minha memória. Mas fui, aliás, tenho sido. E de ti tenho a melhor memória que se pode ter de alguém.
Ainda assim, não importa os dias, os meses, os anos que passem, hás-de fazer-me sempre uma falta terrível.

© [m.m. botelho]

In memoriam José Francisco Botelho [1930-2006].

10.7.07

Gostar muito do teu nome

Durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome e tu do meu. Nunca soubemos quem éramos, nem tão pouco sabemos quem somos. Não tento sequer imaginar como viremos a ser. Não quero. Para já, só este imenso aguado de distância entre a matéria dos nossos dois corpos. Pouco mais resta do que a certeza de que, ao menos, durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome. Hoje gosto muito somente da certeza de que, um dia, tu também gostaste muito do meu. Gosto da certeza de que se eu tiver a certeza ninguém ma poderá tirar. Nem mesmo tu.
Por isso sei, tenho a certeza de que, durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome e tu do meu. Depois amei-o, cada letra, cada palavra do teu nome. De vez em quando ainda nascem dias em que dou por mim a gostar muito do teu nome. Noutros, não me vem à memória, simplesmente. Dizem que é costume ser assim, à medida que cada vez mais horas vão sendo contadas.
Quem sabe um dia, entre o teu nome e a minha memória, só outro imenso aguado de distância como este que separa a matéria dos nossos dois corpos. E eu, sem me dar conta, gostarei muito de cada gota desse aguado, a coisa única que ainda me aproximará, embora afastando-me, de ti.

© [m.m. botelho]

27.6.07

5 instantes contigo

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | junho de 2007


1. A tua mão sobre a minha; as nossas mãos pousadas sobre a alavanca das velocidades enquanto conduzo.
2. Dizeres-me que tenho as mãos frias, que tenho as mãos sempre tão frias.
3. Levar-te a passear ao pé do Douro; dar pequenos pontapés nas pedrinhas da calçada; ouvir as gaivotas sobrevoar o rio.
4. Dizeres que gostas dos meus sapatos, que me fazem o pé mais pequenino.
5. Dar-te um beijo de boa noite ao canto da boca, de fugida, antes de bateres a porta.

Ficar por dizer que gosto muito de nós.

© [m.m. botelho]

3.6.07

Acordo tácito

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | veneza | itália | dezembro de 2001


Tudo menos dizeres-me que não valeu a pena.
Tudo menos dizer-te que não valeu a pena.

Ainda que tu ou eu pensemos que talvez não tenha mesmo valido a pena.

© [m.m. botelho]

17.5.07

Pedido

© [m.m. botelho] | fotografia | maio de 2007


Relembra-me o facto, por favor, se eu alguma vez me esquecer de que já me esqueci de ti.

© [m.m. botelho]

28.4.07

À tua espera [parte 3]

