24.11.08

Corrente de ar

Tu não vais a lugar nenhum. Foi assim, com esta frase, que tu tentaste impedir-me de sair. O tom era de sentença de morte, mas nunca vi um juiz bradar decisões em pijama, o cabelo desgrenhado, o jornal diário a escorrer-lhe da mão direita e a chávena de café a fumegar na esquerda. Eu nunca vi, mas de tribunais e juízes e sentenças conheço pouco e a acreditar na lentidão que atribuem aos processos se calhar até há quem durma nos tribunais e não tenha tempo de tomar banho e o pequeno-almoço antes de se pôr a cagar leis.
Eu ainda me detive durante uns minutos com a porta aberta, a mão húmida a segurar a mala, o sobretudo no braço, a olhar para ti na surpresa daquela tua afirmação. Parecias tão certo de que eu não iria a lado nenhum que, por momentos, até achei que era mesmo verdade, que eu não ia sair, que ia ficar ali, naquela sala fria e despida até que tu me desses ordem de liberdade.
Só passados uns bons minutos me dei conta de que tu não és juiz e, portanto, não cagas leis na minha vida e, assim sendo, era a mim e só a mim que cabia a decisão de transpor aquela linha que separava a entrada de casa do corredor sujo do prédio.
Esperei não sei quanto tempo – a mim pareceu-me muito tempo, mas eu nunca tive grande queda para a contabilidade – por mais uma palavra, por um gesto, por qualquer coisa de surpreendente que me prendesse, que me fizesse querer ficar, que mudasse a minha vontade de sair da tua vida ou da minha, já não sei, mas nem uma palavra, nem um gesto, nada de surpreendente.
Tive pena de ti, dos teus olhos afogados em duas profundas olheiras, do teu pijama enrugado e velho e dos teus dentes amarelos do café. Não sei o que é que os dias fizeram de ti, ou o que é que tu fizeste dos teus dias. O resultado visível só me desperta compaixão. Ainda agora, tenho pena de ti e temo que durante o resto da vida isto não mude e a única imagem que eu consiga guardar dentro da cabeça seja esta, a do teu desalinho e da tua autoridade vencida.
A verdade é que não mandas em mim, nunca mandaste. Apesar disso, tudo o que eu sempre quis foi que tu quisesses alguma coisa, nem que fosse mandar em mim, mas não, tu nunca quiseste nada para além daquela triste figura em que te apresentavas. Para ti, a casa era o mundo inteiro por dentro e por fora e ali não era preciso querer mais nada senão que eu dali não saísse.
Não chegava, não chegou. A manhã estava gélida, era Novembro, quase Dezembro e havia corrente de ar no prédio. Eu quis muito dizer-te que te cuidasses, mas a voz não me saía da garganta. Tudo o que consegui dizer-te foi o som mudo da porta a fechar-se atrás de mim. Enquanto percorria o corredor imaginei-te a perseguir-me repetindo tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum, tu não vais a lado nenhum até me convenceres a ficar, mas não. No corredor, apenas os meus passos e uma fria corrente de ar a perpassar a fazenda do meu casaco.

© [m.m. botelho], ao som de Far from me, de Nick Cave & The Bad Seeds, do álbum The Boatman's Call [1997].



for you dear, I was born / for you I was raised up / for you I've lived and for you I will die / for you I am dying now / you were my mad little lover / in a world where everybody fucks everybody else over / you who are so far from me / far from me way across some cold neurotic sea / far from me
I would talk to you of all matter of things / with a smile you would reply / then the sun would leave your pretty face / and you'd retreat from the front of your eyes / I keep hearing that you're doing your best / I hope your heart beats happy in your infant breast / you are so far from me / far from me / far from me
there is no knowledge but I know it / there's nothing to learn from that vacant voice / that sails to me across the line / from the ridiculous to the sublime / it's good to hear you're doing so well / but really can't you find somebody else that you can ring and tell / did you ever care for me? / were you ever there for me? / so far from me
you told me you'd stick by me / through the thick and through the thin / those were your very words / my fair-weather friend / you were my brave-hearted lover / at the first taste of trouble went running back to mother / so far from me / far from me / suspended in your bleak and fishless sea / far from me / far from me

31.10.08

O meu império

[m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | porto | outubro de 2008


Nunca gostei de chuva. Não foram poucas as vezes em que, na minha adolescência, apanhei o que se chamam «grandes molhas» à conta de teimar em recusar-me a usar chapéu-de-chuva. Tinha a mania de que se desejasse muito que não chovesse, não choveria.
Naquela altura eu queria ser livre, o mais leve possível, o mais desprendida do chão, do ar e das varetas dos chapéus-de-chuva que não tinham qualquer utilidade a não ser quando chovia. Naquela altura, eu ainda achava que era capaz de controlar o mundo ou, pelo menos, uma parte do mundo ou, vá lá, uma reduzida parte de uma insignificante vida que se movimentava num minúsculo mundo que era o meu império. Naquela altura, eu gostava de arriscar, de sair de manhã de casa a fazer apostas com a cor do céu, apostas pelas quais não tinha recompensa alguma quando ganhava, mas pelas quais arriscava orgulhosamente uma gripe quando perdia.
Eu costumava andar com os livros debaixo do braço, também eles batidos pela chuva quando ela caía, as folhas coladas que haveriam de encarquilhar-se quando secassem, as canetas a romperem-me os bolsos e a lapiseira de minas, a minha velhinha lapiseira de minas preta a furar-me o bolso de trás dos jeans enquanto caminhava.
Nos últimos dias de Outono eu tinha as mãos sempre frias, tão frias que nem sentia as pontas dos dedos. Não usar luvas era sinónimo de mais espaço nos bolsos do casaco para cigarros, isqueiros, walkmans, cassetes e outras coisas sem importância sem as quais na altura achava que não podia viver. As mãos enregelavam, era certo, mas o coração ficava mais quente ao som das canções das bandas que ao fim-de-semana nasciam nas garagens dos prédios dos amigos.
Todos os dias, ao final da manhã, eu fumava um cigarro debaixo da mesma árvore, mesmo quando chovia, mesmo quando estava frio. Os cigarros que fumei debaixo daquela árvore, no pátio do Liceu, foram os cigarros mais despreocupados da minha vida. Naquele tempo, eu não pensava sequer em nicotina, alcatrão, ou no mal que poderia fazer-me um maço de cigarros por dia.
Na verdade, na altura nada me fazia mal, eu não sentia frio, o mundo era ali, debaixo daquela árvore nos intervalos do Liceu, nas garagens aos fins-de-semana, junto às paredes , sob os beirais, nos dias de chuva. O mundo era onde eu estivesse. No meu mundo não era preciso usar chapéu-de-chuva, nem luvas, nem mochila. Eu mandava nas nuvens e aquela árvore do pátio do Liceu era só minha.

© [m.m. botelho], ao som de Fake Empire dos The National, do álbum Boxer [2007].



stay out super late tonight / picking apples, making pies / put a little something in our lemonade and take it with us / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire
tiptoe through our shiny city / with our diamond slippers on / do our gay ballet on ice / bluebirds on our shoulders / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire
turn the light out say goodnight / no thinking for a little while / lets not try to figure out everything at once / it’s hard to keep track of you falling through the sky / we’re half-awake in a fake empire / we’re half-awake in a fake empire

8.10.08

Branco

Lia o jornal todas as manhãs. Gostava, de modo especial agora no Outono, de se ir sentar no cadeirão de vime da marquise e ler as notícias impressas naquele papel cinzento que lhe sujava as mãos, lhe encardia as unhas. Perdia-se nas letras e nas horas. Deixava-se envolver com aquela gente cujos nomes apareciam abreviados nas colunas do jornal e dali a pouco era essa gente. Tão depressa estava na China como numa aldeia, tão depressa era corrector numa bolsa como um camionista em greve na fronteira.
Um dia ficou especado perante uma fotografia na página da necrologia. Um homem como ele, exactamente como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o primeiro botão da camisa muito apertado, junto ao pescoço. Um homem como ele, da idade dele, ali, numa fotografia ao lado de uma cruz preta, de um nome e de uma família que agradecia a presença de todos quantos acompanharam o saudoso extinto ao local do seu repouso eterno. Poderia ser ele. Pensou que poderia ser ele e ficou a pensar nisso durante muito tempo.
Naquela tarde mal se levantou do cadeirão de vime, mal saiu debaixo da manta que lhe agasalhava os joelhos. Aquela fotografia, naquela folha, naquele jornal, naquele dia atormentavam-no.
À noite foi-se deitar. Abriu cuidadosamente os lençóis que a empregada havia esticado com afinco e sentiu o cheiro do sabão. Gostava do cheiro dos lençóis lavados como de nenhum outro e por isso a empregada pacientemente lhos esfregava e prendia debaixo do colchão. Não se deitou. Sentiu-se sujo, com o cabelo desgrenhado, a pele oleosa, os pés por lavar e os dedos das mãos, os dedos das mãos sempre amarelecidos do tabaco. Puxou os lençóis com força. Depois foi buscar a manta que deixara sobre o cadeirão de vime e cobriu com ela o colchão nu. Deitou-se ali, assim, vestido, sujo, encolhido sobre si mesmo.
Na manhã seguinte, voltou ao jornal, ao cadeirão, à sua manta sobre os joelhos, aos dedos sujos da tinta preta e do papel cinzento. E na página da necrologia, novamente, um homem como ele, não fora os óculos e poderiam ser gémeos, as mesmas rugas, a mesma pele macilenta nas maçãs do rosto, o mesmo cabelo grisalho e o mesmo botão da camisa muito apertado contra o pescoço.
Mas naquela noite já não se deitou sozinho. Vieram os médicos e as enfermeiras amarrá-lo e deitá-lo na cama, temendo que voltasse a arrancar os lençóis. Ele continuou a sentir os pés sujos, a pele oleosa e os dedos, os dedos sempre tão amarelecidos pelo vício que tinha desde os 15 anos.
Antes de adormecer imaginou como seria aquele homem da página da necrologia aos quinze anos, ele tão jovem, ele tão velho, o peito nu a correr na rua e a jogar futebol, o primeiro botão da camisa tão apertado. Era ele, era ele, não fora os óculos, os óculos sem os quais não podia agora ler o jornal e era ele, não um gémeo, ele mesmo, sempre ele na página da necrologia, os lençóis tão lavados e os pés tão sujos, os lençóis tão brancos e aquela cruz tão preta cuja tinta lhe encardia as unhas.

