16.1.08

Slow motion

Quando me perguntaste se queria café, chá ou um whisky, palavra de honra que o que me apetecia mesmo era o chá, mas acabei por optar pelo whisky porque julguei que, quem sabe, um pouco de álcool nas veias aumentasse a velocidade das coisas entre nós. Tudo é lento, tudo é sempre tão lento entre nós que às vezes nem sei a quantas ando, quanto tempo passou desde que cheguei ou desde que me fui embora. Não é que quantificar os minutos seja importante, mas é sempre aconselhável o domínio desse elemento constantemente presente na vida de toda a gente.
Ainda me lembro de que, no início das nossas conversas, achávamos ambos que as horas eram sempre escassas, que tanto havia ficado por dizer, que era absolutamente imperioso e essencial repetirmos o encontro. Como é possível, então, que de lá para cá, o correr das coisas se tenha tornado tão penoso para ambos que damos por nós a suspirar pelo dia seguinte?
No fundo, sucedeu - e isto é apenas possível, apenas uma teoria minha, elaborada a partir do (meu) senso comum, sem qualquer sustentação científica ou outra - que

nós ficámos demasiado acelerados para o tempo do mundo.

Quisemos tudo ao mesmo tempo. Chorar, rir, ver, ouvir, sonhar, concretizar, acreditar e sentir. E nada disto pode fazer-se em simultâneo a não ser que estejamos dispostos a deixar para trás muitas outras coisas. E a verdade, a inteira, nua e crua verdade é que nem tu, nem eu estivemos alguma vez dispostos a deixar para trás fosse o que fosse. E por isso fomos arrastando as coisas connosco, tanta tralha às costas, até ao momento em que se tornou insustentável prosseguir caminho com tamanha bagagem. Foi então que começámos a fazer pausas, a pedir «tempo», como se o tempo, lá porque estávamos separados, corresse mais devagar.
Fomos ingénuos, na altura, ao pensarmos que tudo se resolveria caso estivéssemos um pouco afastados, caso conseguíssemos organizar as nossas vidas e logo nós, que éramos sempre tão organizadinhos, nós, que tínhamos tudo sob controle excepto o que nos estava a acontecer.
Como era de esperar, o whisky não surtiu qualquer efeito e tudo continua insuportavelmente lento entre nós. E não será nenhuma bebida, nenhuma distância, nenhuma outra coisa senão a nossa vontade que há-de voltar a ter domínio sobre o que era nosso, sobre o que éramos nós. Mas para isso seria necessário que nós ainda fossemos possíveis e, como tu sabes, eu continuo com imensas coisas às costas, objectivos que egoisticamente delineei para mim, planos que desejo concretizar para meu simples bel-prazer, tudo coisas que não tenciono partilhar contigo nem com ninguém, logo, digamos que estou um pouco indisponível para que nós possamos acontecer outra vez.
Não me interessa por aí além saber se tu terias essa disponibilidade porque, a bem dizer, já pouco me interessa o que quer que seja que venha de ti. Por isso bebi o whisky de um só trago e acabei com a lentidão entre nós. Agora sim, que o copo está finalmente vazio, posso pagar a conta e sair. Por isso, por obséquio, podes dizer-me

quanto é?

© [m.m. botelho], ao som de Foolish Love, de Rufus Wainwright, do álbum homónimo [1998], aqui ao vivo.



I don't want to hold you and feel so helpless / I don't want to smell you and lose my senses / and smile in slow motion / with eyes in love
I twist like a corkscrew / the sweetness rising / I drink from the bottle, weeping / why won't you last? / Why can't you last?
so I will walk without care / beat my snare / look like a man who means business / go to all the poshest places / with their familiar faces / terminate all signs of weakness
oh, all for the sake of a foolish love / I will take my coffee black / never snack / hang with the wolves who are sheepish / flow through the veins of town / always frown / me and my mistress, the princess / oh, all for the sake of a foolish love
So the day noah's ark floats down park / my eyes will be simply glazed over / or better yet / I'll wear shades on sunless days / and when the sun's out, i'll stay in and slumber / oh, all for the sake of a foolish love / all for the sake of a foolish love
'cause I don't want to hold you and feel so helpless / I don't want to smell you and lose my senses / and smile in slow motion / with eyes in love

14.1.08

Absolutamente

© [m.m. botelho] | fotografia | janeiro de 2008

Mirou-a de soslaio e o olhar prendeu-se-lhe outra vez, como todas as vezes, na dobra que o tecido do casaco preto fazia no cotovelo. Foi escorrendo, placidamente, pelo braço até chegar ao pulso, depois à mão, tão firme e tão delicada, as unhas sempre tão bem aparadas, tão limpas, tão sóbrias, como convém às pessoas sérias. E ali ficou preso, inteiramente cativo daquelas mãos namoriscando o pacotinho de açúcar, depois a chávena de chá, depois a colher, numa dança de roda em que todos os objectos daquela mesa queriam ser o seu par.
Sentiu vontade de lhe segurar as mãos e ficar ali muito tempo a observar com admiração cada gesto que ela desenhava com a ponta dos dedos. Mas não havia muito tempo, a noite já ia alta e ela tinha alguém à espera. Sustendo a respiração, disse-lhe apenas, ela já meio corpo fora do carro, os cabelos encobertos pelo nevoeiro da madrugada, os braços esticados e o casaco já sem dobras que lhe prendessem o olhar
- Já lhe disse que amo, absolutamente, as suas mãos?
Ela sorriu, sem se deter, e mergulhou definitivamente no breu, toda inteira, uma luva caída na calçada batida, numa noite fria de inverno e névoa.

© [m.m. botelho]