Naquela noite não vieste para casa. Nem naquela noite, nem nas noites que se lhe seguiram. Bebi, comi, dormi, acordei, tomei banho, saí para o trabalho, voltei para casa, sempre à tua espera. Tudo fiz, estes dias, à tua espera, sempre à tua espera. Mas tu não voltaste, nem para casa, nem para lado nenhum onde eu esteja.
A revolução foi há três dias. A vida lá fora continua agora num sereno reboliço. Ouvi dizer que no Alentejo já tomaram propriedades e ocuparam moradias vagas, cheias de poeira sobre lençóis brancos e fiapos de sol a espreitar das frinchas das persianas e que ninguém acha estranho que assim seja. Alheado de tudo isto, hoje fiquei em casa. Cheguei mesmo a pensar que valeu a pena ter sido pobre toda a vida para viver estes dias com alguma calma. Pela primeira vez na vida dei por mim a dar graças, não sei a quê ou a quem, por viver numa casa que não é minha e por ir a pé todos os dias para o trabalho. Não tenho nada que me possam tirar, já não tenho nada que me possam tirar.
Disseram-me que te viram no Largo do Carmo em cima de uma chaimite, abraçada a um homem. Disseram-me que estavam ambos a fumar o mesmo cigarro. Nós costumávamos fumar o mesmo cigarro, à varanda, nas noites quentes de estio. Eu abraçava-te, a minha mão na tua cintura, a tua mão sobre a minha, o cheiro dos teus cabelos misturado com o do tabaco, o fumo a escapar-se por entre os teus dentes e a preencher de névoa a negridão do céu da nossa varanda. Eu de olhos pousados em ti, inebriado de ti, dos teus caracóis, do fio de ouro que te afagava o pescoço, do pingente onde brilhavam discretamente as nossas iniciais entrançadas. Eu perdido no teu perfil, no teu nariz pequenino, eu encontrado nas nossas mãos juntas na tua cintura.
Disseram-me que rias muito, que gritavas, que aplaudias, que ele te olhava com admiração, que se beijaram muitas vezes. Talvez um preso político, talvez um estudante, talvez o dono de um café. Ninguém soube dizer-me quem ele é. Não é que faça qualquer diferença que eu saiba quem ele é. Faz-me diferença é aquela porta muda e queda. E os teus brincos de filigrana em cima da cómoda do nosso quarto. Dizias muitas vezes que aqueles brincos eram a coisa mais valiosa que tinhas. Faz-me diferença o leite a azedar em cima da mesa, o teu avental pendurado atrás da porta, abanado pelo vento. Faz-me diferença os teus chinelos debaixo da nossa cama, pousados um sobre o outro, descalçados à pressa na última manhã em que te vi. E o frasco de perfume quase vazio no armário da casa de banho.
No Carmo já não está ninguém a gritar, a aplaudir e a rir muito. Já só se vêem militares. Nas poucas imagens que vi na televisão do café não apareceste. Esperava ver-te de cravo vermelho ao peito, ou preso na orelha, um cravo vermelho nas imagens a preto e branco que a televisão do café irradiava. Mas não, tudo a preto e branco, nada de cravos vermelhos presos na orelha.
Disseram-me que não voltas, que fugiste com ele. Mas tu não fugiste, eu sei. Tu nunca te deixaste prender. Dormíamos na mesma cama, mas tão separados quanto é possível que duas pessoas que não se amam estejam. Nunca gostaste do arroz que eu sempre fiz com tanto empenho. Sabia há muito que não poderias, portanto, amar-me. E eu sempre achei que o teu arroz sabia a arroz, que tinha o mesmo sabor dos demais. E não tinha.
Tantas coisas que eu achei sempre iguais às demais e não eram. Até aquela madrugada em que te esperei eu julguei ser como as demais. E não foi. Tu não voltaste e eu deixei-me afundar em copos de um vinho mau, de um vinho francamente mau. Esta espera não é como as demais, que tu não voltas. Disseram-me que não voltas e eu sei que não voltarás. Foste embora naquela risada, naquele grito, naquele aplauso, naquele cravo vermelho que eu em vão procurei nas imagens da televisão. Foste embora e eu não te vi ir, como nunca fui capaz de te ver enquanto estavas aqui.

© [m.m. botelho], ao som de Coma, de Yann Tiersen, do álbum Good Bye Lenin! OST [2003].

25.4.07

À tua espera [parte 2]

São duas da manhã e tu ainda não voltaste. Desliguei o fogão e comi algum arroz. Tens razão quando dizes que o meu arroz sabe sempre mal. No fundo, sabe a arroz, que todo o arroz sabe a arroz, até o teu.
Gostamos de disfarçar o sabor do que comemos com condimentos e refogados fortes. Gostamos de disfarçar os fedores com perfumes e essências florais. Gostamos de disfarçar o senão da bela com lindos vestidos.
Deixa-me comer este arroz desenxabido. Deixa-me descalçar os sapatos e cheirar os meus próprios pés. Deixa-me ver ao espelho as minhas rugas, a minha barba grande, o meu cabelo em desalinho, os meus dentes amarelecidos pelo tabaco. Enquanto espero por ti, não quero mais do a crueza da realidade que sou e em que me movo. Mas só enquanto espero por ti, porque sei que não tardarás a bater à porta.