© [m.m. botelho]

20.9.08

Janeiro de 93

Às vezes adormeço e ainda é Janeiro de 1993. Está frio. Acabaram as aulas no Liceu e eu estou de mochila às costas e fato-de-treino vestido a caminho da piscina. Levo encostadas aos ouvidos as almofadas cor-de-laranja de uns headphones com arco, ligados a um walkman onde toca uma cassete do álbum Bigger, Better, Faster More!. Depois, no balneário, lembro-me que amanhã tenho aula de piano e nem pus os olhos em cima do Czerny. Não há-de ser nada. As calças do meu fato-de-treino têm fechos nos tornozelos e a minha falta de perícia para lidar com eles entala uma vez mais o forro. Entretanto a hora chegou e já oiço lá fora o apito estridente do treinador. O balneário fica vazio, eu procuro os óculos no fundo da mochila e enfio à pressa os chinelos nos pés.
Dentro de água não me lembro das canções da cassete, do livro de música, das calças pelo avesso dentro da mochila. Foco todas as minhas atenções na respiração na cadência das braçadas. Vou contando cada uma das 25 piscinas crawl que tenho de fazer enquanto procuro concentrar-me na pernada que tenho de melhorar.

Depois acordo e já é Setembro de 2008. Que é feito dos 4 Non Blondes, do meu Czerny, dos meus headphones, da minha mochila preta? Quase me custa a crer que tenham passado quinze anos, mas passaram mesmo. Já passaram quinze anos e tanta coisa que continua igual, cá dentro, entalada como o forro das calças do meu fato-de-treino azul num fecho que eu ainda não sei correr.

© [m.m. botelho]

22.8.08

Quando tu entrasses por aquela porta

- Eu sei que pode até parecer ridículo, mas palavra de honra que eu tinha aqui à mão, para quando tu entrasses por aquela porta, um disco do Sérgio Godinho para pôr a tocar. Eu sei que tu gostas de Sérgio Godinho e queria fazer-te a surpresa, embora não fosse surpresa nenhuma porque se tu gostas assim tanto de Sérgio Godinho é óbvio que já deves ter ouvido todos os discos dele e provavelmente até sabes as letras todas de cor e salteado e as músicas e até deves ter um álbum ou, ao menos, uma canção, sim, ao menos, deves ter uma canção que seja a tua favorita e que gostes de ouvir mais do que todas as outras, embora, claro, se dizes que gostas assim tanto de Sérgio Godinho, devas ouvir todas as canções indiscriminadamente com o mesmo gosto e, se calhar, até nem tens uma canção ou um álbum favorito. Mas é como te digo, andava aqui à procura desse tal disco e agora não o encontro. Já deves estar a pensar que eu sou um grande palerma por não saber onde enfiei o disco, mas não. Não é que eu seja palerma, eu sou é distraído, porque às tantas peguei no disco e levei-o para algum lado, às tantas está no quarto, ou na cozinha, ou na casa-de-banho, pousado sobre uma cadeira qualquer ou às tantas até caiu para debaixo de algum móvel, que os discos são tão finos, às vezes escorregam de dentro das capas e nós nem nos damos conta, só se derem estrondo ao caírem no chão, senão até rolam para debaixo dos móveis e nós não nos damos conta. O que é certo é que o disco não deve estar aqui, caso contrário já o teria encontrado, aqui, debaixo destes copos e destes jornais que não tive tempo de arrumar mas que queria ter arrumado antes de tu entrares por aquela porta. Isto porque eu queria que tudo fosse perfeito quando tu entrasses por aquela porta, tu com os teus passos largos e decididos, as calças à boca de sino a dançarem de um lado para o outro, as solas dos teus sapatos a pisarem o chão com tanta força que os móveis quase abanam. Eu queria que fosse tudo tal e qual eu imaginei quando tu entrasses por aquela porta, que te sentasses neste sofá, que me pedisses um copo de qualquer coisa e eu te oferecesse gin e tu me pedisses gelo e limão e eu fosse a correr à cozinha buscar as pedrinhas que já estão separadas dentro do congelador à espera de serem chamadas a esfriar a tua bebida. Eu queria que fosse tudo previsível quando tu entrasses por aquela porta, que tirasses os óculos e os pousasses sobre este livro que eu deixei em cima desta mesinha que pus aqui ao pé do sofá, que penteasses os cabelos com os dedos e me pedisses que te fizesse uma massagem no pescoço, reclinando o corpo sobre o meu peito, o meu peito que haveria de ter dentro um coração a bater tão rápido e tão alto que se ouviria no corredor do prédio. Eu queria fosse tudo do teu agrado quando tu entrasses por aquela porta, que elogiasses este par de almofadas que comprei há dias numa loja em saldos a pensar em ti e no quanto tu gostas desta cor, que inspirasses longamente o aroma do incenso que eu pus a queimar quando me disseste que vinhas, que achasses este cinzeiro em forma de pato uma peça bonita e de bom gosto, que o gin não estivesse demasiado quente dentro do copo nem demasiado frio dentro da tua boca. Eu queria que fosse tudo tal e qual como eu queria quando tu entrasses por aquela porta, que os teus lábios dissessem três ou quatro palavras e que depois viessem beijar os meus para neles deixarem o sabor do gin, quem sabe, até que me dissesses que me amas e eu ficasse meio zonzo dentro desta camisa e destas calças que escolhi minuciosamente para usar esta noite. Mas isto tudo, é claro, só poderia acontecer se eu encontrasse o disco do Sérgio Godinho e o pusesse a tocar, o disco que eu ia jurar que tinha deixado aqui em cima mas que afinal, por mais voltas que dê, não encontro. Mas deixa-me ir ao quarto, só pode estar em cima da cama, sim, agora me lembro-me que o levei comigo para o quarto quando fui certificar-me em frente ao espelho que a camisa não me está demasiado justa nem demasiado larga, a mim, que não tenho uma constituição por aí além e que tenho este aspecto franzino de quem vai estilhaçar-se a qualquer momento.


Foi ao quarto. Demorou-se, talvez, meia dúzia de minutos. Apenas o tempo de abrir a porta do guarda-fatos, ver-se ao espelho de corpo inteiro, ajeitar a camisa que afinal lhe ficava mesmo demasiado larga, sacudir as calças, limpar o suor que lhe escorria da testa, pentear os cabelos, cofiar as patilhas e a barba, ajeitar os óculos, enfim, engolir em seco e respirar fundo três ou quatro vezes antes de a enfrentar novamente.
Quando voltou, a sala estava vazia. Sobre o sofá onde ela se sentara o disco do Sérgio Godinho que ele em vão tanto procurara e sobre o disco um bilhete com duas linhas escritas em letra apressada: «Esteve sempre aqui, mas tu nem o viste. Se ao menos tivesses olhado para mim... Se ao menos fosses antes um palerma e não tão distraído...».

© [m.m. botelho], ao som de Às Vezes o Amor, de Sérgio Godinho, do álbum Ligação Directa [2006].



que hei-de eu fazer / eu tão nova e desamparada / quando o amor / me entra de repente / p'la porta da frente / e fica a porta escancarada?
vou-te dizer / a luz começou em frestas / se fores a ver / enquanto assim durares / se fores amada e amares / dirás sempre palavras destas
p'ra te ter / p'ra que de mim não te zangues / eu vou-te dar / a pele, o meu cetim / coração carmesim / as carnes e com elas sangues
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e se um dia a razão / fria e negra do destino / deitar mão / à porta, à luz aberta / que te deixe liberta / e do pássaro se ouça o trino?
por te querer / vou abrir em mim dois espaços / p'ra te dar / enredo ao folhetim / a flor ao teu jardim / as pernas e com elas braços
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
mas se tudo tem fim / porquê dar a um amor guarida / mesmo assim / dá princípio ao começo / se morreres só te peço / da morte volta sempre em vida
às vezes o amor / no calendário, noutro mês, é dor, / é cego e surdo e mudo / e o dia tão diário disso tudo
e o dia tão diário disso tudo / da morte volta sempre em vida

28.7.08

«Os fumadores morrem prematuramente.»

