23.3.08

Carpete [parte 2]

São, precisamente, 03h52. Abri a porta do nosso quarto e do teu vestido, sobre a cadeira, nem sinal. No seu lugar, umas calças minhas, muito velhas, muito amarrotadas, que uso frequentemente para andar em casa. Como é possível que não esteja lá o teu vestido? O que raio fazem ali aquelas calças? No armário da casa de banho, contudo, há uma embalagem do teu champô. Vazia. Em vão tento recuperar o cheiro dos teus cabelos, mas nada. Nada. Nada. Começo outra vez às voltas pela casa, a abrir todas as portas, todas as janelas, chamando por ti, os dentes rangendo nervosamente na minha boca, gritando o teu nome que parece não querer ficar nunca dentro de mim, mas tu não respondes, mas tu não estás.

Falta um minuto para as 04h00. O frio de novo nos pés, os pés de novo dentro dos chinelos, a manta no colo mas que, todavia, já não me vale de nada. Estou outra vez gelado, sozinho, o suor a escorrer-me da testa para o rosto, as pernas meio trémulas. Começo a pigarrear. Lembro-me da vizinha de cima. A tosse sacode-me o corpo como para me despertar da letargia
ela já não está cá, ela nunca esteve cá
mas eu prefiro continuar a dormir acordado. O estupor da vizinha de cima bateu outra vez com a vassoura no chão, amanhã vai pôr-me a campainha outra vez imunda. Não me interessa o que ela diz, nem o que a tosse me faz, só espero ainda ter desinfectante para limpar aquilo tudo muito bem limpo, senão vai mesmo com álcool.

Já passa um pouco das quatro da manhã. Olho a carpete que agasalha o centro do chão da nossa sala. Nela, vejo nitidamente uma linha da cor vermelha da bainha do teu vestido vermelho, um cabelo negro da cor dos teus cabelos negros, várias manchas de cinza espalhadas e entranhadas. Cinza dos teus cigarros, cinza feita do ar que os teus lábios levaram até ao cigarro que se consumiu como eu agora me consumo. Na aparelhagem, uma canção qualquer que deve ser do Sérgio Godinho, que só pode ser do Sérgio Godinho.
Por isso, pouco me importam as evidências. Eu sei que tu não te foste embora, eu sei que
tu ainda andas por cá, tu sempre estiveste cá.

© [m.m. botelho]

Carpete [parte 1]

São 03h04. O ponteiro dos segundos está quase quase a chegar ao minuto seguinte mas ainda não chegou. Ah. Agora sim. São, exactamente, 03h05. Tenho uma manta no colo, os chinelos enfiados nos pés, gelados. Não é que esteja propriamente frio, eu é que tenho uma tremenda dificuldade em aquecer.
Acabaram-me os cigarros, mas não me faz grande diferença. Fumando menos, tusso menos e assim já não incomodo a vizinha de cima, que ainda hoje me bateu à porta para me dizer que não descansa de noite por causa do meu pigarrear. A parva. Soubesse ela o quão rápido vou buscar o desinfectante e um pano para limpar a campainha de todas as vezes que ela lá pespega o dedo. Tem as unhas sempre porcas e cheira a fritos. Quero lá saber que não durma de noite. Que ponha algodão nos ouvidos. Tem aquele pescoço tão encardido que nem deve saber, sequer, o que é algodão. Até me dá comichão só de falar na mulher. O que interessa é que se amanhã me aparece aqui lhe sopro o fumo do cigarro em cheio para a cara, a ver se tossirá ou não. E depois que não se queixe de mim
- Vê, Sô Dona Belarmina, como fumando também a senhora tosse?
ou fecho-lhe a porta na cara. Assim, sem mais.

São, exactamente, 03h11. O ponteiro dos segundos acabou de passar no zero. São, exactamente, 03h11 e o teu vestido continua pendurado na cadeira, ao Deus-dará, o cinto a cair mais para um lado do que para o outro, os botões do decote todos desapertados, a bainha da saia descosida. De cada vez que abro a porta do nosso quarto, vejo-o abanar com o vento
não imaginas a corrente-de-ar que, mesmo com a porta fechada, há no nosso quarto
e é como se te visse a ti, dentro dele, a abanares-te toda ao som de uma canção qualquer do Sérgio Godinho
e eu, tão insensível, nunca achei graça a nenhuma das canções do Sérgio Godinho
os braços para um lado, as pernas para outro, como se fosses feita de trapos mas cheirasses sempre a alfazema.
Na verdade, tu cheiravas sempre bem, mesmo quando não cheiravas a nada. O teu vestido não cheira a nada, que é o mesmo que dizer que cheira a ti,
sabes que o cheiro da cebola nos teus dedos não cheirava a cebola?
que cheira ao perfume dos teus cabelos quando o vento mo trazia pela manhã, antes de saíres para o trabalho.

São agora 03h17 e o teu vestido continua imóvel sobre a cadeira. Se ao menos o teu vestido caísse ao chão, se ao menos se mexesse
afinal, há corrente de ar no nosso quarto!
eu pegava nele e enfiava-o no armário de novo, ou num saco plástico, ou no tambor da máquina de lavar roupa, que desde que tu não lavas os teus vestidos também não se mexe. Ele não fala - o tambor da máquina de lavar roupa - mas de certeza que se falasse me diria que tem saudades do cheiro dos teus vestidos dentro dele, a tocarem-lhe ao de leve o alumínio, cada um dos orifícios, as borrachas, encharcados de água e detergente.