[continua]

© [m.m. botelho]

24.4.07

À tua espera [parte 1]

Disseste que quando acabasses de limpar o 3.º esquerdo voltarias para casa. Fui adiantando o jantar, como me pediste. O arroz já está em papas.
Passa da uma da manhã. Estou sentado à mesa à tua espera. Bebi sozinho a garrafa de vinho que te deu a tua patroa do casarão do Largo das Rosas. Eu não teria a lata de oferecer um vinho destes a ninguém.
É curioso. As pessoas ricas acham sempre que os pobres não sabem apreciar o que é bom só porque nunca tiveram coisas boas. Enganam-se. Não sabemos o que é bom, de facto, porque nunca o tivemos, é verdade. Mas conhecemos o que é mau tão bem que sabemos que se algo é igual ao que sempre tivemos é porque não é bom.
Enfim, este vinho era mau; não terás grande pena de não o teres provado. Mas se a tua patroa do Largo das Rosas voltar a oferecer-te uma garrafa de vinho, ainda que seja igual a esta, aceita. Sempre me vai servindo de companhia para estas horas infinitas em que te espero.
Está uma pilha de louça na pia para lavar. Não a lavei, não mo pediste. Às vezes tenho vontade de te ajudar nas lides da casa, mas como nunca mo pediste, nunca o fiz. Não gosto de te contrariar. Assim podes continuar a dizer às tuas patroas e às tuas amigas que eu não faço nada a não ser que me peças.
Já somos casados há tanto tempo - há quanto tempo? - que continuamos a dizer o mesmo ainda que esse mesmo já não seja verdade. É sempre assim. Quando nos habituamos a ver os defeitos das outras pessoas nunca deixamos de os ver, ainda que eles deixem de existir. É por isso que há tanto tempo - há quanto tempo? - nos vemos do mesmo modo de cada vez que olhamos um para o outro.

[continua]

© [m.m. botelho]

12.4.07

Neurose

Deixa-me dizer-te isto de uma assentada, enquanto a escassa coragem que ainda me resta não se vai embora de uma vez e me deixa para sempre sufocar no que preciso desesperadamente de passar para as palavras.

[Inspiro.]

Faz-me um favor. Pára de falar que já não aguento mais as tuas palestras sobre os horários, os teus lamentos sobre os impostos, o teu choramingar quando não consegues vir-te. Não suporto mais que me expies quando vou levar o lixo à rua. Já te disse que não tenho nenhum caso com o vizinho da frente, nem com o vizinho do lado, nem com o filho da merceeira. É verdade que são todos bem mais bonitos do que tu, mas os homens não se querem bonitos, ou se querem muito, ou se querem pouco, independentemente da beleza. Não tenho culpa de que não tenhas sido o primeiro homem com quem vivi e de que a esse não chegues sequer aos calcanhares nas questões da cama. Já te disse que o teu pénis não te parece sempre pequeno porque passas o dia inteiro a olhar para ele. Eu olho-o pouco e a mim também me parece sempre pequeno, sempre pequeno demais para aquilo que eu preciso, que o meu corpo precisa, porque eu preciso de mais, muito mais, de um pénis, de sonhar, de ter, de comer, de conhecer. Preciso de mais do que o que tu podes dar-me sempre atafulhado nas tuas paranóias, sempre a cismar em vinganças e esquemas e planos A, B e C. Oxalá o filho da merceeira me cobiçasse como eu o cobiço a ele quando te tenho no meio das minhas pernas a resfolegar. Oxalá ele me levasse daqui, para bem longe de ti e das tuas obssessões. Pensando melhor, o filho da merceeira também vive aqui no bairro, com ele não iria muito longe, aposto que onde ele mora ainda se sente o cheiro imundo dos teus pés, ainda se vê a porcaria que tens nas unhas. Não, esse longe que ele me pode dar não me chega. Amanhã não vou trabalhar. Meto-me no carro, faço-me à estrada, andar por aí. Vou para a cama com o primeiro homem que me aparecer pela frente e que meça mais de um metro e oitenta. Nunca fui para a cama com um homem alto e sempre achei que os homens altos, por estarem mais perto das nuvens, seriam capazes de sonhar. Amanhã vou para a cama com um homem alto e, se tiver sorte, ele há-de apaixonar-se por mim. Há-de ficar a pensar em mim, levar-me consigo, dentro da cabeça, eu bem agachada dentro da sua cabeça, para longe daqui, bem longe de ti, do teu fedor, do teu pénis ridículo, da tua neurose, desta deprimência de vida que tenho ao teu lado. E, se calhar, ainda te digo que te pus os cornos. Talvez me mates de uma vez e me poupes ao tormento de passar o resto da vida contigo.