A chama era alta e quente, ainda mais quente do que o sol que durante o dia tinha entrado pela vidraça e obrigara o gato a ir esconder-se debaixo da secretária, dentro do cesto dos papéis.

Papéis, papéis, papéis.

Não queimava nada mais do que isso e no entanto queimava-se a si mesma naquela labareda que lhe enchia os olhos de cor. Desde a primeira noite daquela ausência que tinha sempre os olhos negros, como que sem vida, desinteressados de tudo e de todos. Tinham já passado largos meses e ela continuava, acima de tudo, desinteressada de si própria.
Pensara enterrar-se no quintal, debaixo da terra húmida, e deixar-se ficar ali até que a fome ou a sede a viessem matar, mas faltava-lhe a paciência para se deixar morrer lentamente de forma consciente. Um amigo próximo dizia-lhe com frequência que a matar-se aos poucos andava ela, por se vergar perante a solidão. «A vida é feita de ausências, de chegadas e partidas, de braços a acenar e de bocas mudas que saem sem tugir nem mugir», concluía o amigo, mas ela parecia não ouvir, como parece sempre não ouvir quem o não quer fazer.

Tinha deixado de fumar, mas uma manhã acordou e achou que o seu corpo sentia falta de nicotina, de algo que a fizesse descolar daquela letargia nem que fosse por breves minutos. Da nicotina, sim. Era, de repente, uma imensa falta de nicotina a entranhar-se-lhe nos ossos. Vestiu-se sem se lavar e atravessou a rua sem olhar. Um carro que passava buzinou-lhe e o condutor gritou-lhe da janela que olhasse por onde andava, pois era demasiado jovem e bonita para morrer tão cedo.
Comprou um pacote de cigarros que tinha inscrito «Os fumadores morrem prematuramente» e sorriu porque se lembrou-me do comentário do condutor que quase a atropelara. «Nunca estamos a salvo», pensou, antes de olhar para a direita, depois para a esquerda e depois novamente para a direita, e atravessar a estrada.
Mal se achou em casa, acendeu um cigarro e inspirou sofregamente o fumo. Sentiu as narinas dilatarem-se, o peito encher-se de ar, a cabeça ligeiramente às voltas. Não fumava havia muito tempo, já quase não sabia como se segurava entre os dedos um cigarro sem o esmagar. Desde esse dia passou a comprar cigarros todas as segundas-feiras e a fumá-los durante a semana.

Foi num sábado à tarde, enquanto pasmava em frente à televisão, que, ao acender um cigarro, reparou na beleza azulada do centro da chama que o riscar do fósforo produzira. Nunca vira um azul tão bonito, tão translúcido, tão diluído com aquele que tremeluzia por detrás da ponta do cigarro. Fumou todos os cigarros que tinha em casa, todos os cigarros que era suposto durarem até segunda-feira de manhã. Achou que ia sentir-se enjoada, mas não. Tudo parecia insignificante se comparado com a sensação de euforia causada por aquela cor azul.
A noite foi entrando. O silêncio instalara-se entre o pacote de cigarros vazio, o seu corpo sozinho em casa, a televisão muda porque não passava nada de interessante, os livros a ganharem pó nas estantes, o gato quieto na almofada. A euforia desapareceu para dar lugar apenas a uma memória que parecia queimá-la por dentro. E nesse fogo ardiam as saudades trazidas por aquela ausência que ainda a consumia.

Levantou-se e foi à cozinha buscar a lata. Todos a achavam um tanto excêntrica por guardar cartas de amor entre o chá e não em delicadas caixas de veludo e papel, como era suposto. Bilhetes de viagens, de concertos, de sessões de cinema e teatro, umas quantas entradas de museu, guardanapos de papel, contas de cafés e pastéis de nata, post-it de várias cores e folhas de tamanho A4 muito dobradas, com os vincos já muito gastos e rotos, tudo numa mistura inseparável e impossível de organizar, tal como a sua vida. Enquanto remexia na papelada, lembrou-se das palavras do amigo - «A matares-te aos bocados andas tu.» - e chorou. Sentiu pena de si mesma, dos seus cabelos compridos em desalinho, muitos deles já brancos, expostos, como que desnudados aos olhares complacentes dos poucos que a visitavam esporadicamente. Olhou para as mãos e pareceu-lhe ver mais rugas do que ontem. Era o pico do Verão e ela era absolutamente invernal, tão fria, tão fria que era precisa a euforia da chama de um fósforo para que sentisse algum calor.

Espalhou pelo chão as suas cartas de amor que mais não eram do que recortes daqueles anos em que tinha deixado de fumar, em que a vida lhe parecera suficientemente preciosa para não a desperdiçar em expirações de fumo e dedos amarelos. Pegou num fósforo e acendeu com ele todos os papéis que conseguiu.

Papéis, papéis, papéis.

Não queimava mais do que isso e era ela mesma quem ardia no chão da sala, encarquilhando-se depois do lume a consumir, enegrecendo e desfazendo-se como cinza. Nos minutos que se seguiram, ela não foi mais nada senão as suas próprias cartas de amor, as suas memórias, o seu lixo acumulado numa lata de chá. E sentia-se desfalecer à passagem daquele azul tão bonito, tão translúcido, tão diluído que nascia do centro das chamas.
O gato fugira. Talvez estivesse outra vez enfiado no cesto dos papéis. Pensou na sorte do gato, que era tanta: bastava-lhe fugir para debaixo da secretária e tudo se resolvia. Foi enfiar-se também ela debaixo dos lençóis e não quis pensar em mais nada.

No domingo de manhã, com as cinzas, enterrou definitivamente no jardim as memórias e a ausência daquele amor epistolográfico. Tal como imaginara no primeiro dia de solidão, assim se sepultou a ela mesma, no quintal, debaixo da terra húmida e deixou-se ali morrer lentamente de forma consciente.

© [m.m. botelho]

25.7.08

Tique-taque

Enquanto o tempo não for todo nosso, quero manter no pulso este mesmo relógio cuja pilha pede substituição. Enquanto o tempo não for só nosso, não quero ouvi-lo tiquetaquear.

[Já te disse que não quero que estes ponteiros se movam?]

© [m.m. botelho]

5.7.08

Trouxas de ovos

«Muito bem! Muito bem! Muito bem! Brava!», gritava ela estridentemente, enquanto batia palminhas, de cada vez que a cadela enfezada se punha a fazer habilidades na carpete da sala. Eu sorria, engolia em seco, achava que no fundo até lhe achava alguma graça. A verdade é que não lhe achava graça nenhuma. Por isso é que de cada vez que a porta se fechava atrás daquela matrona eu suspirava de alívio e ia estender-me na cama, os pés para cima, a almofada sobre o rosto e assim ficava durante umas boas duas horas.

Um dia, ela veio, sentou-se pesadamente na poltrona e, muito chorosa, contou-me que a cadela morrera, assim, inesperadamente. Disse-me que suspeitava do vizinho do lado, «Um careca que passava a vida a ameaçar que qualquer dia lhe cortava o pio. E não é que cortou mesmo?» e depois pediu-me desculpas por estar para ali a levantar falsos testemunhos contra o tal careca que, afinal, agora já era «o Senhor Engenheiro Carvalhal». Eu acenava pateticamente com a cabeça, lamentava com ela a sua perda «irreparável» e estendia-lhe a caixa dos Klenex para se assoar.

Mal se foi embora, agarrei na lista telefónica e sentei-me à escrivaninha. Procurei na letra "C" os Carvalhais e lá apareceu um, felizmente só um, que era engenheiro e morava na mesma rua que ela. Só podia ser aquele o tal careca. Escrevi-lhe imediatamente um bilhete curto mas directo, agradecendo-lhe o facto de ter envenenado o raio da cadela, afinal de contas, um grande favor para a carpete caríssima que cobria o chão da minha sala.

Ela só voltou no mês seguinte. Disse-me que trouxera trouxas de ovos para o lanche e eu odiei-a ainda mais um bocadinho de cada vez que, entre os goles de chá, ela abria a bocarra para engolir de uma só vez cada uma delas. Depois de enfiar nove trouxas de ovos pela goela abaixo olhou horrorizada para o pratinho e disse que nem tinha reparado que apenas sobrara uma e eu nem sequer as tinha provado. Desfez-se em desculpas, como era já seu hábito, e disse que me deixava aquela para eu «pelo menos, lhe sentir o gosto». Eu agradeci como se o gesto dela tivesse alguma coisa de altruísta e não se devesse à mera vergonha de ter devorado a caixa inteira em menos de nada.

Comer de enfiada nove trouxas de ovos haveria de ter, não surpreendentemente, as suas consequências e teve-as. Dali a uns minutos, começou a queixar-se de um mal-estar e perguntou-me se poderia usar a casa-de-banho. Por dentro, explodi um sonoro «não», mas da minha boca soou um simpático «mas é claro que sim», ainda estou para saber porquê.

