26.9.07

Causa-efeito

As mãos suadas. As têmporas a latejar. O batimento cardíaco em altos decibéis dentro da cabeça. Os dentes cerrados. A expressão fechada. A respiração contida. Os olhos meio-húmidos. A incapacidade de concentração. O silêncio, o silêncio, o silêncio. O coração aos pulos dentro do peito. O pensamento perdido não sei [ou sei? já nem sei] por onde. A fadiga repentina. A falta de apetite. O sono a teimar não chegar. O corpo às voltas na cama. Uma terrível enxaqueca. O dia à porta outra vez. Slideshow em flash no escuro do meu quarto. Tudo isto, ali, bem diante do nariz. A vida, ali, tão à flor da pele.

Tu. Tu. Tu.
Sempre e outra vez tu.
Tu tão longe e tão por dentro.

© [m.m. botelho], ao som de A culpa é da vontade, um inédito de António Variações, interpretado por Humanos, do álbum homónimo [2004].



a culpa não é do sol / se o meu corpo se queimar / a culpa é da vontade / que eu tenho de te abraçar
a culpa não é da praia / se o meu corpo se ferir / a culpa é da vontade / que eu tenho de te sentir
a culpa é da vontade / que vive dentro de mim / e só morre com a idade / com a idade do meu fim / a culpa é da vontade
a culpa não é do mar / se o meu olhar se perder / a culpa é da vontade / que eu tenho de te ver
a culpa não é do vento / se a minha voz se calar / a culpa é do lamento / que suporta o meu cantar
a culpa é da vontade / que vive dentro de mim / e só morre com a idade / com a idade do meu fim / a culpa é da vontade

25.9.07

Relação directa

Quanto maior a nossa distância, mais penosa a tua presença.

© [m.m. botelho]

10.9.07

Morrer outra vez

começo a acreditar que um dia
hei-de morrer mesmo

outra vez

© [m.m. botelho]

9.9.07

Enxurrada

andei muito tempo a desejar sair daqui
mas a chuva arrastou na enxurrada o meu coração
e eu voltei atrás para o agarrar

de novo o meu coração entre as mãos
sujo da água dos esgotos
do jorro da imundície dos outros
do que os outros deitaram fora

© [m.m. botelho]

7.9.07

Dúvida

Quis ficar ali, estática, impassível, a deixar-me somente trespassar pelo teu olhar. Quis morrer naquela fracção de segundo em que todos os dias morreram. Quedar-me eternamente rígida como os ponteiros do relógio quando se sobrepõem. Fugir de mim mesma, fugir por dentro e por fora de mim. Quis tantas coisas e, no entanto, queria apenas o profundo silêncio, o peso da ausência de tudo. Ser soterrada, imersa, absorvida. Qualquer outra coisa que não fosse ver-te ir, qualquer coisa que não fosse consentir à desesperança que cobrisse os nossos corpos. Quis deixar-me ensurdecer pelos teus gritos mudos, pela estridor dos teus lábios imóveis. Esvaecer em sangue e nevoeiro. Desfalecer, diluir-me, gotejar até ao fim. Prantear a minha própria miséria e maldizer tal sorte. Suster a respiração até entorpecer as pernas e os braços e permitir ao meu coração bater desgovernadamente enquanto não deixasse de sentir saudades tuas. Desde aquele momento continuo a não saber se há lembrança desse amor que um dia esbanjou assim a minha alma. Não sei, até hoje, se a perversidade conseguiu vencer a paixão. Nunca mais voltei a olhar cá para dentro. Temo deixar de te notar a falta, de te querer. Não tenho habilidade alguma para tirar conclusões sobre isto que é a vida real. Recuso-me a parir do interior uma dúvida ainda maior do que esta. Naquela noite tu morreste e eu fiquei moribunda. E sem certezas algumas sobre o desejo da cura.

© [m.m. botelho], ao som de Fado da Dúvida, dos Madredeus, do álbum Faluas do Tejo (2005).



se já não lembras como foi, / se já esqueceste o meu amor, / o amor que dei e que tirei, / não queria lamentar depois. / mas uma coisa é certa, eu sei. / não tive nunca amor maior. / e ainda vivo o que te dei, / ainda sei quanto te amei, / ainda desejo o teu amor.

não tenho esperança de te ver, / não sei amor onde andarás. / pergunto a todo o que te vê / e nunca sei como é que estás. / agora diz-me o que farei / com a lembrança deste amor. / diz-me tu, que eu nunca sei, / se voltarei ou não para ti, / se ainda quero o que sonhei.

5.9.07

Trilho

Eis que caem as palavras. Deixá-las escorrer pelo decote, sorvê-las no meu próprio ventre, cuspi-las no sexo. A minha vulva húmida de palavras. Beijar muito o branco destas paredes, até ter os lábios gretados pela cal. Lamber o silêncio do chão, das solas dos teus sapatos, dos dedos dos teus pés. Enlouquecer, enroscada como animal no tapete. Gravar com as unhas o teu nome em toda a parte. Ir pela madrugada fora. Sentir o corpo pesado. Deixar palavras molestas vertendo por onde eu passar. E consumir-me, por aí, no trilho fundo que o meu gozo rasgar.

© [m.m. botelho]

3.9.07

Palavra de honra

eu faria um esforço
- palavra de honra que faria -
para fingir não me importar muito
caso tu tivesses avisado
que, afinal,
não seria bem o que todos
- eu incluída -
esperavam,
mas tão somente aquilo que tu
muito bem entendias

no tão pouco desta escassez de ti que agora me rodeia
compreendo
[?]
por fim, o quanto
podemos enganar-nos
- a nós próprios e aos outros -
sobre aquilo que é possível
receber.

as tuas mãos estendidas
espelham bem o nada que tens para me dar

és tu quem está de mãos vazias,
sem teres onde te agarrar e,
contudo,
sou eu quem
desamparada
cai

tu não notas
- ninguém nota -
sequer que eu faço um incomensurável esforço
- palavra de honra que faço -
para fingir que não dói muito
e depressa me levantar

© [m.m. botelho]