15.10.09

Pergunta

E se eu continuar em silêncio
durante outros tantos dias?


© [m.m. botelho]

12.7.09

rua de cedofeita

- Disseram-me que o mundo acaba amanhã.
Olhei para o relógio, para o quadradinho minúsculo que marca o dia
12
e disse
- 13 de Julho? O mundo vai acabar no dia 13 de Julho?
Que raio de dia para o mundo acabar.
- Pelos vistos vai, segundo estava a dizer um velho de barbas cinzentas na Rua de Cedofeita.
Ora porra,
pensei
13 de Julho é uma data perfeitamente banal, não me lembro de nada de importante que tenha acontecido noutros dias 13 de Julho que mereça que o mundo acabe por isso.
- Esse velho, tenho ideia de já o ter visto noutros sítios
lembrei-me e disse
- costuma andar com uma saca de plástico na mão, onde vai metendo porcarias que apanha nos caixotes do lixo. Esse velho não sabe sequer o que apanha e enfia para o saco, como há-de saber o que diz?

- O mundo não pode acabar amanhã porque eu ainda não li nenhum livro do Tolstoi
mas tenho julgo que uns três na estante da sala.
- Que se foda o Tolstoi, para que queres ler os livros dele? Achas que ficas mais culta por isso? A mim o que me preocupa é nunca ter lido o Marquês de Sade, a sua Juliette e tantos outros, livros escritos com sangue e esperma e suor e muita merda à mistura.
O Marquês de Sade era um porco de primeira.
- Não digas asneiras. Detesto quando dizes asneiras. Acho que fazes de propósito porque sabes que eu não gosto de palavrões.
A não ser porra, porque eu digo porra aí um milhão de vezes ao dia, mas porra não é asneira, é uma espécie de interjeição de espanto, de indignação e de desabafo, uma espécie de interjeição 3 em 1, pau para toda a obra.
- Não gostas porquê? Não me digas que o teu querido Tolstoi não escrevia asneiras.
- Sei lá se escrevia ou não, já te disse que nunca li nenhum livro do gajo.
- Qualquer palavra em russo soa a asneira, porra.
Então, se calhar, nem sequer gostas do que ele escreve. Tanta conversa, tanta coisa e nem sequer sabes se gostas.

- O que é que vais fazer amanhã? Já decidiste se sempre vais cortar o cabelo?
Ando há que tempos para cortar este cabelo enorme, mudar de penteado, quem sabe, pintá-lo. Há tantas possibilidades.
Quando se tem o cabelo deste tamanho tudo é possível,
é o que dizem sempre os cabeleireiros.
- Sou capaz de ir cortar o cabelo, amanhã. O mundo acaba a que horas?
- Não sei, o raio do velho não disse a hora, só disse o dia. Mas não fiques triste, pode ser que seja só à tarde e ainda dê para cortares o cabelo.
- Mas amanhã que dia é? Olho outra vez para o relógio e vejo
SUN
- Amanhã é segunda-feira.
- À segunda-feira os cabeleireiros estão fechados,
então não posso cortar o cabelo.
O mundo vai acabar e eu com esta melena de leão das Áfricas, que raio de figurinhas para assistir ao fim do mundo
estou capaz de dizer um palavrão
amanhã é segunda-feira
porra.

© [m.m. botelho]

6.5.09

Negros hábitos I

Negros hábitos II

Negros hábitos III e último

18.4.09

remoinho

Onde vais?, perguntou-lhe, os pés cobertos de areia molhada, os olhos fixos na água que fazia remoinho na cova que escavara com os dedos.
Ainda não sei, não decidi. Mas que diferença faz, se não podes vir comigo?, respondeu, o nariz enfiado no mapa à sombra do chapéu, o suor a escorrer-lhe pela testa.
Sim, tens razão, mas não me lamento. Apesar de não gostar de aqui estar, habituei-me a isto e por aqui ficarei.
Então, fechou o mapa, tirou o chapéu, limpou o suor, olhou para o sol e sacudiu os pés. Depois deu grandes passadas em direcção às dunas e foi desaparecendo, até que o areal engoliu a última réstia da sua imagem.

Mesmo que o desejasse muito, não iria contigo. O meu coração é demasiado fraco para o teu fôlego, para a força das tuas pernas. Eu fico por aqui. Assim, sem adeus nem despedidas, apenas os olhos fixos na água em remoinho dentro de mim.

© [m.m. botelho]

17.2.09

Exame

Há dias em que nos sentimos um belo naco de merda.