[Expiro.]

© [m.m. botelho]

10.4.07

Textos pequeninos

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | manuscrito | abril de 2007

Os textos pequeninos apresentam a grande virtude de pouparem as palavras.
Textos espartilhados em poucas linhas são a melhor forma de expressar. Dizer o que é, deixar outro tanto por dizer.
Não gosto de gastar as palavras nem de fazer dos significados solas rotas de sapatos velhos.
Poupar as palavras é poupar-me o coração à mágoa dos trilhos que nele rasgaram já tantos caracteres.

© [m.m. botelho], ao som de Lonely Carousel, de Rodrigo Leão, na voz de Beth Gibbons, do álbum Cinema [2004].



It's a look / This game we play / We can't escape / We have to attend / It's life you see
When I have tried to amuse myself / To celebrate the fun fair / The pleasures I seek / Are far too discreet for me
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this lonely carousel / And all these words / They mean nothing at all / Just a cruel remedy / A strange tragedy / Of what will be
After I tried / To discover the answers to why / To look for a meaning / Inside of this dreaming I had
And words that I've said / Are spinning 'round / Would sing alone inside my head / Nothing will change / It's always the same / Please make it stop
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this lonely carousel / And all these words / They mean nothing at all / Just a cruel remedy / A strange tragedy / Of what will be
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this carousel
.

28.3.07

De tudo e em tudo

© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | março de 2007
antigo palácio dos condes de alvor [museu nacional de arte antiga]

Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
à superfície do tempo.


Ruy Belo [1933-1978] | Todos os Poemas | Assírio & Alvim | 2004



O melhor reside no que julgamos, imersos na nossa-tão-nossa ignorância, serem as coisas infinitamente banais. Nada é banal aos olhos de quem sabe e quer ver.
Eu não espero nem busco menos do que a revelação de tudo em tudo, da primeira à última palavra.

© [m.m. botelho], ao som de Asas, de Adriana Calcanhotto, do álbum Marítimo [1998].

Suas asas amor quem deu fui eu / Para ver você conquistar o céu / Observe tudo em baixo ser menor do que você / Como tudo é / E enquanto arde a coragem dos desejos seus, / Sem véus / Abra seus poro e papilas e pupila / À luz da manhã / E muito acima de Ipanema, tão pequena, / Tão vã / Viva o prazer, o som, o estrondo de uma onda / Na arrebentação / Enquanto eu piro à sua espera na esfera / do chão.

Suas asas amor quem deu fui eu / Para ver você conquistar o céu / Observe tudo em baixo ser menor do que você / Como tudo é / E enquanto arde a coragem dos desejos, seus, / Proteus. / Abra seus poro e papilas e pupilas / À luz da manhã / E muito acima de Ipanema, tão pequena, / Tão vã / Viva o prazer, o som, o estrondo de uma onda / Na arrebentação / Enquanto eu piro à sua espera na esfera / do chão.

22.3.07

Dizem que a Primavera chegou

Descansarei no dia em que puder dizer-me com os teus lábios. Ser poesia declamada entre os teus dentinhos alvos, pequeninos, mordicantes. Um verso sumido escorrendo pelos teus lábios, flores de Março a desabrochar.

Dizem que a Primavera chegou. Cantam-me de ti ao ouvido as crianças que brincam no parque. À noitinha, também querem descansar no teu regaço de relva, adormecer no embalo da tua voz. E os meus e os seus cabelos serão dédalos percorridos pelos teus dedos enquanto o sono tomar conta de nós.

© [m.m. botelho]

16.3.07

16 de Março, outra vez

© m.m. botelho | fotografia | auto-retrato | 2006


Todas as coisas têm um começo e, provavelmente, um fim. Todas as viagens têm um ponto de partida e, à partida, um ponto de chegada. Não sei, ainda não sei, qual seja esse ponto. Vou aportando por aí, pelos sítios onde vou passando. Pernoito onde calha, se calhar. A todo o instante é sempre tempo de ir. E eu vou.

