18.11.07

Pronome possessivo

Estava para ali a olhar para esta página em branco, para ali a pensar no que haveria de escrever, se é que haveria de escrever alguma coisa. Tinha acabado de pousar o copo, bebericara um pouco de água quando nisto bateram à porta. Do lado de lá do intercomunicador perguntaram se, apesar da hora tardia, me importava de abrir e deixar entrar. Disse que não me importava. As horas estão presas dentro dos relógios, a cada segundo que passa os ponteiros fazem-lhes cócegas na barriga, como aos bebés que dormem o dia inteiro e a quem nada importa a não ser que nunca lhes desapareçam da vista as grades do berço. As horas estão presas dentro dos relógios, dizia, por isso «Façam o favor de entrar, não se acanhem. Façam de conta que a casa é vossa».
Perguntei-lhes depois o que queriam, mas afinal não queriam nada de concreto, apenas entrar, sentar-se um pouco no par de cadeiras que tinha diante de mim e ficar a olhar para o tecto, para a janela, para as aguarelas que mancham a parede. Ofereci-lhes água, que mais não tinha, «Não se preocupe que bebemos pelo mesmo copo. Não queremos dar trabalho e certamente quando chegámos estava a meio de qualquer coisa». Respondi que mesmo quando não estamos a fazer nada estamos sempre a fazer alguma coisa, porque nada já é alguma coisa, não é? «Pois, realmente, é».
Olharam-me com ar de comiseração por mim e recostaram-se entre os braços da cadeira. Perguntei-lhes se se importavam que continuasse a olhar para a página em branco, a ver se, com a sua presença, me saía alguma coisa para encher a folha, «Não, claro que não nos importamos. Continue para aí a mirar a palidez do papel e não cuide de nós, que nós por cá nos arranjamos».
Algum tempo depois saiu-me uma palavrinha ou duas e comecei a escrevê-las. A tinta preencheu meia linha da folha. À minha frente, «Ai, que se faz tarde! É melhor irmos andando que ainda adormecemos aqui». Levantei-me, abri a porta e desejei-lhes boa noite. Saíram em silêncio, sorrindo à passagem por mim.
Depois de fechar a porta ouvi comentar que lá fora estava frio, «Agora sim, já parece Inverno. Este ano praticamente não tivemos Outono.», os passos a afastarem-se a as vozes a ficarem cada vez mais sumidas, cada vez mais sumidas, até que deixei de as ouvir.
Voltei para a secretária e pus-me a olhar para a folha agora já não totalmente em branco, apenas com uns rabiscos de tinta e li o que escrevera. E não me apeteceu escrever mais nada, nem sequer reler o que havia escrito, porque o tecto pareceu-me bem mais interessante e igualmente imaculado. E quedei-me para ali a olhar para os fios do candeeiro que o esventravam e concluí que já eram horas de me ir deitar. Ando a dormir mal porque nunca me dá o sono e eu não me obrigo a ir para a cama. Esta noite posso obrigar-me a ir para a cama mais cedo e mesmo que não durma vou ficar por ali a olhar para o tecto, afundando os olhos no escuro.
Mesmo antes de adormecer, lembrei-me do que escrevera no papel e de como não me ocorreu mais nada nem poderia. No canto da folha escrevera a data, um pouco mais abaixo escrevera o teu nome, imediatamente a seguir a um pronome possessivo que não faz qualquer sentido estar ali. O teu nome não condiz com aquele pronome possessivo e por isso o discurso interrompeu-se. Na verdade, o teu nome não condiz com folhas brancas, nem com a tinta que sai da minha caneta nem com nada do que tenho espalhado por aqui dentro da cabeça e que não me deixa dormir. As visitas tardias foram-se embora quando leram escrito na minha melhor caligrafia, no máximo do meu esmero, o teu nome. A seguir à data o teu nome e depois do teu nome mais nada, nem sono nem coisa nenhuma. Resta o espesso do carvão da noite que inunda os meus olhos no meu quarto escuro.
Se me baterem à porta já não me levanto. Quero ficar aqui a pensar nas questões gramaticais dos pronomes possessivos antes dos nomes e nos nomes a seguir às datas. Estamos presos como as horas dentro dos relógios, agora percebo isso e não sei se gosto. O sono há-de vir e amanhã rasgo o papel e começo tudo de novo. Alguma coisa há-de vir à ideia. Não sei quem esteve cá, sei que entraram e saíram e que lá fora faz frio. O sono há-de vir e há-de apagar o teu nome de dentro de mim como a chama se apaga nas velas, queimando-o, juntamente com todos os pronomes possessivos e todas as datas e as minhas insónias.
Continuará a fazer frio lá fora e isso é tudo o importa. Afinal de contas, «Até parece que estamos no Inverno, não parece?», pois parece, «Este ano nem tivemos Outono!», tivemos sim, mas nem demos por ela, «Pois, realmente, não demos por ela, não».

© [m.m. botelho]