Ela lá ficou tempos infinitos na casa-de-banho, pensava eu que a ler o monte de jornais que eu lá tinha, alguns com mais de meio ano, perfeitamente inúteis e desactualizados. Entretanto, comi a trouxa de ovos e achei-a deliciosa, não demasiado doce, não demasiado seca, não demasiado minúscula. Fiquei com água na boca para comer outra, mas como já não havia, encolhi os ombros e lambi os dedos, um pouco desconsolada. Encostei-me no sofá e, sem dar por isso, acho que passei pelo sono. Quando acordei, ela ainda não voltara e o tempo parecia-me já muito. Achei por bem investigar o motivo da demora.

A ambulância levou, talvez, uns cinco minutos a chegar. Ela não dizia nada, nem ai, nem ui. Tinha os olhos muito esbugalhados e o rosto vermelho, os lábios grossos cobertos de uma espuma esbranquiçada e as mãos e os pés muito inchados. O médico nem chegou a abrir a maleta, limitando-se a dizer ao enfermeiro que ela já estava cadáver. Perguntou-me o que se passara e eu lá contei a história do chá e das trouxas de ovos.

Os meus vizinhos foram espreitando às portas de casa deles e, depois, invadindo a minha. Depressa se espalhou a notícia de que ela havia comido uma dúzia, vinte, trinta, quarenta, cinquenta trouxas de ovos e que a gula, esse pecado capital tão desprezível, a matara impiedosamente na minha casa-de-banho.

Não sei precisar se dois, se três dias depois, o carteiro tocou-me à porta para me entregar uma carta inesperada.

Agradeço-lhe tê-la envenenado. Assim ela se inquiete nos Infernos tanto quanto nos inquietou na Terra. E mais lhe digo que essa das trouxas de ovos foi de mestre. E assim ficámos quites, n'est pas?

Estranhei a pergunta e demorei-me muito tempo a olhar para o papel. Depois peguei outra vez no envelope e li o remetente. Era um tal de Carvalhal.

© [m.m. botelho]

2.7.08

Imprevisibilidade

Deitei-me cansada, mas feliz, já passava das três da manhã. Acordei ainda não eram oito, ensonada, mas pronta para mais um dia de reboliço. Li o jornal, tomei o pequeno-almoço. Espreitei as mensagens de e-mail, apenas quarenta e sete (outras tantas haverão de chegar antes das seis da tarde). Afinal, ao trabalho já destinado para hoje juntou-se mais algum. Só depois de o carteiro passar por aqui saberei como, quando e onde terminará o meu dia.

Gostaria que acabasse como ontem imaginei que acabaria: à mesa contigo, o teu olhar no meu, eu deitada no teu sorriso.

Habituei-me e passei até a desejar uma grande dose de imprevisibilidade na minha vida. Sobre a dúvida do mundo cá em baixo, a certeza do azul do céu basta-se e basta-me.

© [m.m. botelho]

11.6.08

De um azul tão bonito de que eu gosto tanto

© [m.m. botelho] | fotografia | junho de 2008

1.
Deixei-me ir pela noite dentro agarrada ao computador, aos livros, às montanhas de folhas de papel que me enchem a secretária, ao meu lápis Staedtler «Mars Lumograph» HB azul, de um azul tão bonito de que eu gosto tanto. Deixei-me ir pela noite dentro a escrever, a riscar, a sublinhar, às vezes segundo a orientação da régua, outras a pulso livre. Tu sabes bem como eu gosto de trabalhar às horas tardias, quando a cidade já dorme, os carros escasseiam e eu posso ter a ilusão de que estou sozinha no mundo, debaixo do céu escuro, apenas eu e o som da música que toca no leitor de cd. Tu sabes melhor do que ninguém que eu me deixo entusiasmar pelo som enternecedor do meu teclado esmagado sob os meus dedos, este teclado sem fios supostamente tão moderno que me impingiram por um pequeno balúrdio.

2.
Se ainda não estou na cama contigo, a teu lado, o meu corpo ao lado do teu, sobre o teu, dentro do teu, é porque a noite me chama para que escreva, para que a escreva, para que me escreva e eu não posso dizer-lhe que não, nem fazê-la esperar. A noite está sempre cheia de pressa como eu, sôfrega de gente que possa tornar noctívaga e roubar a camas quentes como a nossa.

3.
Há ainda tanto por fazer. Quase parece que comecei agora e que hoje é sempre ontem na corrida contra o tempo. Às vezes imagino que não vou conseguir respeitar o prazo e tenho vontade de sair por aí a riscar as paredes da casa, todas as paredes de todas as divisões da casa inteira, carregando muito no lápis, partindo o bico no fim de cada linha só para ter de o afiar, afiar, afiar, afiá-lo até desaparecer todo o azul e restar só a extremidade preta, pequenina, a confundir-se com a noite e a perder-se nela. E todos estes livros e papéis evaporar-se-iam no ar, como o fumo dos cigarros, e deixariam, simplesmente, de existir.

4.
Não importa o que diga, a verdade é só uma: eu gosto de estar aqui, soterrada nas minhas preocupações, a queixar-me de que durmo mal há anos porque há anos que me deito com algo para fazer no dia seguinte. Tu sabes que eu costumo dizer que só queria acordar uma manhã e não ter nada que fazer, nenhum sítio onde ir, ninguém com quem falar. Acho que gostaria de saborear uma manhã em que os meus olhos se abrissem por vontade própria e eu ficasse ali, estática, debaixo dos lençóis a cheirarem a lavado a olhar para o tecto do quarto, sem dizer nada, sem pensar em nada a não ser na felicidade imensa que imagino que seja acordar a não ter uma única preocupação a atormentar-me o espírito e a carne.

5.
Prometi a mim mesma que isto haveria de sair de mim, de se despegar da minha roupa e de me encher os dias do calendário. Não quero passar o resto da vida a pensar que é amanhã, que é depois, que é depois de depois, que é no dia seguinte. De uma vez por todas, quero poder engavetar os lápis, encadernar papéis e arrumar os livros na estante.

6.
Antes de subir para me ir deitar, costumo pensar no quanto tudo ficou mais fácil desde que tu chegaste. Sei-te aqui ou seja onde for, mas sei-te sempre comigo. Deve ser por isso que ninguém me leva muito a sério quando me ponho a zurzir contra tudo e contra todos, a maldizer a minha vida, as minhas escolhas, a achar-me a mais miserável de todas as criaturas humanas. Desde a tua chegada, ninguém acredita que eu possa ser outra coisa que não seja feliz. Todos gabam a paciência com que tu, todas as noites, a par do sono, vens e me tiras os óculos, os dobras cuidadosamente e pousas sobre a secretária. Todos gabam o modo carinhoso como me afagas os cabelos e me lembras que são horas de dormir. Invariavelmente, eu deixo-me guiar pela tua mão, o corpo aos trambolhões escadaria acima. Tombo na cama e adormeço profundamente. Tu voltas a descer para caiares as paredes da casa que eu risquei e reconstruíres estes lápis que eu triturei no afiador, estes lápis azuis, de um azul tão bonito de que eu gosto tanto. Eu nem dei por nada, mas agora sinto-o por inteiro: tudo ficou bem melhor depois de tu chegares.

© [m.m. botelho], ao som de The Build-Up, dos Kings of Convenience (aqui com a participação de Feist), do álbum Riot On An Empty Street [2004].



the build up lasted for days / lasted for weeks, lasted too long
our hero withdrew, when there was two / he could not choose one, so there was none
worn into the vaguely announced / worn into the vaguely announced
the spinning top made a sound like a train across the valley / fading, oh so quiet but constant 'til it passed / over the ridge into the distances / written on your ticket to remind you where to stop / and when to get off

4.6.08

Mar

© [m.m. botelho] | fotografia | porto | outubro de 2007


Deixa que o cheiro do mar se enrede nos teus cabelos. Encosta o búzio ao ouvido e escuta as ondas que bailam só para ti. O sal que te mancha os pés veio com elas, tal como eu vim
para ti
com a maré vaza daquele fim de tarde de Outono.

© [m.m. botelho]

28.5.08

Na primeira noite em que disseste que me querias

tinha inúmeros papéis em cima da secretária
papéis que deixei ao abandono
na primeira noite em que disseste que me querias

a corrente de ar empurrou a porta
e ela fechou-se atrás de mim

algumas letras caíram no chão
outras voaram janela fora
desprenderam-se da tinta e partiram livres
para amar

foi na primeira noite em que disseste que me querias
que nasceram novas palavras
de paixão e vento

© [m.m. botelho]

20.5.08

Tarte de limão


© [m.m. botelho] | fotografia | 20 de maio de 2008

Mousse de chocolate. E mais houvesse. Barriga. E mousse. Afinal, uma fatia de tarte de limão a meias contigo. Já dividida, disse ele. Dois pratos, dois garfos, duas bocas. Uma fatia de tarte de limão a meias. E a vida inteira contigo.