São dias em que não sabemos propriamente o que andamos por cá a fazer, em que acusamos todo o tipo de carências e dúvidas e tudo o mais que aumente a miserabilidade da nossa existência. Dizem os entendidos que não passam de fases, pela própria natureza, portanto, passageiras, mas que, como as ondas do mar - analogia preferida dos que sobre isto discorrem - andam num permanente ir e voltar.
Pela minha parte vejo-as como carraças que se nos colam à pele, que nos sugam o sangue - uma boa analogia para a vontade de viver ou, pelo menos, de ser feliz -, que nos fazem sentir mais vulneráveis do que um estudante perante uma folha branca num exame escrito.
A vida, afinal de contas, é um exame escrito permanente, em que o que nos é pedido não passa sempre de um resumo do que outros fizeram, do que outros disseram que deve ser, do que outros destinaram para nós. E perante isto há dias em que eu fico suspensa, a caneta na mão, o ar a encher-me o peito enquanto aguardo que as ideias se dignem salvar-me do abismo para onde me inclino mas as ideias, essas putas que se deitam nas cabeças de tanta a gente, não me tomam a massa cinzenta. E ali fico eu, o peito eventualmente menos inchado a cada expiração, a folha cada vez mais branca, reluzente, ofuscante à minha frente. Ali fico eu, especada, muda, imóvel, frágil.
É nessas alturas que a vida parece um poço sem fim, escuro e húmido, de onde não consigo sair porque as paredes, cobertas de musgo, me fazem escorregar as mãos. O cheiro é pútrido, como o de todos os poços abandonados para onde, ao longo do tempo, os homens foram atirando o seu lixo, tudo o que não queriam, o que lhes sobrava, os estorvos. Há dias em que, mesmo no fundo do poço, nos desviamos, mas há dias em que não conseguimos evitar sermos soterrados pelos escolhos.

É precisamente nesses dias que nos sentimos um belo naco de merda.

Ainda fiquei a olhar durante uns tempos para aquelas letras desenhadas naquela folha branca. Sentia-lhes o cheiro a desespero no desenho uniforme. Dobrei o papel e voltei a metê-lo no envelope, que guardei dentro de uma gaveta do móvel da sala. Olhei pela janela. O vento rugia, as folhas desprendiam-se das árvores para encher os esgotos, o dia estava escuro. «Mau tempo para um funeral», pensei. Depois, enfiei-me dentro da gabardina preta e pus-me a caminho do cemitério. Foi então que a chuva desatou a bater as vidraças com raiva.

© [m.m. botelho]

15.1.09

Tu não existes

Deixa-me pensar que tu não existes. Tudo parece - não sei se chega a ser, mas parece - muito mais fácil quando tu não estás dentro da minha cabeça, debaixo da minha pele, na minha expiração. Deixa-me pensar que tu não existes para mim, ainda que existas para lá de mim. Um pouco como o azul dos céus que não existe quando não o olho, um pouco como o frio que não sinto quando outros braços me abraçam.

Tu não existes, eu não existo e nós nunca fomos se a minha memória te apagar e não mais for possível misturar o meu corpo com o teu, o meu cheiro com o teu, as nossas salivas, as nossas línguas quentes e húmidas. Tu não existes, eu não existo e nós nunca fomos se nós não quisermos.

© [m.m. botelho]

4.1.09

Outra vez Janeiro

Entraste, pé ante pé, na grande sala. Eu dormia no sofá, coberta com uma manta - já não me lembro de que cor. Tinha o rosto meio iluminado pelo colorido intermitente das luzes da árvore de Natal, o braço direito pendente, roçando o tapete, os cabelos sobre a testa e os olhos, despenteados. Eu pressenti a tua entrada, mas deixei-me ficar mergulhada na sensação daquele despertar incompleto. Ouvia os teus passos, o ranger das portadas a abrirem-se, o som cada vez mais nítido do arrulhar dos pombos lá fora.
Abeiraste-te de mim e compuseste a manta, seguraste o meu braço, afastaste os cabelos do meu rosto. Depois disseste, muito baixinho - mal te ouvi - que o Natal já tinha passado, que o ano já tinha acabado, que já era Janeiro. Eu dormira todos aqueles dias seguidos, as horas engatadas umas nas outras como uma corrente que me prendia ao sono.

- Já é Janeiro.

disseste, muito baixinho - mal te ouvi.

Não sei porque continua a tua voz a despertar-me agora que a sala continua grande, mas já sem árvore de Natal, sem luzes coloridas intermitentes, as portadas sempre fechadas, o som do arrulhar dos pombos demasiado distante para que o pressinta. Talvez seja porque é outra vez Janeiro. Talvez seja porque as horas continuam engatadas umas nas outras como uma corrente que me prende a ti.

© [m.m. botelho]