20.11.07

Um improvável adeus

O desenho dos teus ombros, o ténue som dos teus passos rápidos, uma silhueta esguia que lentamente se afasta, até se tornar pequenina, tão pequenina que os meus olhos deixam de a ver. A imagem que guardo de ti, a imagem da tua ida, por entre as gotas de chuva que te encharcavam o casaco, a mesma chuva que escorria pelo vidro do meu carro.
- Graças a Deus está a chover.
Não quero acreditar que não voltarei a ter a tua cabeça repousando no meu ombro
- Porque é que o mundo não é só aqui e agora, a minha cabeça sobre o teu peito?
não quero acreditar que não terei mais o castanho aguado dos teus olhos perdido nos meus, a tua gargalhada genuína nos meus ouvidos
- Gosto tanto de te ouvir rir.
o teu cheiro a invadir as minhas noites
- Gosto tanto de estar aqui contigo.
Não quero acreditar que te irás, assim tão depressa, sem que eu tenha sequer levantado um pé do chão
- Isto tudo é tão improvável...
sem que eu tenha sequer tido a possibilidade de não gostar de ti.
- Quero que te fixes, essencialmente, nessas características terríveis que eu tenho e que te tiram do sério.
Tinha sempre tantas saudades tuas, mesmo quando estava contigo.
- Vais fazer-me falta.
Vou ter tantas saudades tuas...
- Tarde demais, eu não consegui evitar.
Não quero que vás, mas pouco importa o que eu quero
- Isso é um problema meu, que eu tenho de resolver.
pouco importa que eu me tenha dado inteiramente a ti, pouco importa se eu me dei e tu não aceitaste
- Dei o melhor de mim e acho que dei tanto.
pouco importa se foi ridículo, estúpido ou qualquer outro adjectivo que eu lhe queira chamar enquanto o meu peito definha perante a dor
- A inteligência é fatal, a ignorância é menos mortífera.
a verdade vem sempre à tona
- Não te cobro nada.
afinal de contas, entre nós, nunca houve promessas.
Levaste-me uma dor, deixaste-me outra e, em adição, a memória de ti,
- Esta memória é uma cruz.
a memória de todos os momentos em que foste presente e em que agora sentirei mais a tua ausência.
- Esta é a última frase que te digo antes de abrires a porta do carro e saíres...
O Outono, este ano, foi tão quente e tão frio,
- Terei saudades tuas durante muito tempo, mas depois passa.
tão quente no teu sorriso, tão frio no teu silêncio, no teu olhar fixo em mim, na tua mão segurando a porta, no meu sinal para que fosses, no desenho dos teus ombros, o ténue som dos teus passos rápidos, uma silhueta esguia que lentamente se afasta, até se tornar pequenina, tão pequenina que os meus olhos deixaram de a ver.
A chuva começou a morrinhar quando o meu carro desenhou a curva e o teu seguiu em frente, quando os meus olhos se fecharam sem a luz dos teus, quando a manhã cinzenta começou a abrir. Foi madrugada e tu não estavas comigo. Mais nenhuma madrugada contigo.
Sei que morrerei um bocadinho. A cada dia que passa morremos um bocadinho, mas os dias sem ti depois de ti matar-me-ão um pouco mais do que o esperado, como o lume que consome o cigarro cujo fumo se escapa pela nesga da janela aberta, no meu solitário regresso a casa.
E sabes que mais? Nunca fomos ao teatro. E eu tenho a certeza de que teria amado ir ao teatro contigo.

© [m.m. botelho], ao som de Voltar, de Rodrigo Leão, do álbum O Mundo (1993-2006) [2006], aqui ao vivo.



manhã cinzenta / faz-me chorar / a chuva lembra / o teu olhar
as folhas mortas / caem no chão / a dor aperta / o coração
quanto eu não daria / para poder voltar atrás / volta para o meu peito / daqui não saias mais
perdi minha dor / para te encontrar / na solidão / do teu olhar
no teu olhar / se perde o meu também no mar / se perde o céu
quanto eu não daria / para poder voltar atrás / volta para o meu peito / daqui não saias mais

