30.1.07

Se ainda fôssemos crianças

Se ainda fôssemos crianças
provavelmente
não me convidarias
para a festa dos teus anos
e eu
já não teria oportunidade de exibir
o meu vestidinho novo,
que a Mãe fez
à mão com todo o carinho.

Como já não somos crianças
impende agora sobre ti a obrigação
de te esmerares nessa vingança
que tanto desejas.
Vê lá não caias na tentação
fácil e prosaica
de te agarrares a uma tesoura
e aproveitares que eu esteja de costas
para me rasgares
o vestido.

Já és um homenzinho,
hás-de lembrar-te de algo melhor.

Porém, fica ciente de que o meu coração
é bem mais difícil de cortar
do que a fibra dos tecidos.

© [m.m. botelho]

27.1.07

Uma certeza

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | lisboa | c.c.b. | janeiro de 2007


Diz-mo a memória e o calendário: já lá vão quatro anos.
E a vida continuou, mesmo depois disso.

Embora agora não haja ninguém em casa à minha espera
[embora agora tu não estejas em casa à minha espera]
decerto haverá ainda muitas partidas e igual número de chegadas.
Todos os dias são longas viagens que tenho de fazer
[ora para fora, ora por dentro]
e todos os dias são dias de regresso
[agora]
para o silêncio das paredes vazias.

Quatro anos
[e tantas e inimagináveis viagens]
depois, uma certeza: ainda que perca todos os mapas, bússolas e pontos de referência, nada há por que temer; haverá sempre uma luz
[a minha]
a guiar-me até casa.
E ainda que só com ela possa contar, sei, pelo menos, que poderei contar
[sempre]
com ela.

© [m.m. botelho], ao som de Fix You, dos Coldplay, do álbum X&Y [2005]. [Something, someone.]



When you try your best but you don't succeed / When you get what you want but not what you need / When you feel so tired but you can't sleep / Stuck in reverse
When the tears come streaming down your face / When you lose something you can't replace / When you love someone but it goes to waste / Could it be worse?
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.
And high up above or down below / When you're too in love to let it go / But if you never try then you'll never know / Just what you're worth
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.
Tears stream down your face / When you lose something you cannot replace / Tears stream down your face / And I...
Tears stream down your face / I promise you that I'll learn from my mistakes / Tears stream down your face / And I...
Lights will guide you home / And ignite your bones / And I will try to fix you.

23.1.07

Cadência imperfeita

Quedou-se assim, suspensa entre uma nota musical e a outra, entre um acorde rasgado e a derradeira inspiração profunda do guitarrista. Mirou-lhe detalhadamente os óculos de massa escura que lhe delineavam os olhos muito para além das olheiras. Sentiu-se cortada e recortada em cada volteio dos dedos compridos, das «unhas de marfim» que cativaram a rainha de Inglaterra. Quis tocar-lhes para saber como tocam na carne as unhas que fazem estremecer o aço das cordas da guitarra. «Portuguesa», acrescentou o avô, «guitarra portuguesa», muito cioso da singularidade do seu país de navegadores que também criam instrumentos.
Deixou-se prender por instantes no corpo debruçado sobre a caixa de ressonância, nos cabelos grisalhos incorformados, nas pernas afastadas do guitarrista. Quando soou o acorde final de «Mar Goês», ergueu a cabeça e viu-lhe nas mãos não a guitarra, a tal «guitarra portuguesa», mas sim o seu coração, sangrando, retalhado pelo aço, tatuado pelas «unhas de marfim».
Percebeu então. Não fora música que escutara, mas os seus próprios lamentos, afinal, a cadência imperfeita de uma vida inteira, a sua, suspensa em cada uma das inspirações de todos quantos por ela passavam.

© [m.m. botelho]

11.1.07

Seis meses inteiros

Lavou as mãos com esmero, o mesmo esmero de todas as vezes. Durante largos segundos deixou a água cair sobre as pequeninas manchas com que a idade lhe tatuara a pele morena. As unhas cortadas delicadamente, rentes aos dedos, sempre, sempre limpas. Nunca soubemos porquê, tinha uma predilecção por sabonetes de glicerina vermelha. Preparou o creme branco que espalhou no rosto com o pincel quase tão velho quanto eu e fez a barba. Com a mão esquerda, esforçou-se por aplanar os sulcos do rosto mas, como quase sempre, cortou-se ligeiramente. Maldizia as lâminas de plástico, mas continuava a preferi-las às máquinas. Deixou alguns pêlos brancos a assomarem-se nas patilhas delineadas. Antes de sair, passou pelo barbeiro e cortou o cabelo. Afinal, era vaidoso. Ninguém sabia.

Um dia, um destes dias, despediu-se de nós em voz baixa, quase sumida. Ninguém deu por nada. Fechou a porta e foi-se embora. Os seus pequeninos olhos verdes deixaram-nos na boca um sabor de «até já». Fechou a porta e partiu. Já se contam seis meses inteiros.

Sabes, fazes-nos falta...
Mais do que alguma vez soubemos imaginar.


© [m.m. botelho]

In memoriam José Francisco Botelho [1930-2006]

10.1.07

Ser amor em maré cheia

© [m.m. botelho] | fotografia | janeiro de 2007

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.


Joaquim Pessoa [n. 1948] | Cem Sonetos Portugueses | selecção, organização e introdução de José Fanha e José Jorge Letria | Terramar | 2002



O que é bastante nunca basta. E o que basta nunca é o bastante para nos deixarmos ficar. Como as vagas do mar, ansiamos sempre por beijar a areia, nem que seja só mais uma vez...
Haveremos de ir e voltar. Ir e voltar. Ir e voltar... num nunca acabar de partidas e regressos, em cada um dos dias de toda a nossa vida.

© [m.m. botelho], ao som de Mar Goês, de e por Carlos Paredes, do álbum Canção Para Titi. Os Inéditos 1993 [2000], suspensa em cada uma das inspirações do guitarrista.

2.1.07

«... tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora.»

© [m.m. botelho] | fotografia | porto [foz] | janeiro de 2007

Todas as coisas têm o seu tempo e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora.
Há tempo para nascer e tempo para morrer;
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou;
tempo para matar e tempo para dar vida;
tempo para destruir e tempo para edificar;
tempo para chorar e tempo para rir;
tempo para prantear e tempo para dançar;
tempo para espalhar pedras e tempo para as ajuntar;
tempo para dar abraços e tempo para se afastar deles;
tempo para ganhar e tempo para perder;
tempo para guardar e tempo para deitar fora;
tempo para rasgar e tempo para coser;
tempo para calar e tempo para falar;
tempo para amar e tempo para odiar;
tempo para a guerra e tempo para a paz.


Bíblia Sagrada | Eclesiastes 3, 1-8


Um ano inteiro. Um ano inteiro novinho em folha.
Muitas páginas [ainda] imaculadas nesta agenda em que os dias [ainda] não passam de números. Tantas, tantas páginas em branco para escrever!
E uma vida [ainda] inteira à qual dar sentido.

© [m.m. botelho]