28.4.07

À tua espera [parte 3]

Naquela noite não vieste para casa. Nem naquela noite, nem nas noites que se lhe seguiram. Bebi, comi, dormi, acordei, tomei banho, saí para o trabalho, voltei para casa, sempre à tua espera. Tudo fiz, estes dias, à tua espera, sempre à tua espera. Mas tu não voltaste, nem para casa, nem para lado nenhum onde eu esteja.
A revolução foi há três dias. A vida lá fora continua agora num sereno reboliço. Ouvi dizer que no Alentejo já tomaram propriedades e ocuparam moradias vagas, cheias de poeira sobre lençóis brancos e fiapos de sol a espreitar das frinchas das persianas e que ninguém acha estranho que assim seja. Alheado de tudo isto, hoje fiquei em casa. Cheguei mesmo a pensar que valeu a pena ter sido pobre toda a vida para viver estes dias com alguma calma. Pela primeira vez na vida dei por mim a dar graças, não sei a quê ou a quem, por viver numa casa que não é minha e por ir a pé todos os dias para o trabalho. Não tenho nada que me possam tirar, já não tenho nada que me possam tirar.
Disseram-me que te viram no Largo do Carmo em cima de uma chaimite, abraçada a um homem. Disseram-me que estavam ambos a fumar o mesmo cigarro. Nós costumávamos fumar o mesmo cigarro, à varanda, nas noites quentes de estio. Eu abraçava-te, a minha mão na tua cintura, a tua mão sobre a minha, o cheiro dos teus cabelos misturado com o do tabaco, o fumo a escapar-se por entre os teus dentes e a preencher de névoa a negridão do céu da nossa varanda. Eu de olhos pousados em ti, inebriado de ti, dos teus caracóis, do fio de ouro que te afagava o pescoço, do pingente onde brilhavam discretamente as nossas iniciais entrançadas. Eu perdido no teu perfil, no teu nariz pequenino, eu encontrado nas nossas mãos juntas na tua cintura.
Disseram-me que rias muito, que gritavas, que aplaudias, que ele te olhava com admiração, que se beijaram muitas vezes. Talvez um preso político, talvez um estudante, talvez o dono de um café. Ninguém soube dizer-me quem ele é. Não é que faça qualquer diferença que eu saiba quem ele é. Faz-me diferença é aquela porta muda e queda. E os teus brincos de filigrana em cima da cómoda do nosso quarto. Dizias muitas vezes que aqueles brincos eram a coisa mais valiosa que tinhas. Faz-me diferença o leite a azedar em cima da mesa, o teu avental pendurado atrás da porta, abanado pelo vento. Faz-me diferença os teus chinelos debaixo da nossa cama, pousados um sobre o outro, descalçados à pressa na última manhã em que te vi. E o frasco de perfume quase vazio no armário da casa de banho.
No Carmo já não está ninguém a gritar, a aplaudir e a rir muito. Já só se vêem militares. Nas poucas imagens que vi na televisão do café não apareceste. Esperava ver-te de cravo vermelho ao peito, ou preso na orelha, um cravo vermelho nas imagens a preto e branco que a televisão do café irradiava. Mas não, tudo a preto e branco, nada de cravos vermelhos presos na orelha.
Disseram-me que não voltas, que fugiste com ele. Mas tu não fugiste, eu sei. Tu nunca te deixaste prender. Dormíamos na mesma cama, mas tão separados quanto é possível que duas pessoas que não se amam estejam. Nunca gostaste do arroz que eu sempre fiz com tanto empenho. Sabia há muito que não poderias, portanto, amar-me. E eu sempre achei que o teu arroz sabia a arroz, que tinha o mesmo sabor dos demais. E não tinha.
Tantas coisas que eu achei sempre iguais às demais e não eram. Até aquela madrugada em que te esperei eu julguei ser como as demais. E não foi. Tu não voltaste e eu deixei-me afundar em copos de um vinho mau, de um vinho francamente mau. Esta espera não é como as demais, que tu não voltas. Disseram-me que não voltas e eu sei que não voltarás. Foste embora naquela risada, naquele grito, naquele aplauso, naquele cravo vermelho que eu em vão procurei nas imagens da televisão. Foste embora e eu não te vi ir, como nunca fui capaz de te ver enquanto estavas aqui.

© [m.m. botelho], ao som de Coma, de Yann Tiersen, do álbum Good Bye Lenin! OST [2003].

25.4.07

À tua espera [parte 2]

São duas da manhã e tu ainda não voltaste. Desliguei o fogão e comi algum arroz. Tens razão quando dizes que o meu arroz sabe sempre mal. No fundo, sabe a arroz, que todo o arroz sabe a arroz, até o teu.
Gostamos de disfarçar o sabor do que comemos com condimentos e refogados fortes. Gostamos de disfarçar os fedores com perfumes e essências florais. Gostamos de disfarçar o senão da bela com lindos vestidos.
Deixa-me comer este arroz desenxabido. Deixa-me descalçar os sapatos e cheirar os meus próprios pés. Deixa-me ver ao espelho as minhas rugas, a minha barba grande, o meu cabelo em desalinho, os meus dentes amarelecidos pelo tabaco. Enquanto espero por ti, não quero mais do a crueza da realidade que sou e em que me movo. Mas só enquanto espero por ti, porque sei que não tardarás a bater à porta.