Um ano de Viagens Interditas.
Todos os lugares continuam longe daqui.

© [m.m. botelho]

11.3.07

Os dias do chá

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | março de 2007

Eu bebi, sem cerimónia, o chá...
um destes dias, deixaste-me a sonhar por ti.

© [m.m. botelho], ao som dos GNR, outra vez. E muitas vezes, muitas vezes, o carro a rodar estrada fora, e eu às pancadinhas no volante a gritar a plenos pulmões que «quero ve-e-er Portugal na CEE». Recordo-me desses dias inconsequentes ao som dos GNR. Aqui e agora a relembrar Ana Lee, do álbum Rock In Rio Douro [1992]. Alguém me disse ainda ontem: «those were the days». Então sonhava com agora; agora o então parece um sonho. Era eu uma «princesinha», num trono de jasmim.

Eu bebi, sem cerimónia, o chá
à sombra uma banheira decorada,
num lago de shampoo.

E dormi, como uma pedra que mata,
senti as nossas vidas separadas,
aquário de ostras cru.

Ana Lee, Ana Lee
meu lótus azul,
ópio do povo,
jaguar perfumado,
tigre de papel.
Ana Lee, Ana Lee
no lótus azul,
nada de novo
poente queimado,
triângulo dourado.

Se ela se põe de «vestidinha»
parece logo uma princesinha
num trono de jasmim.

E ao ver-me, embora em verde tónico,
no país onde fumam as cigarras,
deixei-a a sonhar por mim.

São unhas que gravam
as unhas que cravam
na pele em mim
Ana Lee
são mãos que plantam
são arroz chao chao.

24.2.07

Um sábado assim

Um sábado assim, perdido entre a folhagem tímida da Primavera que ainda não chegou mas já enviou convite. Um sábado assim, achado entre o espaço que medeia o meu corpo e o teu.
Um sábado assim é de memória. Já não me lembrava de como um dia que nunca vivêmos pode, afinal, ser tudo aquilo que a vida inteira imaginámos estar a viver. Um sábado assim não é prenúncio de nada e, contudo, consumação de tudo. É certeza de que há lugares longe que moram dentro de nós. E que estiveram sempre aqui, mesmo debaixo do nariz, tão perto como a brevíssima distância entre as letras do teu nome quando mordido pelo meu beijo.

© [m.m. botelho]

20.2.07

Saudades do futuro

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | agosto de 2006
antigo palácio dos condes de alvos [museu nacional de arte antiga]


Coisa curiosa esta, a de sentir saudades do futuro. Há [as tuas] palavras que me impregnam de coragem para que assim deseje. Este é o tempo das saudades de um futuro que eu ainda não sei o que guarda para mim, assim, tão secretamente. Será esse o tempo de percorrermos todos os lugares onde ainda não me levaste?

Que seja um futuro sem projectos, a acontecer a cada instante que passe e em cada lugar onde esteja, um pouco menos volátil do que um amontoado de sonhos que depressa se dissipam e se transformam em mágoas. Um futuro independente de ideais, que os de outrora todos falharam.

Tenho saudades do que serei, do que seremos por nós mesmos, amanhã.

© [m.m. botelho], ao som de Les Jours Tristes, de Yann Tiersen, na voz de Neil Hannon, do álbum L'Absente [2001].



It's hard, / hard not to sit on your hands, / burry your head in the sand, / hard not to make other plans / and claim that you've done all you can, / all alone / and life / must go on.
It's hard, / hard to stand up for what's right / and bring home the bacon each night, / hard not to break down and cry, / when every ideal that you tried / has been wrong. / But you must / carry on.
It's hard, / but you know it's worth the fight, / cause you know you've got the truth on your side, / when the accusations fly. / Hold tight! / Don't be afraid of what they'll say. / Who cares what cowards think, anyway? / They will understand one day, / one day.
It's hard, / hard when you're here all alone / and everyone else's gone home. / Harder to know right from wrong / when all objectivity's gone / and it's gone. / But you still / carry on.
'Cause you, / you are the only one left / and you've got to clean up this mess. / You know you'll end up like the rest / Bitter and twisted - unless / you stay strong / and you carry on.
It's hard, / but you know it's worth the fight, / 'cause you know you've got the truth on your side, / when the accusations fly. / Hold tight! / Don't be afraid of what they'll say. / Who cares what cowards think, anyway? / They will understand one day, / one day.