© [m.m. botelho]

19.5.08

Denúncia e acusação pública de plágio

A 9 de Abril de 2008 escrevi e publiquei neste blogue um texto sob o título «Era uma vez» [ligação]. A 17 de Maio de 2008 aparece publicado noutro blogue, com o qual nada tenho que ver, assinado por alguém que se dá por "Sigur Head" [perfil no blogger] um texto intitulado «Era uma vez» [ligação].
Este texto é uma cópia do meu texto, cópia essa que não foi autorizada e da qual não consta a identificação da fonte de onde foi retirada. Comparem-se ambos os textos [os negritos são meus]:

- texto escrito e publicado por mim neste blogue:

«Quando olho para o castanho amendoado dos teus olhos, tenho vontade de me aninhar no teu peito, de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te, muito baixinho, a voz quase sumida, muito nasalada - as narinas invadidas pelo cheiro da tua roupa acabada de lavar -, que me contes uma história.
Depois fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...», enquanto os teus dedos esguios me afagam os cabelos.
Era uma vez... e contas-me a nossa história, sem príncipes nem princesas, sem castelos ou dragões, apenas a história de quem andava ali, num trilho muito próximo e paralelo sem nunca, no entanto, se haver cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos, a história dos nossos corpos vizinhos um do outro, a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente. [...]
Era uma vez... e contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como o meu corpo se fundiu no teu, como fiquei prisioneira de nós naquele nosso primeiro encontro, naquele nosso inesperado encontro. [...]»

- texto publicado no outro blogue:

«Quando te vejo tenho vontade de me aninhar no teu peito de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te baixinho que me contes uma história. Fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...» e contas-me a nossa história, apenas a história de quem andava ali num trilho muito próximo e paralelo sem nunca no entanto se ter cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente.
Era uma vez...
Contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como meu corpo se fundiu no teu.
[...]»


A isto se chama plágio, daquele mesmo descarado, feito por alguém que, provavelmente, não foi capaz de pensar pela sua própria cabeça e preferiu recorrer a essa prática que infelizmente prolifera um pouco por toda a parte, mas de modo particular na blogosfera, e que nos bancos da escola se chama, sem mais, «copianço». Às vezes copiam-se ideias, nos casos mais graves, copiam-se mesmo as expressões, como sucedeu aqui. Expressões inteiras, frases inteiras. Custa acreditar, mas é mesmo verdade. Está à vista.
Esta atitude revela um profundo desrespeito pelo processo criativo da obra literária, para além de evidenciar uma enormíssima falta de carácter. Não creio que se trate somente de falta de imaginação ou capacidade. É, acima de tudo, uma pública e notória demonstração de falta de vergonha, uma grandessíssima, inenarrável, inqualificável lata.

A propósito, vale a pena recordar algumas notas sobre os direitos de autor, permanentemente visíveis ao fundo deste blogue [acrescentando alguns esclarecimentos a negrito]:
» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
» Obras originais são as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, qualquer que seja o seu género, forma de expressão, mérito, modo de comunicação ou objecto.
» Uma obra encontra-se protegida, logo que é criada e fixada sob qualquer tipo de forma tangível de modo directo ou com a ajuda de uma máquina [mesmo na blogosfera].
» A protecção das obras não está sujeita a formalização alguma. O direito de autor constitui-se pelo simples facto da criação, independentemente da sua divulgação, publicação, utilização ou registo [incluindo a blogosfera].
» O titular da obra é, salvo estipulação em contrário, o seu criador.
» A obra não depende do conhecimento pelo público. Ela existe independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração, apenas se lhe impondo, para beneficiar de protecção, que seja exteriorizada sob qualquer modo [como, por exemplo, através de um blogue].
» O direito de autor pertence ao criador intelectual da obra, salvo disposição expressa em contrário.

Solicito, pois, publicamente, a quem, sem autorização, plagiou o que eu escrevi que apague daquele texto o excerto copiado.

Adenda [em 19 de Maio de 2008, pelas 11h30]:
O texto em questão foi integralmente apagado. Por isso, aqui ficam duas imagens para documentar o sucedido e para que esta denúncia e acusação não fique desprovida de sentido. A primeira é a da pesquisa no Google que localiza o mesmo texto em ambos os blogues e a segunda é um print screan do post contendo o plágio a partir da cache daquele motor de busca [ligação provisória].



© [m.m. botelho]

16.5.08

A sétima curva


Wassily Kandinsky | Moscovo I | 1916
Tretyakov Gallery | Moscovo | Rússia


À sétima curva, ouviu os pneus do carro derraparem no asfalto. Sentiu os músculos das mãos rígidos, como que absolutamente imersos em goma-laca. Viu-se incapaz de controlar o volante girando entre os dedos. O som da borracha a derrapar no alcatrão ensurdeceu-a. Bateu com a cabeça no tejadilho, o cinto de segurança começou a asfixiá-la. O corpo sacudia-se ao ritmo das voltas que o carro dava. À sétima curva despistou-se.
Não soube contar o tempo até que parou, mas contou cada um dos rodopios. Um, dois, três, quatro. Ouviu o pára-brisas quebrar-se. Susteve a respiração o mais que pôde. O sangue começou a escorrer-lhe do nariz, quente, pastoso. Pensou que partira um braço, talvez uma perna, talvez as duas. Os pedais enredaram-se-lhe nos pés. Achou-se presa numa gaiola de lata e fumo.
Nos minutos que se seguiram ao embate lembrou-se de todas as pessoas a quem já não via há muitos anos. Pensou como o tempo e a distância, por muito curtos que sejam - podem divorciar-nos uns dos outros. Tanta gente do outro lado da cidade, apenas a meia dúzia de passos, e há tanto tempo se não viam. O turbilhão das manhãs de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre o casacão pesado. Tantos e tão genuínos motivos para regressar rapidamente a casa e adiar uma, outra, todas as vezes o cruzar de olhos com tanta gente de quem, desfalecendo naquele carro, sentiu repentinamente saudades.
Moscovo parecia-lhe sempre povoada de fantasmas, gente muito magra ou muito gorda, muito bela ou muito feia, muito jovem ou muito velha, mas toda ela desconhecida, gente que deslizava sobre as calçadas escorregadias, gente que mais não era do que manchas na paisagem, que mais não era do que a fumaça que lhe saía das bocas e rasgava o ar frio.
O corpo, dentro do carro, enregelava lentamente. À sétima curva, nem vivalma. Por aquela estrada não passava ninguém. Deixou-se ceder e afogar no sangue que lhe encharcava as roupas. A vista da cidade emoldurava-lhe o rosto maltratado pelo embate. Ao fundo,o turbilhão daquela manhã de trânsito, o frio da neve a entranhar-se nos ossos, o cansaço dos dias de trabalho a acumular-se sobre muitos casacões pesados. À sétima curva, enfim, adormeceu e com ela levou Moscovo inteira na memória.

© [m.m. botelho]

Texto [também publicado aqui] escrito a convite do blogue «A Dobra do Grito», inserido no ciclo «Kandinsky provoca bloggers».

13.5.08

Sinto o sol por dentro

O dia está a terminar. O céu já não mostra o sol, as nuvens já não parecem tão brancas como o algodão ou as peúgas do barbeiro onde o meu pai corta o cabelo. Quando me lembro do barbeiro do meu pai, ouço o barulho do afã da pequenina tesoura que tem sempre entre os dedos. E vejo as madeixas de cabelo do meu pai caírem desamparadas no chão frio de linóleo da barbearia. A vassoura da menina Arminda há-de juntá-las a um canto. Mas isto já sou eu a perder-me nas palavras.

Todas as noites seguro entre as mãos as madeixas dos teus cabelos, separo-as com os dedos, sinto-lhes o cheiro do teu champô com extractos de argila. O sol mostra-se nos teus olhos. O cão adormece pachorrento aos nossos pés, a claridade do nosso amor não o perturba. É essa luz que me faz enfrentar todos os meus medos, que se dissipam, nuvens brancas como o algodão empurradas pelo vento. Contigo sinto o sol por dentro, mesmo se o dia já terminou.

© [m.m. botelho], ao som de Come Feel The Sun, dos Tindersticks, do álbum The Hungry Saw [2008].



why don't you come out / the guards have gone / they forgot their purpose and shuffled / their lungs have come feel the sun
why don't you come out / the dogs lie sleeping / their lips they twitch with the chills in their dreams / they come feel the sun
why don't you come out / and exact your revenge / and the liers and wasters / that call themselves friends / for to forgive is overrated / as they need but your affiance / so come feel the sun
why don't you come out / we are missing / your wife and babies / that just want to hold you / so come feel the sun / touch your fears / make everything the same as it was

30.4.08

Chinelos

Hoje arrumei os meus chinelos emparelhados com os teus na despensa. Fiquei a olhar para eles durante muito tempo, a ver como ficam bem os nossos chinelos lado a lado, sobre o branco frio do pavimento da despensa.
Antes, costumava pasmar, literalmente, durante horas perante as nossas escovas de dentes no mesmo copo. Olhava tanto para elas que quase as via enroscarem-se uma na outra, dizerem coisinhas bonitas e enamoradas ao ouvido uma da outra, rirem muito às gargalhadas do tubo de dentífrico, sempre tão inchado, tão sozinho e tão altivo no seu canto. Eu sei que por ti o nosso tubo de pasta de dentes teria como companheiro permanente outro tubo de pasta de dentes, mas parece-me um desperdício de dinheiro ter dois tubos de pasta de dentes abertos ao mesmo tempo. Além disso, as escovas, coitadas, haveriam de sentir-se apertadas, esmagadas uma de encontro à outra, e já não poderiam andar por ali a vaguear, dentro do copo, de mão dada.
A despensa é grande. Ainda podemos comprar muitos pares de chinelos, sapatos, botas, galochas e ténis e guardá-los lá, lado a lado, que nenhum deles se sentirá apertado. Tenho a certeza de que, por muito tempo, os nossos chinelos darão longos passeios a par. Passeios como os que nós damos quando os nossos corpos se encaixam debaixo dos lençóis e o odor dos teus cabelos é brisa que nos empurra, mar afora.