18.11.07

Pronome possessivo

Estava para ali a olhar para esta página em branco, para ali a pensar no que haveria de escrever, se é que haveria de escrever alguma coisa. Tinha acabado de pousar o copo, bebericara um pouco de água quando nisto bateram à porta. Do lado de lá do intercomunicador perguntaram se, apesar da hora tardia, me importava de abrir e deixar entrar. Disse que não me importava. As horas estão presas dentro dos relógios, a cada segundo que passa os ponteiros fazem-lhes cócegas na barriga, como aos bebés que dormem o dia inteiro e a quem nada importa a não ser que nunca lhes desapareçam da vista as grades do berço. As horas estão presas dentro dos relógios, dizia, por isso «Façam o favor de entrar, não se acanhem. Façam de conta que a casa é vossa».
Perguntei-lhes depois o que queriam, mas afinal não queriam nada de concreto, apenas entrar, sentar-se um pouco no par de cadeiras que tinha diante de mim e ficar a olhar para o tecto, para a janela, para as aguarelas que mancham a parede. Ofereci-lhes água, que mais não tinha, «Não se preocupe que bebemos pelo mesmo copo. Não queremos dar trabalho e certamente quando chegámos estava a meio de qualquer coisa». Respondi que mesmo quando não estamos a fazer nada estamos sempre a fazer alguma coisa, porque nada já é alguma coisa, não é? «Pois, realmente, é».
Olharam-me com ar de comiseração por mim e recostaram-se entre os braços da cadeira. Perguntei-lhes se se importavam que continuasse a olhar para a página em branco, a ver se, com a sua presença, me saía alguma coisa para encher a folha, «Não, claro que não nos importamos. Continue para aí a mirar a palidez do papel e não cuide de nós, que nós por cá nos arranjamos».
Algum tempo depois saiu-me uma palavrinha ou duas e comecei a escrevê-las. A tinta preencheu meia linha da folha. À minha frente, «Ai, que se faz tarde! É melhor irmos andando que ainda adormecemos aqui». Levantei-me, abri a porta e desejei-lhes boa noite. Saíram em silêncio, sorrindo à passagem por mim.
Depois de fechar a porta ouvi comentar que lá fora estava frio, «Agora sim, já parece Inverno. Este ano praticamente não tivemos Outono.», os passos a afastarem-se a as vozes a ficarem cada vez mais sumidas, cada vez mais sumidas, até que deixei de as ouvir.
Voltei para a secretária e pus-me a olhar para a folha agora já não totalmente em branco, apenas com uns rabiscos de tinta e li o que escrevera. E não me apeteceu escrever mais nada, nem sequer reler o que havia escrito, porque o tecto pareceu-me bem mais interessante e igualmente imaculado. E quedei-me para ali a olhar para os fios do candeeiro que o esventravam e concluí que já eram horas de me ir deitar. Ando a dormir mal porque nunca me dá o sono e eu não me obrigo a ir para a cama. Esta noite posso obrigar-me a ir para a cama mais cedo e mesmo que não durma vou ficar por ali a olhar para o tecto, afundando os olhos no escuro.
Mesmo antes de adormecer, lembrei-me do que escrevera no papel e de como não me ocorreu mais nada nem poderia. No canto da folha escrevera a data, um pouco mais abaixo escrevera o teu nome, imediatamente a seguir a um pronome possessivo que não faz qualquer sentido estar ali. O teu nome não condiz com aquele pronome possessivo e por isso o discurso interrompeu-se. Na verdade, o teu nome não condiz com folhas brancas, nem com a tinta que sai da minha caneta nem com nada do que tenho espalhado por aqui dentro da cabeça e que não me deixa dormir. As visitas tardias foram-se embora quando leram escrito na minha melhor caligrafia, no máximo do meu esmero, o teu nome. A seguir à data o teu nome e depois do teu nome mais nada, nem sono nem coisa nenhuma. Resta o espesso do carvão da noite que inunda os meus olhos no meu quarto escuro.
Se me baterem à porta já não me levanto. Quero ficar aqui a pensar nas questões gramaticais dos pronomes possessivos antes dos nomes e nos nomes a seguir às datas. Estamos presos como as horas dentro dos relógios, agora percebo isso e não sei se gosto. O sono há-de vir e amanhã rasgo o papel e começo tudo de novo. Alguma coisa há-de vir à ideia. Não sei quem esteve cá, sei que entraram e saíram e que lá fora faz frio. O sono há-de vir e há-de apagar o teu nome de dentro de mim como a chama se apaga nas velas, queimando-o, juntamente com todos os pronomes possessivos e todas as datas e as minhas insónias.
Continuará a fazer frio lá fora e isso é tudo o importa. Afinal de contas, «Até parece que estamos no Inverno, não parece?», pois parece, «Este ano nem tivemos Outono!», tivemos sim, mas nem demos por ela, «Pois, realmente, não demos por ela, não».