16.2.07

Velha

Sally Mann [n. 1951] | candy cigarette [1991]
Sally Mann [n. 1951] | fotografia | «candy cigarette» | 1991

Com o tempo, foi ganhando o hábito de não se emocionar com nada. Viveu sempre velha, muito velha. A pele lívida. Os olhos morrediços. O rosto seríceo. Por dentro, a alma encarquilhada. No peito, tantos anos depois, o coração ainda partido. Esmigalhado pelos dedos aduncos das horas.

© [m.m. botelho]

2.2.07

O que prometi

Qualquer dia, quando for capaz, faço o que prometi: deixo de te amar e passo o resto da vida a dobrar todas as esquinas o mais depressa que puder, fugindo de mim. Qualquer dia hei-de ser capaz e hei-de fazer o que prometi. Nem eu nem tu sabemos, ainda, de tudo quanto eu sou capaz.

«[...] when you're too in love to let it go,
but if you never try then you'll never know
just what you're worth [...]»

© [m.m. botelho] | excerto de Fix You, dos Coldplay, do álbum X&Y [2005].

30.1.07

Se ainda fôssemos crianças

Se ainda fôssemos crianças
provavelmente
não me convidarias
para a festa dos teus anos
e eu
já não teria oportunidade de exibir
o meu vestidinho novo,
que a Mãe fez
à mão com todo o carinho.

Como já não somos crianças
impende agora sobre ti a obrigação
de te esmerares nessa vingança
que tanto desejas.
Vê lá não caias na tentação
fácil e prosaica
de te agarrares a uma tesoura
e aproveitares que eu esteja de costas
para me rasgares
o vestido.

Já és um homenzinho,
hás-de lembrar-te de algo melhor.

Porém, fica ciente de que o meu coração
é bem mais difícil de cortar
do que a fibra dos tecidos.

© [m.m. botelho]

27.1.07

Uma certeza

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | c.c.b. | janeiro de 2007


Diz-mo a memória e o calendário: já lá vão quatro anos.
E a vida continuou, mesmo depois disso.

Embora agora não haja ninguém em casa à minha espera
[embora agora tu não estejas em casa à minha espera]
decerto haverá ainda muitas partidas e igual número de chegadas.
Todos os dias são longas viagens que tenho de fazer
[ora para fora, ora por dentro]
e todos os dias são dias de regresso
[agora]
para o silêncio das paredes vazias.

Quatro anos
[e tantas e inimagináveis viagens]
depois, uma certeza: ainda que perca todos os mapas, bússolas e pontos de referência, nada há por que temer; haverá sempre uma luz
[a minha]
a guiar-me até casa.
E ainda que só com ela possa contar, sei, pelo menos, que poderei contar
[sempre]
com ela.

© [m.m. botelho], ao som de Fix You, dos Coldplay, do álbum X&Y [2005]. [Something, someone.]



When you try your best but you don't succeed / When you get what you want but not what you need / When you feel so tired but you can't sleep / Stuck in reverse
When the tears come streaming down your face / When you lose something you can't replace / When you love someone but it goes to waste / Could it be worse?
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.
And high up above or down below / When you're too in love to let it go / But if you never try then you'll never know / Just what you're worth
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.
Tears stream down your face / When you lose something you cannot replace / Tears stream down your face / And I...
Tears stream down your face / I promise you that I'll learn from my mistakes / Tears stream down your face / And I...
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.