© [m.m. botelho]

23.4.08

Tudo é possível.

Eu quis muito amar-te.

[Quis muito aprisionar a noite dentro do meu carro, segurar entre os dedos os minutos que escorriam do meu relógio de pulso, emoldurar o teu rosto iluminado pelos faróis dos carros que passavam. Quis muito desenhar as curvas do teu corpo na lua cheia, contar cada um dos teus cabelos debaixo das árvores, resgatar-te àquele asfalto que os teus ténis calcavam. Quis muito suster a tua respiração no frio, prender o teu grito de gozo nos vidros embaciados, entrar em ti, ser o teu sangue. Quis muito permanecer entre os teus dentes com a forma do meu nome enlaçado no teu.]

É como te digo, eu quis muito amar-te, de todas as formas, as que cabem nas palavras e as que as extravasam, as que ficam presas na barragem do meu coração e as que passam as comportas do meu peito.

[Muito, de todas as formas, mesmo antes de te querer amar.]

Eu quis muito tudo isso e consegui.

[Desde então,]

acredito no que me disseste, que tudo é possível, mesmo o inesperado, mesmo o improvável, mesmo o imprevisto. Eu quis muito e assim foi.

[Quando Setembro chegar, vamos andar de bicicleta a par, mandar vir contra o vento, beber o sol, esvaziar o mar.]

© [m.m. botelho], ao som de Os dias são à noite, dos Madredeus, do álbum O Paraíso [1997]. Aqui na versão do álbum Euforia [2002], ao vivo, com a participação da Flemish Radio Orchestra.



os dias são à noite / e as noites são de dia. / se acordo contigo / a mim abraçado / o sono perdido / não deixa cuidado.
os dias são à noite / e as noites são de dia. / se acordo contigo, / se estou a teu lado, / é doce o caminho / deste meu fado.
os dias são à noite / e as noites são de dia.

9.4.08

Era uma vez

Quando olho para o castanho amendoado dos teus olhos, tenho vontade de me aninhar no teu peito, de repousar a cabeça sobre o teu ombro e pedir-te, muito baixinho, a voz quase sumida, muito nasalada - as narinas invadidas pelo cheiro da tua roupa acabada de lavar -, que me contes uma história.
Depois fecho os olhos e quase me é possível ouvir-te dizer «Era uma vez...», enquanto os teus dedos esguios me afagam os cabelos.

Era uma vez...
... e contas-me a nossa história, sem príncipes nem princesas, sem castelos ou dragões, apenas a história de quem andava ali, num trilho muito próximo e paralelo sem nunca, no entanto, se haver cruzado. Contas-me a história dos nossos caminhos, a história dos nossos corpos vizinhos um do outro, a história desse vidro opaco que nos ocultava mutuamente.
Era uma vez...
... e contas-me a história de uma tarde banal como qualquer outra, se exceptuarmos o facto de que foi uma tarde demasiado quente para aquela altura do ano. Contas-me como os meus dedos marcaram o teu número, como a tua voz delicada atendeu do lado de lá, falas-me da minha surpresa ao escutar-te e do sobressalto em que ficou o meu peito quando desliguei e me fiz à estrada, ao teu encontro.
Era uma vez...
... e contas-me como os meus olhos se afundaram nos teus, como o meu corpo se fundiu no teu, como fiquei prisioneira de nós naquele nosso primeiro encontro, naquele nosso inesperado encontro. Dizes-me que fiquei refém de todas as tardes de Estio que se seguiram àquela, todas elas também demasiado quentes para a época. E relembras-me cada recado que te escrevi e tu nunca leste, cada palavra que te disse e tu nunca escutaste, cada beijo que te dei e tu nunca sentiste, cada pedido que te fiz e tu nunca atendeste.
Era uma vez...
... e contas-me como resististe às tuas certezas, como me fizeste sentir incrédula das minhas, como quase me levaste a desistir da ideia de nunca mais acordar para um dia em que tu não estivesses a meu lado. Trazes-me à memória que te despediste de mim como quem foge de si mesmo, que atravessaste aquela passadeira em passo rápido enquanto o meu carro ficou parado no sinal vermelho - um grande sinal vermelho, redondo, imenso, ofuscante, quente como as nossas tardes que nunca foram nossas. Recordas-me que nem sequer olhavas para mim, eu atrás daquele imenso pára-brisas e tu nem sequer voltavas a cabeça para ver se era mesmo eu ou apenas um carro igual ao meu. A cada pausa tua para respirar, é como se sentisse de novo como os teus ténis calcando o alcatrão me tatuaram a pele.
Era uma vez...
... e contas-me a história do nosso (re)encontro, novamente através de uma linha telefónica, novamente a tua voz delicada do lado de lá e o meu peito em sobressalto. E falas-me do nosso inesperado (re)encontro, aquele que eu sempre acreditei que aconteceria, mesmo quando deixei de acreditar que viria a acontecer.
Era uma vez...
... e daí em diante roubo-te a palavra e sou eu quem te fala de tudo quanto de nós fizemos desde então, de como as tardes se mostraram sempre quentes, independentemente do mês do calendário, de como não mais acordei para um dia em que tu não estivesses a meu lado.
Era uma vez...
... e, beijando-me a testa, rematas com um «viveram felizes para sempre». Sorrimos, as nossas bocas fecham-se num beijo e acreditamos que sim, embora tanto eu como tu saibamos que, «para sempre é sempre por um triz» e que a vida se encarregará de nos mostrar «se é perigoso a gente ser feliz»*.

© [m.m. botelho]

* Versos de «Beatriz», canção de Edu Lobo e Chico Buarque.

7.4.08

O amor que eu te tenho

Antes de tudo eras tu, eu e o resto do mundo que não víamos e que achávamos não existir.

No princípio era o amor que eu te tinha. No princípio, partindo do ponto de partida de tudo, recuando até ao início de nós, que foi quando eu abri aquela porta e te vi naquela cadeira, naquela mesa, naquela sala, olhando fixamente para a porta que eu abria, a porta que rangia ligeiramente, para o meu corpo a entrar na sala ao som dos meus passos apressados a rasgar o silêncio. No princípio era o amor que eu te comecei a ter dentro daquela sala e que foi saindo pelas frestas das janelas, por debaixo da porta e que se espalhou por todos os lugares. No princípio era o amor que te tenho e que ficou colado ao teu sorriso, à minha boca, aos estofos do meu carro e ao escuro das longas noites que passámos mesmo ali, junto ao começo do mar.
No fim – o fim de cada instante que percorre o tempo e a distância entre o passado e o futuro, continuamente –, ainda é o amor que tenho. Agora. Agora. Agora. Do princípio ao fim – a cada fim que passa, que é e já não é, para nunca mais voltar a ser, – apenas e só o amor que eu te tenho, fora daquela sala, dentro de mim, dentro de ti, em toda a parte.

© [m.m. botelho], ao som de Kiss Me, Oh Kiss Me, de David Fonseca, do álbum Dreams In Colour [2007].



so when the fight is over / and the storm is through / now will you pick another? / what will you get into?
so you stand in the corner / with those boxing gloves on you / you’re old, scared and lonely / yeah we've all been there too... / we've been all there too...
kiss me, oh kiss me / if that can make it right / try me, find me, / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might, take them home with me.
and the cracks in the pavement / yeah we've all fell there before / and bones built into skeleton / we've all been through that door.
kiss me, oh kiss me / if that can make it right / try me, find me, / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might...
kiss me, oh kiss me / will that make things right? / try me, find me / just throw them on me... / those failed expectations / floods and afflictions you're through / 'cause I just might... / I just might, take you home.
kiss me, kiss me, / we've all been there too / kiss me, kiss me / we have all been there too. / kiss me, kiss me / we've all been there too / kiss me, kiss me / so kiss me...

2.4.08

Devoção

Orar com fervor no templo que é a tua boca.

© [m.m. botelho]

23.3.08

Carpete [parte 2]

São, precisamente, 03h52. Abri a porta do nosso quarto e do teu vestido, sobre a cadeira, nem sinal. No seu lugar, umas calças minhas, muito velhas, muito amarrotadas, que uso frequentemente para andar em casa. Como é possível que não esteja lá o teu vestido? O que raio fazem ali aquelas calças? No armário da casa de banho, contudo, há uma embalagem do teu champô. Vazia. Em vão tento recuperar o cheiro dos teus cabelos, mas nada. Nada. Nada. Começo outra vez às voltas pela casa, a abrir todas as portas, todas as janelas, chamando por ti, os dentes rangendo nervosamente na minha boca, gritando o teu nome que parece não querer ficar nunca dentro de mim, mas tu não respondes, mas tu não estás.