São 03h20. Que estranho. Só passaram três minutos desde que vi as horas e parece que passou uma eternidade. Ao invés, já passaram anos desde que pousaste o teu vestido naquela cadeira do nosso quarto e parece que ainda foi ontem que te ouvi cantar uma canção qualquer do Sérgio Godinho
não sei a letra, mas só podia ser do Sérgio Godinho
ali na cozinha, enquanto fazias café para nós. Se queres que te diga, parece que ainda foi esta manhã que te vi entrar
as maçãs do rosto rosadas pelo frio da rua
com o jornal numa mão e o pão quente, ainda a fumegar, na outra. Quase podia jurar que ainda há pouco andavas aqui na sala a fumar cigarro atrás de cigarro, a maldizeres-te a ti própria porque deixaste cair cinza na carpete
- E a empregada nunca aspira esta carpete como deve ser!
enquanto abanavas os cabelos ao som do Sérgio Godinho e inundavas o meu nariz com o cheiro do teu champô. Mas vendo bem, no cinzeiro há apenas beatas dos meus cigarros, de cujo aroma tu sempre te queixaste e que nunca compreendeste como é que eu conseguia inalar. Dos teus cigarros, nem vestígio. De marcas do teu baton nos filtros brancos dos teus cigarros, nem sombra.
Se calhar, não estiveste ainda há pouco aqui na sala a dançar. Se calhar, é tudo fruto da minha imaginação. Se calhar, sou eu que ainda sonho contigo acordado, manta no colo, chinelos enfiados nos pés sempre frios porque esta casa é enorme e há corrente de ar em todo o lado, mas, principalmente, no nosso quarto. Por falar nisso, deixa-me ir ao nosso quarto. Faz-se tarde, é melhor fechar as portadas e ligar o aquecedor, que já são mais do que horas de dormir.

© [m.m. botelho]

17.3.08

a palavra/as palavras

© Sindri | fotografia | fallin in love was not part of the plan | 2007

Tu vais dizendo as palavras
- a palavra -
enquanto eu te desenho no corpo as linhas das cores que a chuva tem e me encandeiam os olhos.
Lá fora, continua a pingar, a gotejar das folhas das árvores monumentais do quintal dos vizinhos. No lado de lá da rua, no prédio em frente, uma rapariga de vestido preto, cotovelos apoiados no parapeito da janela, suspira pelos raios de sol para sair à rua.
Ainda que o calor chegue e a chuva cesse, permaneceremos absortos em nós: eu em cada interstício do teu ventre, tu na essência dos meus cabelos, eu no ardor da tua boca, enquanto vamos dizendo a palavra
- as palavras -
para sempre tatuadas em cada ruga dos nossos lençóis.

© [m.m. botelho]

13.3.08

Chuva num monitor cinzento

Ela é somente um sonho. Ela não é real, não pode ser real. Ela ultrapassa a realidade, comece a realidade onde começar, vá à velocidade que for, seja lá isso o que for, isso de ultrapassar. Ela só pode ser fruto da minha imaginação. Digam-me que ela é fruto da minha imaginação. Que não pode ter cheiro, nem cor, nem vida para lá do meu cérebro, para lá do meu corpo, da minha vontade de a materializar cá dentro. Digam-me que ela não passa de um pesadelo, de uma visão futurista e idealista da minha cabeça, de um não-querer muito imenso e muito intenso que eu tive guardado no peito a sete chaves durante tanto tempo. Digam-me que ainda não foi agora que ela ganhou vida. Digam-me que, para lá desta televisão dessintonizada em que se tornou o mundo dentro dos meus olhos, ela não existe, ela se esfuma, ela não passa de poeira invisível. Digam-me que ela é apenas chuva num monitor cinzento que não se deixa domesticar por um controle-remoto. Digam-me que ela não veio de repente, não me abriu a porta de casa e não me levou tudo. Digam-me, digam-me, digam-me. Digam-me, por favor, que esta noite não foi a noite em que a morte veio para me roubar de mim.

© [m.m. botelho]

5.3.08

Ex

A noite arrefeceu. Logo hoje, que tu não estás cá para me aqueceres debaixo dos cobertores, logo hoje que tu não vens. Ainda me hás-de explicar porque é que tens sempre os pés tão frios.
Quando fui à rua despejar o lixo vi passar do lado de lá do passeio a tua ex-mulher. Continua com a mania de passar aqui à porta todas as noites. Trazia o cão pela trela, vestia uma camisola vermelha. Fica-lhe bem o vermelho, fá-la mais nova. Quando abri a porta, ela vinha mais ou menos em frente à mercearia e desde então não tirou os olhos de cima de mim. Ela percebe que me incomoda que me olhe assim, mas não porque seja tua ex. Ela sabe que tem um estranho poder qualquer de prender as pessoas com o olhar. Tenho medo que me hipnotize, que depois me leve para casa, me mate, corte em pedaços e me dê de comer ao cão. Não sei ao certo se lhe tenho medo ou se a acho simplesmente maluca.
Depois de despejar o lixo fechei a porta o mais depressa que pude. Enquanto subia as escadas podia ouvir o eco do meu coração descompassado no corredor. Senti a garganta a latejar, uma dor de cabeça repentina. Entrei em casa e fui a correr buscar a manta. De repente, a noite arrefeceu só porque a tua ex-mulher voltou a passar aqui na rua. Logo hoje, que tu não vens. Ainda me hás-de explicar se também é por causa dela que tens sempre os pés tão frios.

© [m.m. botelho]