23.1.07

Cadência imperfeita

Quedou-se assim, suspensa entre uma nota musical e a outra, entre um acorde rasgado e a derradeira inspiração profunda do guitarrista. Mirou-lhe detalhadamente os óculos de massa escura que lhe delineavam os olhos muito para além das olheiras. Sentiu-se cortada e recortada em cada volteio dos dedos compridos, das «unhas de marfim» que cativaram a rainha de Inglaterra. Quis tocar-lhes para saber como tocam na carne as unhas que fazem estremecer o aço das cordas da guitarra. «Portuguesa», acrescentou o avô, «guitarra portuguesa», muito cioso da singularidade do seu país de navegadores que também criam instrumentos.
Deixou-se prender por instantes no corpo debruçado sobre a caixa de ressonância, nos cabelos grisalhos incorformados, nas pernas afastadas do guitarrista. Quando soou o acorde final de «Mar Goês», ergueu a cabeça e viu-lhe nas mãos não a guitarra, a tal «guitarra portuguesa», mas sim o seu coração, sangrando, retalhado pelo aço, tatuado pelas «unhas de marfim».
Percebeu então. Não fora música que escutara, mas os seus próprios lamentos, afinal, a cadência imperfeita de uma vida inteira, a sua, suspensa em cada uma das inspirações de todos quantos por ela passavam.

© [m.m. botelho]

11.1.07

Seis meses inteiros

Lavou as mãos com esmero, o mesmo esmero de todas as vezes. Durante largos segundos deixou a água cair sobre as pequeninas manchas com que a idade lhe tatuara a pele morena. As unhas cortadas delicadamente, rentes aos dedos, sempre, sempre limpas. Nunca soubemos porquê, tinha uma predilecção por sabonetes de glicerina vermelha. Preparou o creme branco que espalhou no rosto com o pincel quase tão velho quanto eu e fez a barba. Com a mão esquerda, esforçou-se por aplanar os sulcos do rosto mas, como quase sempre, cortou-se ligeiramente. Maldizia as lâminas de plástico, mas continuava a preferi-las às máquinas. Deixou alguns pêlos brancos a assomarem-se nas patilhas delineadas. Antes de sair, passou pelo barbeiro e cortou o cabelo. Afinal, era vaidoso. Ninguém sabia.

Um dia, um destes dias, despediu-se de nós em voz baixa, quase sumida. Ninguém deu por nada. Fechou a porta e foi-se embora. Os seus pequeninos olhos verdes deixaram-nos na boca um sabor de «até já». Fechou a porta e partiu. Já se contam seis meses inteiros.

Sabes, fazes-nos falta...
Mais do que alguma vez soubemos imaginar.


© [m.m. botelho]

In memoriam José Francisco Botelho [1930-2006]

10.1.07

Ser amor em maré cheia

© [m.m. botelho] | fotografia | janeiro de 2007

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.


Joaquim Pessoa [n. 1948] | Cem Sonetos Portugueses | selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria | Terramar | 2002



O que é bastante nunca basta. E o que basta nunca é o bastante para nos deixarmos ficar. Como as vagas do mar, ansiamos sempre por beijar a areia, nem que seja só mais uma vez...
Haveremos de ir e voltar. Ir e voltar. Ir e voltar... num nunca acabar de partidas e regressos, em cada um dos dias de toda a nossa vida.

© [m.m. botelho], ao som de Mar Goês, de e por Carlos Paredes, do álbum Canção Para Titi. Os Inéditos 1993 [2000], suspensa em cada uma das inspirações do guitarrista.

2.1.07

«... tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora.»

© [m.m. botelho] | fotografia | porto [foz] | janeiro de 2007

Todas as coisas têm o seu tempo e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora.
Há tempo para nascer e tempo para morrer;
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou;
tempo para matar e tempo para dar vida;
tempo para destruir e tempo para edificar;
tempo para chorar e tempo para rir;
tempo para prantear e tempo para dançar;
tempo para espalhar pedras e tempo para as ajuntar;
tempo para dar abraços e tempo para se afastar deles;
tempo para ganhar e tempo para perder;
tempo para guardar e tempo para deitar fora;
tempo para rasgar e tempo para coser;
tempo para calar e tempo para falar;
tempo para amar e tempo para odiar;
tempo para a guerra e tempo para a paz.


Bíblia Sagrada | Eclesiastes 3, 1-8


Um ano inteiro. Um ano inteiro novinho em folha.
Muitas páginas [ainda] imaculadas nesta agenda em que os dias [ainda] não passam de números. Tantas, tantas páginas em branco para escrever!
E uma vida [ainda] inteira à qual dar sentido.

© [m.m. botelho]