Falta um minuto para as 04h00. O frio de novo nos pés, os pés de novo dentro dos chinelos, a manta no colo mas que, todavia, já não me vale de nada. Estou outra vez gelado, sozinho, o suor a escorrer-me da testa para o rosto, as pernas meio trémulas. Começo a pigarrear. Lembro-me da vizinha de cima. A tosse sacode-me o corpo como para me despertar da letargia
ela já não está cá, ela nunca esteve cá
mas eu prefiro continuar a dormir acordado. O estupor da vizinha de cima bateu outra vez com a vassoura no chão, amanhã vai pôr-me a campainha outra vez imunda. Não me interessa o que ela diz, nem o que a tosse me faz, só espero ainda ter desinfectante para limpar aquilo tudo muito bem limpo, senão vai mesmo com álcool.

Já passa um pouco das quatro da manhã. Olho a carpete que agasalha o centro do chão da nossa sala. Nela, vejo nitidamente uma linha da cor vermelha da bainha do teu vestido vermelho, um cabelo negro da cor dos teus cabelos negros, várias manchas de cinza espalhadas e entranhadas. Cinza dos teus cigarros, cinza feita do ar que os teus lábios levaram até ao cigarro que se consumiu como eu agora me consumo. Na aparelhagem, uma canção qualquer que deve ser do Sérgio Godinho, que só pode ser do Sérgio Godinho.
Por isso, pouco me importam as evidências. Eu sei que tu não te foste embora, eu sei que
tu ainda andas por cá, tu sempre estiveste cá.

© [m.m. botelho]

Carpete [parte 1]

São 03h04. O ponteiro dos segundos está quase quase a chegar ao minuto seguinte mas ainda não chegou. Ah. Agora sim. São, exactamente, 03h05. Tenho uma manta no colo, os chinelos enfiados nos pés, gelados. Não é que esteja propriamente frio, eu é que tenho uma tremenda dificuldade em aquecer.
Acabaram-me os cigarros, mas não me faz grande diferença. Fumando menos, tusso menos e assim já não incomodo a vizinha de cima, que ainda hoje me bateu à porta para me dizer que não descansa de noite por causa do meu pigarrear. A parva. Soubesse ela o quão rápido vou buscar o desinfectante e um pano para limpar a campainha de todas as vezes que ela lá pespega o dedo. Tem as unhas sempre porcas e cheira a fritos. Quero lá saber que não durma de noite. Que ponha algodão nos ouvidos. Tem aquele pescoço tão encardido que nem deve saber, sequer, o que é algodão. Até me dá comichão só de falar na mulher. O que interessa é que se amanhã me aparece aqui lhe sopro o fumo do cigarro em cheio para a cara, a ver se tossirá ou não. E depois que não se queixe de mim
- Vê, Sô Dona Belarmina, como fumando também a senhora tosse?
ou fecho-lhe a porta na cara. Assim, sem mais.

São, exactamente, 03h11. O ponteiro dos segundos acabou de passar no zero. São, exactamente, 03h11 e o teu vestido continua pendurado na cadeira, ao Deus-dará, o cinto a cair mais para um lado do que para o outro, os botões do decote todos desapertados, a bainha da saia descosida. De cada vez que abro a porta do nosso quarto, vejo-o abanar com o vento
não imaginas a corrente-de-ar que, mesmo com a porta fechada, há no nosso quarto
e é como se te visse a ti, dentro dele, a abanares-te toda ao som de uma canção qualquer do Sérgio Godinho
e eu, tão insensível, nunca achei graça a nenhuma das canções do Sérgio Godinho
os braços para um lado, as pernas para outro, como se fosses feita de trapos mas cheirasses sempre a alfazema.
Na verdade, tu cheiravas sempre bem, mesmo quando não cheiravas a nada. O teu vestido não cheira a nada, que é o mesmo que dizer que cheira a ti,
sabes que o cheiro da cebola nos teus dedos não cheirava a cebola?
que cheira ao perfume dos teus cabelos quando o vento mo trazia pela manhã, antes de saíres para o trabalho.

São agora 03h17 e o teu vestido continua imóvel sobre a cadeira. Se ao menos o teu vestido caísse ao chão, se ao menos se mexesse
afinal, há corrente de ar no nosso quarto!
eu pegava nele e enfiava-o no armário de novo, ou num saco plástico, ou no tambor da máquina de lavar roupa, que desde que tu não lavas os teus vestidos também não se mexe. Ele não fala - o tambor da máquina de lavar roupa - mas de certeza que se falasse me diria que tem saudades do cheiro dos teus vestidos dentro dele, a tocarem-lhe ao de leve o alumínio, cada um dos orifícios, as borrachas, encharcados de água e detergente.

São 03h20. Que estranho. Só passaram três minutos desde que vi as horas e parece que passou uma eternidade. Ao invés, já passaram anos desde que pousaste o teu vestido naquela cadeira do nosso quarto e parece que ainda foi ontem que te ouvi cantar uma canção qualquer do Sérgio Godinho
não sei a letra, mas só podia ser do Sérgio Godinho
ali na cozinha, enquanto fazias café para nós. Se queres que te diga, parece que ainda foi esta manhã que te vi entrar
as maçãs do rosto rosadas pelo frio da rua
com o jornal numa mão e o pão quente, ainda a fumegar, na outra. Quase podia jurar que ainda há pouco andavas aqui na sala a fumar cigarro atrás de cigarro, a maldizeres-te a ti própria porque deixaste cair cinza na carpete
- E a empregada nunca aspira esta carpete como deve ser!
enquanto abanavas os cabelos ao som do Sérgio Godinho e inundavas o meu nariz com o cheiro do teu champô. Mas vendo bem, no cinzeiro há apenas beatas dos meus cigarros, de cujo aroma tu sempre te queixaste e que nunca compreendeste como é que eu conseguia inalar. Dos teus cigarros, nem vestígio. De marcas do teu baton nos filtros brancos dos teus cigarros, nem sombra.
Se calhar, não estiveste ainda há pouco aqui na sala a dançar. Se calhar, é tudo fruto da minha imaginação. Se calhar, sou eu que ainda sonho contigo acordado, manta no colo, chinelos enfiados nos pés sempre frios porque esta casa é enorme e há corrente de ar em todo o lado, mas, principalmente, no nosso quarto. Por falar nisso, deixa-me ir ao nosso quarto. Faz-se tarde, é melhor fechar as portadas e ligar o aquecedor, que já são mais do que horas de dormir.

© [m.m. botelho]

17.3.08

a palavra/as palavras

© Sindri | fotografia | fallin in love was not part of the plan | 2007

Tu vais dizendo as palavras
- a palavra -
enquanto eu te desenho no corpo as linhas das cores que a chuva tem e me encandeiam os olhos.
Lá fora, continua a pingar, a gotejar das folhas das árvores monumentais do quintal dos vizinhos. No lado de lá da rua, no prédio em frente, uma rapariga de vestido preto, cotovelos apoiados no parapeito da janela, suspira pelos raios de sol para sair à rua.
Ainda que o calor chegue e a chuva cesse, permaneceremos absortos em nós: eu em cada interstício do teu ventre, tu na essência dos meus cabelos, eu no ardor da tua boca, enquanto vamos dizendo a palavra
- as palavras -
para sempre tatuadas em cada ruga dos nossos lençóis.

© [m.m. botelho]

13.3.08

Chuva num monitor cinzento

Ela é somente um sonho. Ela não é real, não pode ser real. Ela ultrapassa a realidade, comece a realidade onde começar, vá à velocidade que for, seja lá isso o que for, isso de ultrapassar. Ela só pode ser fruto da minha imaginação. Digam-me que ela é fruto da minha imaginação. Que não pode ter cheiro, nem cor, nem vida para lá do meu cérebro, para lá do meu corpo, da minha vontade de a materializar cá dentro. Digam-me que ela não passa de um pesadelo, de uma visão futurista e idealista da minha cabeça, de um não-querer muito imenso e muito intenso que eu tive guardado no peito a sete chaves durante tanto tempo. Digam-me que ainda não foi agora que ela ganhou vida. Digam-me que, para lá desta televisão dessintonizada em que se tornou o mundo dentro dos meus olhos, ela não existe, ela se esfuma, ela não passa de poeira invisível. Digam-me que ela é apenas chuva num monitor cinzento que não se deixa domesticar por um controle-remoto. Digam-me que ela não veio de repente, não me abriu a porta de casa e não me levou tudo. Digam-me, digam-me, digam-me. Digam-me, por favor, que esta noite não foi a noite em que a morte veio para me roubar de mim.