[continua]

© [m.m. botelho]

24.4.07

À tua espera [parte 1]

Disseste que quando acabasses de limpar o 3.º esquerdo voltarias para casa. Fui adiantando o jantar, como me pediste. O arroz já está em papas.
Passa da uma da manhã. Estou sentado à mesa à tua espera. Bebi sozinho a garrafa de vinho que te deu a tua patroa do casarão do Largo das Rosas. Eu não teria a lata de oferecer um vinho destes a ninguém.
É curioso. As pessoas ricas acham sempre que os pobres não sabem apreciar o que é bom só porque nunca tiveram coisas boas. Enganam-se. Não sabemos o que é bom, de facto, porque nunca o tivemos, é verdade. Mas conhecemos o que é mau tão bem que sabemos que se algo é igual ao que sempre tivemos é porque não é bom.
Enfim, este vinho era mau; não terás grande pena de não o teres provado. Mas se a tua patroa do Largo das Rosas voltar a oferecer-te uma garrafa de vinho, ainda que seja igual a esta, aceita. Sempre me vai servindo de companhia para estas horas infinitas em que te espero.
Está uma pilha de louça na pia para lavar. Não a lavei, não mo pediste. Às vezes tenho vontade de te ajudar nas lides da casa, mas como nunca mo pediste, nunca o fiz. Não gosto de te contrariar. Assim podes continuar a dizer às tuas patroas e às tuas amigas que eu não faço nada a não ser que me peças.
Já somos casados há tanto tempo - há quanto tempo? - que continuamos a dizer o mesmo ainda que esse mesmo já não seja verdade. É sempre assim. Quando nos habituamos a ver os defeitos das outras pessoas nunca deixamos de os ver, ainda que eles deixem de existir. É por isso que há tanto tempo - há quanto tempo? - nos vemos do mesmo modo de cada vez que olhamos um para o outro.

[continua]

© [m.m. botelho]

12.4.07

Neurose

Deixa-me dizer-te isto de uma assentada, enquanto a escassa coragem que ainda me resta não se vai embora de uma vez e me deixa para sempre sufocar no que preciso desesperadamente de passar para as palavras.

[Inspiro.]

Faz-me um favor. Pára de falar que já não aguento mais as tuas palestras sobre os horários, os teus lamentos sobre os impostos, o teu choramingar quando não consegues vir-te. Não suporto mais que me expies quando vou levar o lixo à rua. Já te disse que não tenho nenhum caso com o vizinho da frente, nem com o vizinho do lado, nem com o filho da merceeira. É verdade que são todos bem mais bonitos do que tu, mas os homens não se querem bonitos, ou se querem muito, ou se querem pouco, independentemente da beleza. Não tenho culpa de que não tenhas sido o primeiro homem com quem vivi e de que a esse não chegues sequer aos calcanhares nas questões da cama. Já te disse que o teu pénis não te parece sempre pequeno porque passas o dia inteiro a olhar para ele. Eu olho-o pouco e a mim também me parece sempre pequeno, sempre pequeno demais para aquilo que eu preciso, que o meu corpo precisa, porque eu preciso de mais, muito mais, de um pénis, de sonhar, de ter, de comer, de conhecer. Preciso de mais do que o que tu podes dar-me sempre atafulhado nas tuas paranóias, sempre a cismar em vinganças e esquemas e planos A, B e C. Oxalá o filho da merceeira me cobiçasse como eu o cobiço a ele quando te tenho no meio das minhas pernas a resfolegar. Oxalá ele me levasse daqui, para bem longe de ti e das tuas obssessões. Pensando melhor, o filho da merceeira também vive aqui no bairro, com ele não iria muito longe, aposto que onde ele mora ainda se sente o cheiro imundo dos teus pés, ainda se vê a porcaria que tens nas unhas. Não, esse longe que ele me pode dar não me chega. Amanhã não vou trabalhar. Meto-me no carro, faço-me à estrada, andar por aí. Vou para a cama com o primeiro homem que me aparecer pela frente e que meça mais de um metro e oitenta. Nunca fui para a cama com um homem alto e sempre achei que os homens altos, por estarem mais perto das nuvens, seriam capazes de sonhar. Amanhã vou para a cama com um homem alto e, se tiver sorte, ele há-de apaixonar-se por mim. Há-de ficar a pensar em mim, levar-me consigo, dentro da cabeça, eu bem agachada dentro da sua cabeça, para longe daqui, bem longe de ti, do teu fedor, do teu pénis ridículo, da tua neurose, desta deprimência de vida que tenho ao teu lado. E, se calhar, ainda te digo que te pus os cornos. Talvez me mates de uma vez e me poupes ao tormento de passar o resto da vida contigo.

[Expiro.]

© [m.m. botelho]

10.4.07

Textos pequeninos

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | manuscrito | abril de 2007

Os textos pequeninos apresentam a grande virtude de pouparem as palavras.
Textos espartilhados em poucas linhas são a melhor forma de expressar. Dizer o que é, deixar outro tanto por dizer.
Não gosto de gastar as palavras nem de fazer dos significados solas rotas de sapatos velhos.
Poupar as palavras é poupar-me o coração à mágoa dos trilhos que nele rasgaram já tantos caracteres.

© [m.m. botelho], ao som de Lonely Carousel, de Rodrigo Leão, na voz de Beth Gibbons, do álbum Cinema [2004].



It's a look / This game we play / We can't escape / We have to attend / It's life you see
When I have tried to amuse myself / To celebrate the fun fair / The pleasures I seek / Are far too discreet for me
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this lonely carousel / And all these words / They mean nothing at all / Just a cruel remedy / A strange tragedy / Of what will be
After I tried / To discover the answers to why / To look for a meaning / Inside of this dreaming I had
And words that I've said / Are spinning 'round / Would sing alone inside my head / Nothing will change / It's always the same / Please make it stop
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this lonely carousel / And all these words / They mean nothing at all / Just a cruel remedy / A strange tragedy / Of what will be
And all the time / The world unwinds / I can't deny the way I feel / The truth is lost beyond this carousel
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