© [m.m. botelho]

13.11.07

à superfície de mim

ainda agora chegaste e já
o vento te soprou
para longe
só porque a noite
caiu entre nós
volta quando o dia raiar
quando a luz
do sol for perfume
espalhado na tua pele
tisnada
deixa-te pousar
à superfície de mim
quando a madrugada
despontar neste imenso céu
do outono que foi tecto
do nosso encontro


© [m.m. botelho]

12.11.07

Oxalá

A maior angústia não é saber-te desse lado do rio. A maior angústia talvez seja saber que queres muito saltar para a minha margem, mas não o fazes. Uma angústia tão grande como as noites que passo sem ti, uma angústia do tamanho da eternidade que não se pode medir porque os nosso braços esticados não chegam.
Já te disse tantas coisas que quase sinto que tudo está gravado no granito há que tempos. Abrir os olhos ao amor é quase tão difícil como abri-los debaixo de água. O sal a corroer-nos, o desconforto, a visão turva. Tudo isso e muito mais faz a nossa inércia. E a dor é infinitamente maior e muito mais pungente.
O amor é, provavelmente, o mais fácil de conseguir. Tudo o resto, o resto de tudo é que é desafiante almejar.
Eu ouso. Oxalá hoje queiras tu também ousar. E, então, o teu colo será habitáculo do repouso da minha cabeça, o teu ventre lençol dos meus beijos e os teus cabelos resguardo dos segredos que te direi baixinho, antes de adormeceres. Oxalá.

© [m.m. botelho]

10.11.07

Metade

Começa-se
Sempre
a meio das coisas


Adília Lopes (n. 1960), «13 poemas fáceis», inéditos em «O Escritor», revista da A.P.E., n.os 15/16/17, Março/1991.


Eu e tu começámos a meio de qualquer coisa. A meio de nós, talvez. Dois corpos vagantes que se confundiram um dia sob uma intensa luz branca. Dois pares de olhos que, durante a eternidade que dura uma noite, se diluíram um no outro, debaixo de um candeeiro de onde pingava uma claridade amarelecida. Dois rostos que se perderam de si mesmos enquanto o ruído do silêncio que habitava as nossas bocas se afogava num ritmo ensurdecedor e vertiginoso. Duas mãos que se desmembraram na escuridão de uma rua alcatroada de uma cidade barulhenta tão quieta e calada naquele instante.
Eu e tu não nos cruzámos antes porque então era o princípio. Eu e tu não nos cruzaremos depois porque então será o fim. Cruzámo-nos agora, a meio das coisas, de todas as coisas. Seguiremos em direcções opostas, que o tempo não se compadece com nada, muito menos connosco. A minha estrada segue para Norte, a tua para Sul, paralelamente, mas sem nunca se cruzarem. Diria que fomos um acidente de percursos independentes que nunca ninguém saberá explicar como e porquê se encontraram.
Eu e tu fomos só metade de algo que começou a meio. A outra metade divide-se em duas. Uma delas vai comigo, a outra fica caída junto à berma do teu caminho. Vai-te embora e nunca olhes para trás, não quero que olhes para trás. Não quero que me vejas estancada à tua espera. Segue o teu trilho e deixa-me o meu. A meio das rotas, das vidas, das horas que marcam o relógio começam-se muitas coisas, mas nenhuma delas se termina. Acabam-se as coisas sempre pela metade. Nós acabámos pela metade. E é a incompletude tudo o resta.

© [m.m. botelho], de rajada. Por dentro quero acreditar que faz algum sentido, apesar de cá fora tudo parecer tão desconexo.

Ouve-se, no Viagens Interditas, Lie To Me, dos Devics, do álbum Push The Heart [2006].



you're wasting all your time here / riding around in the sun / alone and idling / come wander back to me / you know I'll always be there
lie to me, lie to me / make like you love me / lie to me, lie to me, oh
with this one you never go / and this one you never show yourself / with this one you tell it all / and turn your world into a ghost town
lie to me, lie to me / make like you love me / lie to me, c'mon it's easy, oh
don't think of what we can't be / I know what you need and you know that you like it / the name you were born with / your soul on your sleeve / let me believe in something