© [m.m. botelho]

5.3.08

Ex

A noite arrefeceu. Logo hoje, que tu não estás cá para me aqueceres debaixo dos cobertores, logo hoje que tu não vens. Ainda me hás-de explicar porque é que tens sempre os pés tão frios.
Quando fui à rua despejar o lixo vi passar do lado de lá do passeio a tua ex-mulher. Continua com a mania de passar aqui à porta todas as noites. Trazia o cão pela trela, vestia uma camisola vermelha. Fica-lhe bem o vermelho, fá-la mais nova. Quando abri a porta, ela vinha mais ou menos em frente à mercearia e desde então não tirou os olhos de cima de mim. Ela percebe que me incomoda que me olhe assim, mas não porque seja tua ex. Ela sabe que tem um estranho poder qualquer de prender as pessoas com o olhar. Tenho medo que me hipnotize, que depois me leve para casa, me mate, corte em pedaços e me dê de comer ao cão. Não sei ao certo se lhe tenho medo ou se a acho simplesmente maluca.
Depois de despejar o lixo fechei a porta o mais depressa que pude. Enquanto subia as escadas podia ouvir o eco do meu coração descompassado no corredor. Senti a garganta a latejar, uma dor de cabeça repentina. Entrei em casa e fui a correr buscar a manta. De repente, a noite arrefeceu só porque a tua ex-mulher voltou a passar aqui na rua. Logo hoje, que tu não vens. Ainda me hás-de explicar se também é por causa dela que tens sempre os pés tão frios.

© [m.m. botelho]

5.2.08

A tua partida nunca [me] é [demasiado] fácil.

Raramente me lembro do que sonhei, a não ser quando sonho com a tua partida. Dou por mim a antecipar o momento em que a porta desta casa se fecha atrás do teu vulto esguio. Ouço o barulho seco da porta do teu carro, o estrondo do motor em combustão, o rugido do portão da garagem a fechar. Da varanda, já só vejo as marcas que os pneus deixam no asfalto. A tua partida nunca [me] é [demasiado] fácil.
Chove. Quando tu vais embora, está sempre a chover, quer seja Janeiro, Abril ou Julho. E, tal como nos meus sonhos, chove no mundo real lá fora e chove por dentro dos meus olhos. Chove em toda a parte, a todo o tempo, quando te vais.

© [m.m. botelho], ao som de Into My Arms, de Nick Cave & The Bad Seeds, do álbum The Boatman's Call [1997], aqui numa versão ao vivo.



I don't believe in an interventionist God / but I know, darling, that you do / but if I did I would kneel down and ask Him / not to intervene when it came to you / not to touch a hair on your head / to leave you as you are / and if He felt He had to direct you / then direct you into my arms
into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms
and I don't believe in the existence of angels / but looking at you I wonder if that's true / but if I did I would summon them together / and ask them to watch over you / to each burn a candle for you / to make bright and clear your path / and to walk, like Christ, in grace and love / and guide you into my arms
into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms
and I believe in love / and I know that you do too / and I believe in some kind of path / that we can walk down, me and you / so keep your candlew burning / and make her journey bright and pure / that she will keep returning / always and evermore
into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms, oh Lord / into my arms

4.2.08

«Partir é demasiado fácil.»

© [m.m. botelho] | algures entre porto e lisboa | setembro de 2007


         «As coisas pioram, o mundo muda. No meu sonho nada evolui. Eu estou sempre como agora. Tu não sais da minha frente. As pessoas não crescem. As árvores não morrem. Se a vida pudesse ser parada, eu parava-a aqui.
         Tenho os meus amigos à minha volta. Durmo numa terra estrangeira. Todos os dias entro em Portugal. Passo a fronteira de pijama. E queria que fosse sempre assim, que não mudassem o lugar às casas e às estradas, que as pessoas passassem sempre à mesma velocidade, cumprimentando-se lentamente lembrando-se dos nomes, com respeito e com prazer.
         Sou contra as viagens. As viagens existem, mas não se deviam forçar. Partir para quê? No meu sonho não descubro terras nem estranhos: descubro-me a mim e à minha casa. Partir é demasiado fácil.»


Miguel Esteves Cardoso | As Minhas Aventuras na República Portuguesa | Lisboa: Assírio & Alvim | 1990 | p. 3

Sem título

- Já sabes viver sem mim?
- Nunca soube.


© [m.m. botelho]

16.1.08

Slow motion

Quando me perguntaste se queria café, chá ou um whisky, palavra de honra que o que me apetecia mesmo era o chá, mas acabei por optar pelo whisky porque julguei que, quem sabe, um pouco de álcool nas veias aumentasse a velocidade das coisas entre nós. Tudo é lento, tudo é sempre tão lento entre nós que às vezes nem sei a quantas ando, quanto tempo passou desde que cheguei ou desde que me fui embora. Não é que quantificar os minutos seja importante, mas é sempre aconselhável o domínio desse elemento constantemente presente na vida de toda a gente.
Ainda me lembro de que, no início das nossas conversas, achávamos ambos que as horas eram sempre escassas, que tanto havia ficado por dizer, que era absolutamente imperioso e essencial repetirmos o encontro. Como é possível, então, que de lá para cá, o correr das coisas se tenha tornado tão penoso para ambos que damos por nós a suspirar pelo dia seguinte?
No fundo, sucedeu - e isto é apenas possível, apenas uma teoria minha, elaborada a partir do (meu) senso comum, sem qualquer sustentação científica ou outra - que

nós ficámos demasiado acelerados para o tempo do mundo.

Quisemos tudo ao mesmo tempo. Chorar, rir, ver, ouvir, sonhar, concretizar, acreditar e sentir. E nada disto pode fazer-se em simultâneo a não ser que estejamos dispostos a deixar para trás muitas outras coisas. E a verdade, a inteira, nua e crua verdade é que nem tu, nem eu estivemos alguma vez dispostos a deixar para trás fosse o que fosse. E por isso fomos arrastando as coisas connosco, tanta tralha às costas, até ao momento em que se tornou insustentável prosseguir caminho com tamanha bagagem. Foi então que começámos a fazer pausas, a pedir «tempo», como se o tempo, lá porque estávamos separados, corresse mais devagar.
Fomos ingénuos, na altura, ao pensarmos que tudo se resolveria caso estivéssemos um pouco afastados, caso conseguíssemos organizar as nossas vidas e logo nós, que éramos sempre tão organizadinhos, nós, que tínhamos tudo sob controle excepto o que nos estava a acontecer.
Como era de esperar, o whisky não surtiu qualquer efeito e tudo continua insuportavelmente lento entre nós. E não será nenhuma bebida, nenhuma distância, nenhuma outra coisa senão a nossa vontade que há-de voltar a ter domínio sobre o que era nosso, sobre o que éramos nós. Mas para isso seria necessário que nós ainda fossemos possíveis e, como tu sabes, eu continuo com imensas coisas às costas, objectivos que egoisticamente delineei para mim, planos que desejo concretizar para meu simples bel-prazer, tudo coisas que não tenciono partilhar contigo nem com ninguém, logo, digamos que estou um pouco indisponível para que nós possamos acontecer outra vez.
Não me interessa por aí além saber se tu terias essa disponibilidade porque, a bem dizer, já pouco me interessa o que quer que seja que venha de ti. Por isso bebi o whisky de um só trago e acabei com a lentidão entre nós. Agora sim, que o copo está finalmente vazio, posso pagar a conta e sair. Por isso, por obséquio, podes dizer-me

quanto é?

© [m.m. botelho], ao som de Foolish Love, de Rufus Wainwright, do álbum homónimo [1998], aqui ao vivo.



I don't want to hold you and feel so helpless / I don't want to smell you and lose my senses / and smile in slow motion / with eyes in love
I twist like a corkscrew / the sweetness rising / I drink from the bottle, weeping / why won't you last? / Why can't you last?
so I will walk without care / beat my snare / look like a man who means business / go to all the poshest places / with their familiar faces / terminate all signs of weakness
oh, all for the sake of a foolish love / I will take my coffee black / never snack / hang with the wolves who are sheepish / flow through the veins of town / always frown / me and my mistress, the princess / oh, all for the sake of a foolish love
So the day noah's ark floats down park / my eyes will be simply glazed over / or better yet / I'll wear shades on sunless days / and when the sun's out, i'll stay in and slumber / oh, all for the sake of a foolish love / all for the sake of a foolish love
'cause I don't want to hold you and feel so helpless / I don't want to smell you and lose my senses / and smile in slow motion / with eyes in love

14.1.08

Absolutamente

© [m.m. botelho] | fotografia | janeiro de 2008

Mirou-a de soslaio e o olhar prendeu-se-lhe outra vez, como todas as vezes, na dobra que o tecido do casaco preto fazia no cotovelo. Foi escorrendo, placidamente, pelo braço até chegar ao pulso, depois à mão, tão firme e tão delicada, as unhas sempre tão bem aparadas, tão limpas, tão sóbrias, como convém às pessoas sérias. E ali ficou preso, inteiramente cativo daquelas mãos namoriscando o pacotinho de açúcar, depois a chávena de chá, depois a colher, numa dança de roda em que todos os objectos daquela mesa queriam ser o seu par.
Sentiu vontade de lhe segurar as mãos e ficar ali muito tempo a observar com admiração cada gesto que ela desenhava com a ponta dos dedos. Mas não havia muito tempo, a noite já ia alta e ela tinha alguém à espera. Sustendo a respiração, disse-lhe apenas, ela já meio corpo fora do carro, os cabelos encobertos pelo nevoeiro da madrugada, os braços esticados e o casaco já sem dobras que lhe prendessem o olhar
- Já lhe disse que amo, absolutamente, as suas mãos?
Ela sorriu, sem se deter, e mergulhou definitivamente no breu, toda inteira, uma luva caída na calçada batida, numa noite fria de inverno e névoa.

© [m.m. botelho]